Novo Ensino Médio: o que pode mudar com o governo Lula

Especialistas acreditam que as iniciativas em prol da educação, feitas no novo cenário político, carregam benefícios para os estudantes, mas ainda carecem de revisão

O Novo Ensino Médio busca incluir disciplinas optativas na grade escolar, com o intuito de auxiliar na formação profissional dos estudantes. Fonte: reprodução Freepik

Por Camilly Rosaboni, Ingrid Andrade Gonzaga, Gustavo Roberto da Silva, Julia Ayumi Takeashi e Tulio Gonzaga Shiraishi

Em outubro de 2023, foi enviado pelo Governo Federal ao Congresso Nacional um Projeto de Lei (PL) que propõe mudanças no Novo Ensino Médio. A iniciativa surgiu em resposta a uma série de críticas ao modelo estabelecido pela Lei nº 13.415/17, que está em fase experimental desde 2020. Discussão polêmica durante as gestões anteriores, o ensino básico do país voltou aos holofotes com o presidente Lula, historicamente relacionado às pautas educacionais.

Após sofrer pressão de grupos como a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e a União Nacional dos Estudantes (UNE), além de professores, pais e alunos em oposição ao modelo, o então projeto do Novo Ensino Médio precisou ser revisado. Entre os principais argumentos contra o formato de ensino estão a falta de formação adequada aos professores, menos espaço para disciplinas obrigatórias e desigualdades entre escolas públicas e privadas. Por ora, o modelo atual segue em vigor. 

Para Felipe Avelino, professor de ciências humanas na Escola Técnica Estadual (Etec) Professor Camargo Aranha desde 2013, o projeto de lei apresentado pelo governo vigente é importante para se aproximar do que era o antigo modelo de ensino, ajudando os estudantes a serem menos prejudicados. “O Novo Ensino Médio aumentou ainda mais a diferença entre o ensino básico público e o ensino privado”, afirma, ressaltando que as unidades privadas conseguem realocar as disciplinas técnicas para não prejudicar a grade curricular. 

A avaliação é semelhante à de Fernando Cássio, professor da Faculdade de Educação (FE) da USP. “Eles fizeram uma reforma educacional vastíssima, cheia de detalhes, que faz mil promessas maravilhosas para os estudantes, dizendo que eles vão poder escolher, ter curso técnico, que as escolas vão ter carga horária, mas nada disso se cumpre, porque é uma reforma que não envolve construir uma sala de aula, melhorar as condições de trabalho do professor e mudar as condições de permanência dos estudantes”, afirma o docente, que é um dos signatários da nota técnica, assinada por mais de 30 pesquisadores, que cobra um equilíbrio entre as disciplinas ao longo dos três anos de ensino médio. 

O que o projeto de lei propõe 

As propostas do Ministério da Educação (MEC) giram em torno de um favorecimento das disciplinas obrigatórias em detrimento das optativas. Das 3.000 horas-aulas ao longo dos três anos, 2.400 horas serão para disciplinas obrigatórias e 600 horas para as optativas. Passam a ser obrigatórias, durante todo o ensino médio, as disciplinas de língua portuguesa e suas literaturas, língua inglesa, língua espanhola, arte, educação física, matemática, história, geografia, sociologia, filosofia, física, química e biologia.

Outro ponto importante a ser modificado após a possível aprovação do projeto de lei está nos profissionais que lecionam o conteúdo. No modelo atual, as redes de ensino podem contratar profissionais com notório saber para dar aulas nos cursos técnicos em áreas afins à sua formação ou experiência profissional. Com a mudança, será feita uma regulamentação de quando esses profissionais não licenciados poderão atuar no ensino médio. 

Faz o L de Leis

Assim como foi feito o projeto de lei para reformular o Novo Ensino Médio, outras ações com discurso em prol da educação foram promovidas pelo governo Lula, como a poupança para alunos do ensino médio e o Prontos pro Mundo, para incentivar o intercâmbio, ambos divulgados este ano. Para Cássio, trata-se de ações pouco eficazes. “É um eufemismo. Eles estão oferecendo um prêmio em dinheiro para quem concluir o ensino médio. Não é uma política de permanência, que garanta a subsistência para que aquela pessoa possa frequentar a escola e não precisar trabalhar durante o dia”, afirma ele, discutindo sobre o programa de poupança. 

Além disso, em 2023, foi revogado o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), estabelecido durante o governo de Jair Bolsonaro, por meio do Decreto 10.004/19, que incentivava a participação de militares em processos educacionais, pedagógicos e administrativos, sem atuarem em sala de aula.

Entretanto, para Avelino, a boa vontade presente no governo Lula em aumentar ações voltadas à educação pode ser abafada pela pressão de deputados contrários a essas medidas e que estão fazendo parte da discussão, como a Bancada da Bíblia e o Centrão. “São pessoas que não estão prontas para discutir um tema tão importante como esse. É como se tratássemos a nossa maior riqueza, que é a educação básica, nesses grupos, que, na minha visão, não estão preocupados com o ensino, porque não há interesse nessa mudança”, afirma o docente.

O que é o Novo Ensino Médio

Aprovado em 2017, o Novo Ensino Médio busca tornar mais atrativa a última etapa da educação básica, com a possibilidade dos estudantes escolherem quais áreas desejam atuar. As alterações seguem acontecendo até 2024, e vem sendo alvo de críticas de pais, alunos e professores.

A mudança no ensino médio vem para reduzir a evasão escolar. Segundo dados do IBGE de 2019, 11,8% dos jovens entre 15 e 17 anos (aproximadamente 1,1 milhão) estavam fora da escola. Em comparação a alunos de 6 a 14 anos, a taxa de presença era de 99,3%. 

Entre as principais mudanças, está o aumento da carga horária. Em 2022, estabeleceram-se cinco horas diárias. Cerca de 60% das aulas são comuns aos estudantes, a partir da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A outra parte é destinada a aprofundar áreas do conhecimento, como linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e ensino técnico. Atualmente, apenas as disciplinas de matemática e língua portuguesa são obrigatórias durante os três anos do ensino médio.

A outra novidade está na disciplina Projeto de Vida, incluída na grade curricular. O objetivo é incentivar os alunos a refletirem sobre seu futuro, por meio de atividades, oficinas e cursos.

Mais trabalhadores, menos estudantes

Um dos objetivos do Novo Ensino Médio é promover o empreendedorismo e o ensino profissionalizante, para que os alunos já saiam deste nível educacional com uma profissão. Apesar da bonita descrição, esse viés pode ser prejudicial para emplacar o conteúdo da BNCC. “A escola deixou de ser uma formação para a vida e passou a ser uma formação para o trabalho”, afirma Avelino. 

Em sua experiência na Etec, o professor identificou diversas situações em que os alunos se frustraram com a escolha feita para o ensino profissionalizante. “Eles me dizem ‘professor, fiz administração lá atrás, mas agora não quero mais’. E não tem como voltar atrás, eles já perderam conteúdo”, conta.

“O ensino médio é a possibilidade que o aluno tem de se encontrar com diferentes áreas. Então, hoje, a educação se dá para a formação para o mercado de trabalho, não para a formação de um cidadão crítico ou de alguém que busca mudança social”, afirma Avelino, comentando sobre a expectativa de que esse conhecimento seja atingido no mercado de trabalho.

Além disso, as aulas optativas dividem espaço com as tradicionais, de forma que o conteúdo da BNCC é reduzido para caber no tempo de aula. “O estudante se vê numa situação de não saber responder [o ENEM e a Prova Paulista]. Mas isso acontece porque ele não estudou? Não, ele é um bom aluno, mas ele de fato não teve a possibilidade de ter o ensino de forma plena”, exemplifica o professor da Etec, que leciona algumas das disciplinas mais prejudicadas pelo modelo: história e sociologia.

Cássio defende que as aulas de conteúdos extras sejam ensinadas no contraturno das aulas. “Algumas escolas privadas têm aulas para fazer brigadeiro gourmet, só que aprendem no contraturno da escola, não na hora da aula de química e física. Essa é a diferença”, exemplifica o professor, ressaltando a importância de se ter conteúdos diversos nas aulas, mas sem impactar o currículo escolar. 

Conteúdos obsoletos?

Um dos argumentos usados para respaldar o Novo Ensino Médio é de que o conteúdo ensinado é ultrapassado e não será usado no dia a dia dos estudantes após os vestibulares. Cássio vai de encontro a essa ideia, ressaltando que o conhecimento ajuda a pensar certos assuntos diários, como o caráter político de uma greve dos trabalhadores. “Podemos achar essas coisas inúteis, aliás, elas são. Mas essa é a beleza do conhecimento. Ele pode ser inútil, mas expande a nossa vida e a nossa existência”, afirma o professor da FE.

“Defendo que a escola tenha conteúdo. Como é que vai aprender a pensar, a ser empreendedor, se você não tem de onde tirar? O conhecimento produzido na história é de onde vamos tirar as nossas escolhas”, afirma Cássio. “Não adianta dizer que a rede social está destruindo a capacidade das pessoas de ler e interpretar fenômenos complexos, ou que as pessoas não sabem mais identificar a ironia no Twitter ou, ainda, que as pessoas votam em fascista. Tem um monte de coisas que acontecem porque descuidamos dos nossos sistemas educativos de massa.”

Um olhar divergente

A proposta formulada pelo novo governo federal, apesar de ter alterado questões que eram alvo das maiores críticas de especialistas da educação, não é considerada a melhor por unanimidade. Neste mês, José Mendonça Filho (União Brasil-PE) e ex-ministro da Educação do governo Temer, apresentou ao Congresso um projeto de lei substitutivo ao proposto em outubro. Na prática, o PL de Mendonça Filho volta atrás em quase tudo o que foi sugerido pelo PL do governo Lula.

Como um dos principais pontos, o texto sugere que a carga horária da Formação Geral Básica do Ensino Médio seja de 2.100 horas, contra as 2.400 horas sugeridas pelo MEC. A justificativa diz que as 300 horas a mais atrapalhariam e até inviabilizariam a oferta de alguns cursos técnicos. A proposta de Mendonça Filho também permite que sejam contratados profissionais de “notório saber”, não necessariamente com formação na área em que irão trabalhar.

Em seu site, a organização Todos Pela Educação (TPE) analisou o substitutivo e considerou-o um avanço em comparação ao apresentado pelo Ministério da Educação. A Agência Universitária de Notícias (AUN) tentou entrar em contato com o TPE mas não obteve resposta até a finalização da reportagem.

A análise realizada pela organização, que é inteiramente financiada por capital privado, coloca como positiva a permissão para contratação de profissionais de “notório saber”, afirmando que isso auxiliará na ampliação do ensino técnico. O estabelecimento de 2.100 horas como um mínimo de carga horária para a formação básica é considerada por ela também uma maneira de integrar o ensino médio ao profissionalizante. Outros pontos propostos, como a organização das matérias pelas áreas de conhecimento usadas no Exame Nacional do Ensino Médio, foram analisados como benéficos pelo TPE.

Mas, mantendo a dificuldade de se conseguir um consenso na pauta do Novo Ensino Médio, o Todos Pela Educação sugere algumas alterações no substitutivo. Entre elas, está a fixação de um prazo para o estabelecimento do ensino integral de sete horas nas escolas do País. Segundo a organização, esse modelo, que já é seguido em outros países, possibilitaria maior integração entre educação básica e ensino técnico e corrigiria defasagens criadas na pandemia. Determinar como o Enem se associará ao Novo Ensino Médio é outra das questões não citadas pelos dois projetos de lei, que são alvos de críticas.

No dia 13 de dezembro, a Câmara dos Deputados votou pela urgência do projeto de lei do Novo Ensino Médio. O caráter de urgência havia sido retirado pelo governo dois dias antes. Isso faz com que o projeto possa ser oficialmente votado no Plenário a partir da semana seguinte à determinação, mas, com o recesso de final de ano próximo, é provável que isso ocorra apenas em 2024.

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