Antes de tudo, resistir: as faces do sofrimento docente

Na busca pelas causas do sofrimento docente, doutoranda em educação pela USP trilhou um caminho muito próprio durante a produção de sua tese “O sofrimento docente: apenas aqueles que agem podem também sofrer”. Nela, a autora recoloca o professor como um sujeito de potência, que age e resiste não aos obstáculos da docência, mas a conformidade à eles imposta

Os professores ocupam hoje um lugar precário no tecido social. (Imagem: Unsplash)

Guiada por um sentimento de inquietação, a doutora pela Faculdade de Educação da USP e pela Université Paris 8, Caroline Fanizzi,  se dedica em desvendar as múltiplas faces do sofrimento de um professor. Para isso, como meio de investigação, utiliza seus anos de experiência dentro de sala de aula, bem como relatos e discussões com  professores e pesquisadores que de alguma forma já sofreram em seu ofício ou estudam o tema. Em face do cenário observado, no tecer do trabalho, ela introduz um conceito próprio para pensar a condição docente: o da precariedade simbólica.  

A pesquisadora Caroline Fanizzi desenvolve o conceito da precariedade simbólica (Imagem: Arquivo pessoal)

Ausência de recursos materiais, baixos salários, classes lotadas. Essas são algumas das questões que, com frequência, ocupam espaço nos relatos de muitos professores. Mas, sob a ótica da precariedade simbólica, a análise se volta para outro lugar, aquele que o professor e a docência ocupam no tecido social. Lugar este que hoje sofre com uma desvalorização vinda de diferentes direções, seja dos próprios alunos, superiores, famílias, do governo ou da sociedade em geral. 

“É um lugar que sofre uma profunda precarização. O professor é hoje um sujeito extremamente desvalorizado, deslegitimado e desautorizado, a sua palavra foi empobrecida”, assinala Fanizzi. 

Entretanto, em um país como o Brasil, torna-se inevitável evidenciar e investigar qual o espaço que as precárias condições materiais – em meio às quais boa parte dos professores exerce seu ofício – ocupam na degradação do docente que sofre. Ao abordar a questão, embora não subestime a importância de aparatos materiais dignos e necessários para o ensino, a pesquisadora evita traçar interpretações simplistas e superficiais. Para ela, a precariedade material e o sofrimento docente não funcionam segundo uma lógica de causalidade. Pois, mesmo diante de uma conjuntura na qual o professor dispõe de boas condições materiais, o sofrimento toma espaço pelas vias da precariedade simbólica. Portanto, ela localiza a questão material como elemento que pode funcionar como um potencializador desse sofrimento, e não como uma fonte direta dele. 

 “Me parece raso dizer que uma pessoa sofre, adoece e é afastada de suas funções a partir de uma relação de causalidade. O que me fez olhar para esse cenário sob uma outra perspectiva, é como esse sofrimento aparece também numa escola onde tudo é garantido”, reforça a doutora. 

Dentro de tal compreensão, ela nomeia esse recinto de sofrimento e invisibilidade, no qual o professor se encontra, de “não lugar”. Neste, o docente tem uma profunda perda de suas capacidades como agente e narrador de si mesmo. E então, quando resistir aos obstáculos impostos a docência parece ser o caminho, a doutoranda dá um novo significado à ação: um no qual o docente se recusa a adaptar-se à condições precárias e resiste a conformidade à elas imposta. 

A psicologia por trás dos números

“Esgotamento emocional”, “depressão”, “síndrome de burnout” e “frustração” são algumas das expressões utilizadas com frequência na tradução dos múltiplos sentires de um docente. Outro ponto central da tese, a pesquisadora se dedica a análise dos muitos discursos que circundam o estado mental de saúde dos professores.

A análise dos dados acerca da saúde daqueles que se dedicam a ensinar deve ser feita com cautela (Imagem: Unsplash)

Não é difícil encontrar matérias que se propõem a discutir a psicologia do sofrimento docente. Em boa parte delas, além da utilização desses termos, elas trazem dados numéricos alarmantes. A matéria nomeada “Educação tem 62 afastamentos por transtorno mental publicada” em 2019, por exemplo, oferece uma pequena mostra de como uma lógica nosográfica e medicalizante domina as avaliações acerca do sofrimento docente. Neste cenário, segundo descrito na tese, é reforçado um discurso que se constrói em torno e aponta para o diagnóstico da doença. 

Outra problemática apontada pela pesquisadora é a de enquadrar experiências muito únicas dentro da classificação de “transtorno mental”. As reportagens oferecem, de certo, um diagnóstico que diz muito sobre a condição concreta do  professor, bem como a da educação no país, o objetivo não é negar isso . Contudo, reunir dentro de um mesmo grupo, docentes com experiências tão distintas entre si, apaga a singularidade de cada vivência. 

Diante disso, a doutora propõe irmos além e questionarmos o que está por trás dessas informações e dados que aparentemente encerram o debate em si mesmos. Isso, com o intuito de esclarecer o que eles nos dizem do sujeito, de seu entorno, e de como ele se coloca perante os empecilhos encontrados em sua jornada. “O que eu propus foi operar uma subversão na forma que nós interpretamos esses dados. Ao invés de olhar para eles como uma doença, eu proponho olhar para esse sofrimento como indicativo de potência, no sentido que esse sofrimento nos diz algo do sujeito que sofre, mas também de um sujeito que resiste [à conformidade] “, completa Fanizzi. 

4° colocada dentre as teses selecionadas pela FE para concorrer ao prêmio Capes, ela dará, futuramente, origem a um livro para pensar a condição docente. Com ele, a hoje professora da Universidade Federal de Santa Catarina, espera oferecer um meio para os leitores, sobretudo aqueles que se dedicam a ensinar, enxergarem a experiência de sofrimento a partir de uma nova perspectiva.   

“Que ao tomar contato com o meu trabalho eles possam narrar de outra forma essa experiência de sofrimento”.   

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