Museus da USP adotam diferentes políticas de digitalização de seus acervos

Representantes do Museu de Arqueologia e Etnologia, Museu de Zoologia e Museu Paulista explicam o processo de digitalização dos acervos e comentam os impactos desse fenômeno

Crânio do Museu de Anatomia (MA) da USP na máquina de tomografia do Hospital Universitário (HU) - Imagem: Maria Fernanda Barros

Por Cecília Freitas, Gabriel Silveira, João Pedro Abdo, Joyce Tenório e Maria Fernanda Barros

A digitalização — ou virtualização — de acervos de museus ao redor do mundo não se limita apenas à reprodução visual das peças. O processo também inclui a democratização do acesso a tais obras, a documentação detalhada e a criação de recursos interativos. Com o auxílio de tecnologias avançadas, como scanners 3D e sistemas de realidade virtual, os museus têm a capacidade de oferecer experiências imersivas que vão além do que seria possível em um ambiente físico. Isso não apenas preserva a autenticidade do acervo, mas também proporciona uma compreensão mais profunda das próprias peças.

A virtualização de acervos é uma tendência observada há alguns anos e foi intensificada por conta das condições impostas pela pandemia de COVID-19. O Museu mais visitado do mundo, o Louvre, localizado em Paris, teve seu acervo virtualizado justamente por conta disso. Além dele, o Museu de Arte Moderna (MoMA), localizado em Nova Iorque, disponibilizou o acesso ao seu acervo digital em 2016, com obras de Van Gogh e Matisse. Por sua vez, o Museu Britânico, que não tem seu acervo digitalizado, anunciou este ano o processo de virtualização, que levará cinco anos.

No Brasil, o primeiro esboço de política pública direcionada a digitalização de acervos museológicos se deu em 2010, com a realização do Simpósio Internacional de Políticas Públicas para Acervos Digitais, fruto de uma cooperação entre o Ministério da Cultura, o Projeto Brasiliana da Universidade de São Paulo (USP) e a Casa de Cultura Digital. O Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE), o Museu do Ipiranga e o Museu de Zoologia (MZ) são três dos museus ligados à USP que possuem parte de seus acervos virtualizados. A partir deles, é possível compreender melhor como funciona todo esse processo e como cada museu tem suas individualidades em relação a metodologia de digitalização.  

Museu de Arqueologia e Etnologia 

A digitalização ou virtualização – como André Strauss, bioarqueólogo e coordenador do projeto, prefere chamar – do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) se iniciou em 2010 através de uma parceria com o Hospital Universitário (HU). O responsável pela criação deste projeto foi Rodrigo Elias de Oliveira, mestre pela Faculdade de Odontologia da USP e doutor pelo Instituto de Biociências da USP, que conseguiu estabelecer o trânsito entre os pesquisadores da arqueologia e seus colegas da saúde pública.

Segundo Strauss, trata-se de um projeto colaborativo com diversas unidades da USP e seu principal objetivo é de realizar tomografias dos acervos. “O nosso trabalho não se limita exclusivamente ao acervo do MAE. Ele também inclui acervos de outras unidades como o IB [Instituto de Biologia] e o Museu de Anatomia Humana do ICB [Instituto de Ciências Biomédicas]”.

No início, a parceria se dava somente com o HU e os pesquisadores do MAE tinham direito de usar os tomógrafos por duas horas, todas as quartas-feiras. A partir do desenvolvimento do projeto, foi estabelecido uma colaboração com o Laboratório de Caracterização Tecnológica (LCT) da Escola Politécnica (Poli) da USP. O LCT possui um Microtomógrafo, o que possibilita a produção de modelos 3D de peças menores do acervo.

Equipe do MAE organizando os remanescentes humanos na máquina de tomografia no HU – Imagem: Maria Fernanda Barros

Atualmente, a virtualização, de acordo com Strauss, também tem o objetivo de criar um acervo e uma exposição virtual, porém, esta não era a principal finalidade do projeto. “Inicialmente o objetivo era de pesquisa e não de conservação do acervo. Através dessas tomografias, a gente passa a ter acesso a aspectos desses materiais que não conseguiríamos ver sem imagens em 3D”.

Mas, conforme o acervo virtual foi se constituindo, o projeto ganhou novos propósitos. “A virtualização também funciona como backup de nossas peças, caso aconteça algum acidente. Outra vantagem é que diminui a necessidade de manipulação desse acervo. Toda manipulação leva a algum tipo de degradação, então a gente consegue minimizar. Por fim, a virtualização potencializa os mecanismos de democratização de acesso ao acervo.”

Em conjunto com o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), o MAE foi aprovado recentemente em um projeto da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) que possibilita a compra de grandes equipamentos. Com o objetivo de aumentar e diversificar seu acervo virtual, será criado o Laboratório Integrado de Virtualização de Acervos e um microtomógrafo será adquirido.

Museu de Zoologia

Interface do Tour Virtual do Museu de Zoologia – Imagem: Reprodução/Site do Museu de Zoologia

O projeto de digitalização do Museu de Zoologia (MZ) teve seu início em 2015 e contou com o apoio do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Segundo Marcelo Duarte da Silva, diretor do MZ, a iniciativa visou disponibilizar informações sobre o acervo para pesquisadores, educadores e o público em geral.

Mas o projeto não se limitou à digitalização e à produção de uma exposição virtual. “Ele [o projeto] também integra seus dados ao Sistema de Informação sobre a Biodiversidade Brasileira (SiBBr), facilitando o acesso e a disseminação das informações a nível nacional e internacional”, diz Silva.

Com o auxílio de softwares especializados como o Specify e de um microtomógrafo, o MZ processou mais de 1 milhão de amostras até 2023. De acordo com Silva, a digitalização  abrange uma vasta gama de grupos taxonômicos e possui acervos significativos de vertebrados e invertebrados.

Desde o início do projeto, um microtomógrafo foi adquirido e, segundo Silva, sua contribuição se estende para além do Museu. “A técnica de microtomografia é vital em várias áreas, como Ciências Biomédicas, Geociências, Ciências Agrárias, Medicina, Odontologia e Artes. Então, o microtomógrafo abrange um espectro diversificado de campos e contribui significativamente para o avanço do conhecimento.”

A digitalização, do ponto de vista do diretor do MZ, contribui para além da pesquisa e do conhecimento. Ela colabora com a conservação da biodiversidade e para um melhor entendimento dos ecossistemas e espécies. Isso, consequentemente, chama a atenção do Estado à produção de políticas públicas voltadas para a proteção ambiental. Silva ressalta que a digitalização é fundamental na formação de profissionais qualificados, pois as informações disponibilizadas no processo são recursos educacionais e de pesquisa de alta qualidade.

Museu Paulista 

Há aproximadamente 30 anos o Museu Paulista (MP) iniciou o processo de digitalização de seus acervos, conta Solange Ferraz de Lima, historiadora e professora do Museu. Foram três décadas de dedicação à alimentação de um banco de dados, com informações e imagens de referência das coletâneas. Neste ano, em janeiro de 2023, o MP apresentou ao público seu acervo digital na plataforma Tainacan, com o objetivo de garantir a “permanente democratização do acesso aos acervos e à produção de conhecimento desenvolvida a partir deles”, afirma Solange. 

Ao longo destes anos, houve outras três iniciativas de virtualização do acervo antes de chegar ao projeto atual. O primeiro programa de digitalização do Museu Paulista, realizado na década de 1990, foi desenvolvido pelo técnico informacional Luciano Beraldo, para armazenar acervos de documentos iconográficos, como fotografias, gravuras, desenhos, impressos e pinturas, e acervos de objetos tridimensionais. 

Nos anos de 2011 e 2012, foi elaborado um programa que apresentava, on-line, campos sumários para consulta. Cinco anos depois, em 2017, o edifício do Museu do Ipiranga foi fechado para reforma e se iniciou um projeto de upload de dados e imagens em domínio público para as plataformas Wiki. Graças a essas ações, atualmente o acervo digital do Museu Paulista possui mais de 33 mil imagens de documentos, afirma a professora. 

É possível acessar o acervo digital do MP no site da instituição. Ele se divide nas seguintes seções: documentos iconográficos, documentos textuais e documentos tridimensionais. Na primeira seção, estão presentes pinturas, desenhos, gravuras, fotografias, cartões postais, plantas,  mapas, materiais didáticos e papéis circulados no cotidiano — todos, em sua grande maioria, produzidos entre os séculos 19 e 20.

Processo de escaneamento de escultura para a digitalização – Imagem: Reprodução/Jornal da USP

Na seção de documentos textuais, foram reunidos ofícios, boletins, telegramas, diários de campo e correspondências de políticos ligados a vida política do Brasil, como o Movimento de Independência e a Revolução Constitucionalista de 1932, além de documentos relativos à construção do edifício que abriga o Museu. 

Por fim, a última seção armazena diversos objetos produzidos entre os séculos 16 e 20, sejam eles de uso pessoal e doméstico, como brinquedos, artefatos de decoração e equipamentos de cozinha, ou de uso público e profissional, como carruagens e ferramentas de ofícios urbanos. 

Com a disponibilização on-line dos acervos do Museu é possível perceber que houve uma maior divulgação das obras ao público, afirma Solange: “As visualizações de obras icônicas como Independência ou Morte, de Pedro Américo, alcançam milhões”. A equipe do MP acompanha o número de acessos aos acervos por meio de relatórios disponíveis nas plataformas, e os dados apontam que as visitas à plataforma Tainacan tem uma média de 9 mil acessos por mês. Apesar dos números altos, a professora diz que ainda existem melhorias a serem feitas na coleta dos dados dos visitantes da plataforma. “Estamos agora nesse processo”, diz.

Impactos da digitalização

Por ser um processo recente, as consequências da digitalização dos acervos ainda vem sendo avaliadas pelos próprios pesquisadores dos museus, mas, em geral, estes concordam em um aspecto: a democratização. Eles apontam que a disponibilização dos acervos online facilita o contato com as peças e a divulgação científica, porém, existem questionamentos sobre os impactos que a prática pode gerar sobre as visitações.

O professor Marcelo Duarte da Silva aponta essa hesitação: “Na minha perspectiva, a digitalização de museus tende a democratizar mais o acesso às obras e exemplares animais (no caso do Museu de Zoologia), pois permite que pessoas de todo o mundo vejam coleções que de outra forma não conseguiriam acessar devido a limitações geográficas ou físicas. No entanto, há também uma preocupação de que a disponibilidade digital possa diminuir o interesse em visitas presenciais aos museus”. 

Para André Strauss, a valorização do original e do contato direto com as obras ainda ultrapassa qualquer experiência digital, descartando a digitalização como uma ameaça às visitações. O pesquisador defende que a preocupação deve se voltar para outro aspecto: o controle sobre os direitos de imagem das peças em ambientes virtuais e o cuidado para que os museus estejam resguardados sobre o uso e veiculação desse material. 

“A solução é ter um controle muito rigoroso de permissões de uso desse material e aplicar aos modelos tridimensionais a mesma lógica que se aplica a uma fotografia. Quando entra lucro a situação muda muito, então diria que o perigo é muito mais a possibilidade de piratear os acervos, especialmente em uma lógica de neo-colonialismo científico ou de exploração comercial”, afirma Strauss.A visão mais comum dos pesquisadores sobre a digitalização dos acervos é otimista, mas sugere ajustes e melhorias em seu desenvolvimento. Para Solange, esse é um processo “fundamental”, mas garantir uma difusão virtual de qualidade ainda é um grande desafio para as instituições que preservam acervos: “Não vejo impactos negativos neste processo, mas, sim, o enorme desafio de desenvolver programas e projetos em ambiente digital com conhecimento das ferramentas”. Segundo a historiadora, isso depende de um processo contínuo de formação de equipes multidisciplinares capazes de operar neste território. “Esse é um desafio que extrapola os museus.”

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