Vacina contra febre reumática será testada em humanos

Doença acomete principalmente crianças e pode se desenvolver a partir de inflamação na garganta

A formulação da vacina foi feita no Instituto Butantã e aguarda o início dos testes em pessoas, que confirmam sua segurança. (Imagem: Arquivo de Luiza Guilherme)

A vacina contra a febre reumática, doença autoimune que ataca as células do coração, deve entrar na fase de testes em humanos ainda este ano. Desenvolvida por pesquisadores do Instituto do Coração (InCor), na Universidade de São Paulo (USP), ela já foi testada em camundongos e em mini porcos obtendo sucesso.

A febre reumática comumente tem origem após uma faringite não tratada causada pela bactéria Streptococcus pyogenes e acomete crianças e adolescentes que possuem determinados fatores genéticos. Assim, pessoas que apresentam certos genes, que predispõem a doença, desenvolvem uma resposta autoimune para a inflamação da garganta. Ou seja, os anticorpos gerados pelo organismo para combater a bactéria acabam atacando células saudáveis do coração.

Portanto, a intenção da vacina é gerar anticorpos apenas contra a Streptococcus pyogenes e que não ataquem as células do coração do próprio paciente. A imunização será testada, primeiramente, em 48 indivíduos adultos saudáveis, que serão divididos em vários grupos e que receberão doses diferentes da vacina. Trata-se da fase I/IIa de testes, que se propõe a medir a capacidade de gerar anticorpos protetores, além da segurança da vacina candidata.

Após essa etapa, a vacina passará ainda pelas fases IIb e III, antes de chegar a IV e última, que envolve a distribuição do produto no mercado. A segunda fase foca no teste da eficácia da imunização e a terceira engloba os testes em populações maiores e diferenciadas, para garantir que a imunização é eficiente para todas as pessoas, independente de suas características genéticas — o que pode variar em diferentes países e entre diferentes etnias.

É válido ressaltar ainda a febre reumática afeta principalmente crianças e adolescentes. Segundo Roney Sampaio, pesquisador do grupo e responsável pelo ensaio clínico em humanos, isso se deve ao início da interação social. “A criança entra em contato com essa bactéria com 4 ou 5 anos de idade, porque ela começa a se aproximar de outras na escola, na creche, e assim, uma vai passando para outra”, explica.

Esse contato precoce com a bactéria, combinado com a falta de tratamento eficaz e a predisposição genética, faz com que crianças muito novas passem por cirurgias cardíacas para reparar o dano nas válvulas do coração. “Tem crianças que operaram muito cedo, com 5 anos. E aí, com 10, 15 anos eles precisam fazer uma segunda ou terceira cirurgia. A qualidade de vida é muito ruim”, diz Luiza Guilherme, pesquisadora da equipe e responsável pelo desenvolvimento da vacina.

Um pouco mais sobre faringite e febre reumática

As inflamações causadas pela bactéria Streptococcus pyogenes são, na verdade, facilmente tratadas com antibióticos comuns, como a penicilina-benzatina. No entanto, regiões mais pobres sofrem com a falta de acesso a esses medicamentos e, por isso, a febre reumática é uma doença também muito relacionada às condições socioeconômicas de uma população.

Apesar do tratamento com antibióticos de fácil acesso, as sequelas da febre reumática oneram altamente o Sistema Único de Saúde (SUS). “No ano de 2015, foram gastos quase 6 milhões e meio por conta das cirurgias cardíacas, das próteses e internações por insuficiência cardíaca. É um gasto enorme, enquanto você pode investir em uma vacina”, explica Luiza.

Ela também aponta que não existem muitos dados e pesquisas disponíveis sobre os casos de febre reumática no Brasil, mas conta que a maioria dos pacientes vem do nordeste do País para se tratar no Instituto do Coração. Já em relação a outros países, a doença atinge principalmente africanos e australianos.

Os primeiros sintomas da febre reumática envolvem dores nas articulações e manchas na pele. E a doença pode afetar não só o coração, mas também outros órgãos como o cérebro e os rins, causando glomerulonefrite pós-estreptocócica. Além disso, o não tratamento da faringite estreptocócica, seguido da falta de diagnóstico da febre reumática, pode fazer com que as pessoas desenvolvam sérios problemas cardíacos. A doença cardíaca reumática é uma das suas complicações.

Entretanto, apesar de grave, a doença não é tão comum. Roney também explica que apenas 3% a 4% das pessoas com infecção de faringe são suscetíveis a doença reumática, já que tudo depende de uma condição genética.

Grupo pioneiro

O grupo do Instituto do Coração, dirigido por Jorge Kalil, estuda a doença há 30 anos e também foi responsável por mudar o histórico da sua patogênese. Foram eles que demonstraram, pela primeira vez, que havia um efeito de autoimunidade relacionado a febre reumática. Sendo assim, os pesquisadores apontaram que ocorria reação cruzada, ou seja, um anticorpo criado para um antígeno A acabava reconhecendo um antígeno B, contra o qual ele não foi especificamente gerado.

O grupo liderado por Luiza Guilherme também conta com 7 biólogos, mestres e doutores, e Roney Sampaio, cardiologista. A experimentação animal é liderada por Edilberto Postol e por Luis Carlos Sá, veterinário da equipe. Juntos, o grupo já publicou diversas pesquisas sobre a febre reumática com destaques em editoriais de revistas internacionais. Além de ganharem prêmios como o Unibanco de Saúde, em 1997, na categoria Médico Científico e, neste ano, o 2° lugar do Prêmio Socesp (Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo), pelo trabalho que avaliou a segurança da vacina candidata através de ecocardiograma realizado em mini porcos após a imunização.

A pesquisa sobre a patologia e o desenvolvimento da vacina tem sido financiada pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), pela BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e pela CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

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