Na sala de aula o laudo médico nem sempre tem razão

Pesquisadora da USP questiona a busca por validação científica e as implicações do documento para as crianças e professores

É necessário que os professores não alterem suas práticas de ensino devido aos laudos médicos de seus alunos. Foto: Getty Images

Numa sala de aula, a presença de um educador é tão significativa até nos casos em que se identificam problemas de aprendizagem dos alunos. Nessas situações ainda há um predomínio do laudo médico, entretanto, essa situação pode ser bem diferenciada se os docentes mudarem os seus olhares e não modificarem a sua prática de ensino devido ao documento.

Interessada em saber quais as implicações desses documentos no ambiente escolar, Caroline Fanizzi, mestre pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), defendeu a dissertação A educação e a busca por um laudo que diga quem és. A pesquisa discorre sobre como o discurso (psico)pedagógico hegemônico  e o medicalizante, afetam hoje o cotidiano de professores e alunos.

Discurso medicalizante e (psico)pedagógico

Frequente na educação, o discurso medicalizante aborda em termos médicos e científicos questões que podem envolver diversos aspectos sociais e outros campos do conhecimento. Muitos professores buscam conhecimentos fora da pedagogia e, essencialmente, da educação para dizer exatamente quem é o outro sujeito, o aluno, através de validação externa, como o saber médico ou científico. Um exemplo, é que toda criança agitada é considerada com hiperatividade e, consequentemente, vai precisar de um laudo e encaminhamento na área da saúde.

Já o discurso (psico)pedagógico compreende o laço educativo estabelecido entre crianças e adultos, e professa “saberes e crenças acerca da educação profundamente marcado por conhecimentos e ilusões da psicologia”. Marcado pelos conhecimentos da psicologia, ele entende o outro sujeito como capaz de ser avaliado e mensurado num determinado momento de seu desenvolvimento. A partir da medição e controle do outro, o docente conseguiria ter conhecimento total do aluno. Assim, seria possível adequar a prática de ensino exatamente de acordo com às necessidades da criança com laudo.

Segundo Caroline, uma face moderna do discurso (psico)pedagógico seria o discurso medicalizante. Este, pautado em saberes médicos e científicos, transforma situações com diversas origens em questões médicas. Diante disso, o objetivo da pesquisa foi questionar os motivos dessa procura por validação científica e quais as implicações dos laudos tanto para as crianças quanto aos professores.

Ela comenta que quando toda situação que é vista diferente das demais, é entendida como algo necessita de profissionais da saúde, isso acaba tornando-se problemático. Pois, estes profissionais entendem que essas circunstâncias ocorrem devido a algo orgânico, portanto, a solução também viria através de alguma coisa orgânica, os remédios. Esse cenário provoca implicações como o aumento do uso de medicação por crianças que são diagnosticadas com distúrbios de aprendizagem.

Desvalorização docente

Diante da valorização de saberes externos, pode-se observar a desvalorização do conhecimento docente. O saber pautado na prática educativa é tido como inferior ao fundamentado na ciência, representado pela medicina e psicologia, que cria uma hierarquia do conhecimento.

Para os professores validarem os seus trabalhos e atuação junto às crianças precisa de um médico ou profissional da saúde que ateste o distúrbio, através de instrumento científico. No caso, o laudo médico que tem a função de dizer o que aquela criança possui.

Segundo a pesquisadora, o laudo adquiriu supervalorização na área da educação “de tal forma que ele passa a ocupar o lugar da criança”. O documento é caracterizado como o que vai dizer exatamente quem é aquela pessoa e não qual distúrbio ela possui. “Não é mais uma pessoa que tem dislexia, é o disléxico” e isso tem implicações para educadores e educandos.

Caroline pontua que sua dissertação não tem o objetivo de deslegitimar o trabalho dos profissionais da saúde. No entanto, ela optou por demonstrar como a forte reprodução desses discursos podem afetar às pessoas envolvidas no processo.

No trabalho, a estudiosa realizou quatro entrevistas semiestruturadas com professoras do ensino fundamental I — o que corresponde a crianças do 1° ao 5° ano. Duas delas atuam na rede privada e duas na rede pública.  

Ela observou que, muitas vezes, “as professoras percebem o saber científico, médico e da psicologia como capaz de trazer respostas absolutas aos problemas que a educação enfrenta no cotidiano”. No entanto, as docentes de cada rede tinham opiniões diferentes sobre a interferência do laudo no cotidiano.

Na rede pública, o laudo era considerado importante porque as professoras poderiam recorrer a outros benefícios como solicitar um estagiário para ajudá-las nas aulas, entre outras políticas que auxiliariam a conduzir o ensino em sala. Já na rede privada, havia exigência da coordenação ou da escola para que a professora pudesse se valer de outras alternativas para lidar com esses alunos. Através do laudo, por exemplo, os educadores poderiam preparar provas diferenciadas ao estudante.

A pesquisadora pontua que o problema não é o laudo em si. “O que nos preocupa é essa epidemia de transtornos do aprender”. Nela, o aluno é entendido como alguém que tem atitudes consideradas desviantes a partir de um padrão de normalidade determinado pelo professor, que enxerga a criança como alguém que, necessariamente, precisa de um laudo.

É necessário mudar o significado que os educadores e escolas têm diante desse documento. De acordo com o estudo realizado, uma das alternativas é a dos educadores observarem os alunos que têm laudo sem nenhum tipo de preconceito advindo da ideia que detém neste papel. Estando abertos às reações que os educandos têm no dia a dia. Outro ponto mencionado pela pesquisadora é o professor ter uma boa formação para entender a si mesmo como autor da sua prática de ensino e não permitir que discursos externos a determinem.

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