De perto e de longe: como a inteligência artificial pode revolucionar a saúde

Aplicativos, teleconsultas monitoradas e prontuários eletrônicos são exemplos de aplicações dessa ferramenta, que também pode trazer novos dilemas aos profissionais da área

A inteligência artificial é um tipo de engenharia que cria máquinas inteligentes por meio de dados, algoritmos e regras. [Imagem: Freepik]

Por Alessandra Ueno, Bárbara Bigas, Julia Estanislau e Otávio Aguiar

“Os algoritmos conseguem dizer o trajeto do paciente no hospital, quanto tempo ele pode demorar numa consulta e até prever se aquela pessoa pode ter um infarto num futuro próximo.” Pode até parecer o enredo de um filme de ficção científica, mas não é. 

Esse depoimento do professor Alexandre Chiavegatto Filho, da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP), mostra que a aplicação da inteligência artificial (IA) vai muito além da automação, dos chatbots e dos algoritmos das redes sociais.

Para compreender a importância dessa tecnologia na área da saúde, é preciso dar um passo atrás e entender como ela funciona. “Os mesmos algoritmos que funcionam para o Instagram, para a Netflix, para o Waze, são os mesmos conjuntos de algoritmos que também funcionam para a área da saúde”, explica Chiavegatto. 

A principal diferença são as consequências do erro do algoritmo: “A área com maior impacto vai ser a de atenção clínica, que é auxiliar o médico diretamente sobre o diagnóstico e o  prognóstico de pacientes. Essa hora ainda não chegou porque a saúde é uma das áreas que precisa de mais cuidado. Uma coisa é você errar quantos cardiologistas preciso no hospital na sexta, mas errar um auxílio diagnóstico é muito mais grave. Isso é, literalmente, uma consequência direta na vida desse paciente.”

Por isso, é preciso investir nessa área: tanto pelo potencial de democratização do acesso à saúde em todos os locais, principalmente nas regiões interioranas, quanto para agilizar e auxiliar as consultas e, consequentemente, os diagnósticos. “O potencial que você tem ao usar esses algoritmos é para diminuir esse abismo de desigualdade que existe hoje na atenção à saúde no Brasil”, destaca o professor.

Até a organização do hospital ganha com o uso das IAs: “Você consegue organizar os recursos físicos e recursos humanos do hospital, que sempre foi um desafio muito grande. A área da saúde sempre foi muito complexa, mas agora, com os algoritmos, você consegue modelar essa complexidade de uma forma cada vez melhor”, diz Chiavegatto.

Entretanto, quando o assunto é o contato direto com os pacientes, é preciso realizar um test-drive com os algoritmos antes para evitar que as consequências — como já citadas — causem danos à saúde. “Por exemplo, hoje, uma grande área de inovação de IA são as redes sociais. Você consegue colocar os algoritmos ali, fazer vários testes nesses algoritmos e errar, mas esse erro não é tão grave quanto na saúde. Eles vão reajustando, descobrindo novas técnicas, para que as outras áreas também façam os ajustes e melhorem o algoritmo.”

Para o professor, o sucesso de um algoritmo ocorre quando se garante que essa ferramenta tome as escolhas certas, não tome decisões preconceituosas e seja capaz de reaprender. Mas, mesmo com essas características, é preciso combater o estereótipo de que essa tecnologia irá substituir ou robotizar os médicos: “As pessoas acham que a IA vai mecanizar o médico. Na verdade, é exatamente o oposto: vai humanizar a medicina. A parte de robozinho vai ficar com robozinho. O que vai sobrar para os médicos é a medicina, é praticar de fato a medicina. Sentir o paciente, ouvir o paciente, conversar com o paciente.”

Chiavegatto critica a situação em que os médicos, ao invés de dedicarem a atenção ao paciente, “durante uma consulta médica, ficam olhando para baixo e digitando no teclado. Isso é um absurdo, é uma coisa que a gente deveria ficar completamente revoltado, mas você vai ver em uma consulta médica”.

Por mais que a IA ainda seja um tópico em andamento e sensível na área da saúde, muitas discussões ainda podem ser levantadas sobre o assunto, mas o professor ressalta a possibilidade de escolha, já que é uma ferramenta feita para auxiliar os médicos e não substitui-los.

“Todos os médicos recebem o melhor auxílio possível, mas o médico não vai precisar usar se não quiser. É como o Waze, você não precisa usar toda hora que você está no carro, mas as pessoas usam o Waze porque funciona. Você não vai precisar usar, mas quando você vir que funciona, que melhora a vida, as decisões e, assim, sobra tempo no atendimento clínico e para coisas mais importantes do que ficar digitando no teclado”, exemplifica.

Os dados na IA

A inteligência artificial é um tipo de engenharia que cria máquinas inteligentes por meio de dados, algoritmos e regras. Elas são treinadas para imitar o comportamento humano em relação ao aprendizado e a solução de problemas.

O treinamento das máquinas depende de dados diversos e de qualidade, para assegurar que as análises de exames de uma doença sejam confiáveis. Por exemplo, se uma máquina que usa IA for analisar um câncer de pele, mas as imagens com as quais o sistema foi alimentado forem apenas de peles brancas, ao analisar uma pele de outra cor o diagnóstico pode sair errado.

“A performance dos algoritmos das ferramentas está diretamente relacionada com a base de dados de treinamento. Se você não tem uma diversidade de casos suficiente, só vai conseguir bom funcionamento quando as imagens que você testar forem muito parecidas com o dado com que ele treinou. Se for diferente, aí a performance diminui”, explica Fátima Nunes, professora titular na USP e pesquisadora na área da computação aplicada à saúde.

O relatório Regulatory considerations on artificial intelligence for health, da Organização Mundial da Saúde (OMS), publicado em 2023, advertiu sobre alguns problemas que o uso da inteligência artificial pode trazer para o sistema de saúde. Segundo a organização, há riscos de coleta e uso antiético de dados de saúde; preconceitos na escolha dos dados; risco de segurança e cibersegurança para o paciente e risco para o meio ambiente. 

A Organização faz uma recomendação no relatório de que as grandes empresas, para evitarem riscos potenciais do uso de dados sem qualidade,  deveriam avaliá-los segundo os “10 Vs”: velocidade da geração dos dados; imprecisão (vagueness em inglês); vocabulário; variabilidade; local (venue) de distribuição; variedade dos dados; valor; volume; veracidade e  validade. Para isso, seria necessário a criação de testes rigorosos para os sistemas de IA antes de serem disponibilizadas para uso. 

Os “10 Vs” dos dados, como colocado pela OMS. [Imagem: Reprodução/ OMS]
Ainda, alerta sobre a possibilidade de violação de dados pessoais e a disseminação de informações incorretas, principalmente em tecnologias como a LLM (Grande Modelo de Linguagem), que é um modelo de aprendizado de máquina como o ChatGPT (OpenAI) e o Bard (Google), ferramentas de conversação. Para a OMS, deveria existir uma regulação da IA.

Um histórico brasileiro

Hoje, a IA é aplicada a exames radiológicos, na análise de padrões clínicos e no diagnóstico por meio de imagens. Está presente, também, em trabalhos burocráticos e administrativos, como fichas e documentações médicas. “A inteligência artificial vai impactar toda a cadeia da saúde”, afirma Giovanni Guido Cerri, professor da Faculdade de Medicina (FM) da USP e presidente do Conselho Diretor do Instituto de Radiologia (Inrad) do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina (FM) e do Inova HC.

A empresa Emerald já usa inteligência artificial para fazer o monitoramento remoto de pacientes. Essa mesma tecnologia pode ser usada para detectar doenças – como Parkinson – por meio de sinais vitais. Em outra área, a parceria entre a Nuance e a Microsoft automatizou as anotações clínicas por meio das ferramentas de linguagem da IA: os encontros entre paciente e profissional são documentados automaticamente. 

As possibilidades de sua aplicação em diferentes áreas da saúde aumentam a segurança do paciente, como na radiologia, onde algoritmos auxiliam na detecção de hemorragia intracraniana e tumor de mama. “Desenvolvemos um algoritmo de inteligência artificial para detectar tumores de fígado em pacientes que têm doenças crônicas”, explica Cerri. 

Essas inovações já estão em curso no maior complexo hospitalar da América Latina, o HC, localizado em São Paulo. Foi em 2020, no primeiro ano de pandemia da covid-19, que se percebeu a necessidade de fazer consultas à distância com os pacientes.

Com a IA, é possível mudar toda a dinâmica da teleconsulta. [Imagem: DCStudio/Freepik]
Das teleconsultas surgiram outras necessidades, que culminaram na criação de um laboratório de Inteligência Artificial no Instituto de Radiologia do HC e projetos de expansão da telemedicina: “A teleconsulta é apenas um pequeno item no projeto de saúde digital. Nós estimulamos startups a desenvolverem soluções de monitoramento de paciente, porque uma coisa é a teleconsulta, outra coisa é teleconsulta monitorada, onde é possível acompanhar durante a consulta uma série de parâmetros. Você pode monitorar, fazer fundo de olho, aferir pressão e batimento cardíaco.”

Revolução das máquinas

A IA consegue, por meio de dados e imagens, analisar exames clínicos de maneira acelerada e até mesmo captar sinais imperceptíveis ao olho humano.”Acho que isso ajuda a diminuir a fadiga do médico e, consequentemente, pode ajudar a melhorar a porcentagem de diagnósticos acertados”, afirma Fátima.

Em vez do profissional ficar responsável pela análise de milhares de imagens dos exames, a máquina pode fazer isso por ele. É uma economia de tempo que pode ser aplicada na relação com o paciente. 

Ainda, a IA é treinada por dados e exames existentes, que foram antes analisados e classificados por médicos. Esse trabalho prévio é essencial para a continuidade e evolução dos modelos de inteligência artificial. E, por mais que a tecnologia avance, quem assina os laudos clínicos ainda é o médico, de forma que a responsabilidade pelo diagnóstico e tratamento é inteiramente dele. 

“Se eu tenho uma base diversificada e bem treinada, essa ferramenta – usando a inteligência artificial – pode ajudar o médico dando uma segunda opinião”, diz a pesquisadora. A eventual substituição desses profissionais pelas máquinas com inteligência artificial levantaria questões éticas de responsabilidade, transparência, permissão e privacidade.   

Protagonismo das universidades 

A produção das ferramentas de IA no Brasil se concentra, majoritariamente, na pesquisa universitária. Segundo artigo publicado em agosto de 2020 pela revista Pesquisa Fapesp, “a maioria das iniciativas de IA voltadas à cardiologia no país está no âmbito acadêmico, mas já há produtos comerciais.”

Desenvolvido pela empresa britânica Ultromics e fruto de pesquisa realizada na Universidade de Oxford, na Inglaterra, o modelo EchoGo é capaz de detectar e realizar a fenotipagem de casos de insuficiência cardíaca. Na USP, somam-se mais de 100 grupos de pesquisa sobre o assunto.

Em 2023 foi fundado, em parceria entre a USP, a Universidade Estadual Paulista (Unesp) e a Universidade de Campinas (Unicamp), o Centro de Pesquisa em Engenharia e Ciência de Dados para a Indústria Inteligente (CDI2). Com intuito de ligar grupos de pesquisa em computação das três instituições, o projeto foi viabilizado por meio de uma campanha de financiamento organizada em conjunto pela Fapesp, Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Ministério das Comunicações (MCom) e o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

C4AI, outro centro de inteligência artificial de iniciativa acadêmica. Localizado no InovaUSP, no campus Butantã, é uma parceria entre IBM, USP e Fapesp. [Imagem: Marcos Santos/USP Imagens]
O CDI2 é, na prática, um Centro de Pesquisa Aplicada em Inteligência Artificial (CPA-IA). Trata-se de um entre oito centros de pesquisa cuja criação foi proposta pela campanha de financiamento. Além do CDI2, outros três desse grupo também se dedicam a pesquisas relacionadas à tecnologia de IA.

Fátima relata que, no Brasil, ainda há falta de integração entre a esfera acadêmica e o setor da indústria da tecnologia. “O nosso objetivo não é fazer e vender produtos, mas, sim, fazer pesquisa e gerar conhecimento,” ressalta. A pesquisa também defende o estabelecimento de parcerias para que esse conhecimento seja transferido de forma efetiva para o setor produtivo e, consequentemente, para a população.

Distribuição

Ainda que as ferramentas baseadas em modelos de inteligência artificial sejam inseridas no mercado, sua implantação prática e inclusiva se apresenta como mais um desafio. Há relatos de criação de políticas para que a tecnologia seja inserida no serviço de saúde pública, contemplando desde as Unidades Básicas de Saúde (UBS) até as Unidades de Terapia Intensiva (UTI) do Sistema Único de Saúde (SUS).

Segundo Cleinaldo de Almeida Costa, diretor do Departamento de Saúde Digital e Inovação (Desd) da Secretaria de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde (Seidigi-MS), em entrevista à Agência Brasil e à TV Brasil, o programa busca “repensar o acesso ao SUS por meio de aplicativos ou de uso de inteligência artificial ou de big data” e “redesenhar a saúde [no país] para os próximos 20 anos”.

O SUS Digital, nome que leva o programa, representa o primeiro de muitos passos em direção ao acesso pleno da população às tecnologias de IA aplicadas na área da saúde. Fátima relembra, no entanto, o alto custo de produção e aplicação adequada dos equipamentos. “Eu acho que a gente tem potencial de melhorar, mas tudo isso não é de graça, as ferramentas profissionais não são de graça, assim como os aparelhos de imagens. No fundo, para isso chegar para a população menos favorecida, não é trivial.”

Uma das metas do HC é trabalhar em melhorias que possam ser implementadas no SUS. “A saúde digital tem um custo muito baixo e é muito acessível, por isso vejo que a saúde digital pode chegar mais rápido ao cidadão e ao SUS”, diz Cerri.

Para isso, parcerias público-privadas podem ser um caminho. “Para que tenhamos algoritmos que possam ser utilizados aqui no país, inclusive num custo mais baixo, nós precisamos estimular o empreendedorismo, startups, parcerias com a indústria. E a Universidade, que tem muito conhecimento, muitos cientistas, professores e médicos, os quais têm conhecimento do assunto ajudam a desenvolver ideias.”

Além disso, Fátima reitera a demanda pela criação de mais políticas para a distribuição dessas tecnologias. Ela conta que, mesmo que a aplicação de modelos de IA na saúde tenha potencial de melhorar o atendimento aos pacientes e a precisão dos diagnósticos, a mera existência das ferramentas não é o suficiente para representar um avanço real na área. Para ela, urge a necessidade de programas de distribuição amplos e inclusivos, além da integração entre as tecnologias e os profissionais que realizarão sua aplicação.

Na experiência do Hospital das Clínicas, a saúde digital não pôde ser implementada sem antes modificar a experiência de seus profissionais. Um dos seus principais objetivos, além de reduzir a desigualdade no acesso do paciente à saúde, é reduzir a desigualdade na qualidade dos profissionais que atendem o paciente.

“Quando estávamos trabalhando no programa de saúde digital, foi feita uma pesquisa com os médicos e profissionais de saúde sobre o que eles achavam de utilizar a saúde digital como recurso, e foi quase unânime o apoio. Mas eles disseram que não se consideravam capacitados a utilizar a saúde digital”, explica Cerri.

Hoje, existe um curso online, oferecido pela Escola de Educação Permanente (EEP/HC/FMUSP), para que profissionais da saúde aprendam a conduzir da melhor forma suas teleconsultas. Residentes do Hospital das Clínicas também são orientados a fazer esse curso.

Entre 2020 e 2021, foram realizadas mais de 7,5 milhões de consultas por telemedicina, segundo dados da Associação Brasileira de Empresas de Telemedicina e Saúde Digital. A mesma associação previu, até o final de 2022, 30 milhões de teleconsultas para o público brasileiro. Dados mais recentes ainda não foram disponibilizados. 

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