Por Beatriz Pecinato, Caio Andrade, Júlia Galvão, Luana Takahashi e Raquel Tiemi
Um em cada três ataques contra escolas registrados no Brasil aconteceu em 2023, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Apenas entre 2022 e o início deste ano, 13 casos já haviam sido registrados — número que supera o total de ataques ocorridos nos últimos 20 anos. Entre as diferentes ocorrências que ganharam destaque nesse contexto, encontra-se o ataque contra uma creche em Blumenau (SC), que deixou quatro crianças mortas e cinco feridas.
Além desse caso, foram registrados ataques em todas as regiões do país. Em quase todos os episódios, as pessoas que frequentavam as escolas ficaram feridas ou foram mortas. Um mapeamento feito pelo Instituto Sou da Paz aponta que o número de massacres apresentou um crescimento em número e letalidade em 2019, ano marcado pela flexibilização do acesso a armas promovido pelo governo de Jair Messias Bolsonaro, ex-presidente da República. Desde o registro do primeiro caso no Brasil, foram contabilizados 24 casos com 137 vítimas, sendo que 45 pessoas morreram.
Daniel Cara, cientista político e professor da Faculdade de Educação (FE) da Universidade de São Paulo (USP), explica que os fenômenos que vêm acontecendo no Brasil se inspiram em casos que acontecem nos países do Norte global, com destaque para os Estados Unidos. “Infelizmente, é possível dizer que esse é um fenômeno que já está enraizado na sociedade brasileira e que se articula fortemente pela internet”, relata o especialista.
O professor aponta que os casos nacionais, apesar de se inspirarem no exterior, passam a contar com características próprias. os ataques que costumavam ser realizados por jovens brancos e heterossexuais, começaram a incluir uma população cada vez mais ampla. “Estamos entrando em uma fase de normalização e estetização do crime. Isso significa que ele se torna normal e ao mesmo tempo cria características estéticas”, destaca Cara.
Compreender os motivos que colaboram com o aumento desses ataques parece ser um dos principais caminhos para delimitar políticas de controle nesse campo. Dessa forma, o professor pontua que a raiz do crescimento desses casos encontra-se na permissividade do governo anterior com relação ao discurso de ódio, com o uso de armas de fogo e com relação à ausência de regulamentação das plataformas digitais.
Universo midiático
No passado, os ataques a escolas eram articulados na chamada Deep Web – Zona da internet que não pode ser detectada facilmente por buscadores tradicionais e é restrita apenas para alguns usuários. A partir do ataque de Suzano, ocorrido em 2019, eles passaram a ser estruturados pelas plataformas digitais, como Twitter, Facebook, Telegram e Discord.
Essa mudança na dinâmica trouxe mais uma camada ao fenômeno e fomentou a discussão sobre a possibilidade de uma regulamentação das redes sociais. Até o momento, diferentemente de outros países, o Brasil não possui uma legislação que determine o controle e responsabilização das plataformas. Um projeto de lei recente, que ficou conhecido como Lei das Fake News, visava estabelecer normas de transparência, de combate à desinformação e responsabilidade dos provedores. Muitas foram as opiniões sobre o projeto, contrárias e a favor, que dividiram o debate público sobre a questão.
“A internet é o ambiente em que tudo se realiza previamente ao ataque e mesmo depois dele. É por onde comentam e exaltam a ação”, explica Cara. O professor também esclarece que os autores dos ataques não mais realizam o ato buscando a própria morte como conclusão. Essas pessoas preocupam-se, sobretudo, em ganhar notoriedade pública com a ação que consideram corajosa e destemida. Por isso, as redes sociais são usadas como parte fundamental neste processo: por lá, os apoiadores e incentivadores podem acompanhar a repercussão e tecer comentários.
Marilene Proença, professora do Instituto de Psicologia (IP) da USP, contou que estudos recentes da área já pesquisam sobre o avanço de grupos defensores do extremismo de direita nas plataformas, cooptando jovens e adolescentes. No último ataque à escola de Sapopemba, na Zona Leste de São Paulo, o portal Metrópoles teve acesso exclusivo a conteúdos trocados entre o aluno e integrantes de um grupo no Discord. Após o crime, os membros lamentaram o saldo de vítimas, “uma morte, que cara merda’’. As mensagens também mostraram que o estudante havia mandado anteriormente fotos da instituição de ensino e recebeu orientações dos administradores do grupo para o planejamento do ataque.
Saúde mental de professores
Além da sobrecarga de tempo, os professores são muito afetados psicologicamente nesses ataques. A pressão, a cobrança e a responsabilidade depositadas sobre os educadores são grandes. Para ajudá-los, Cara reitera a importância do desenvolvimento de políticas públicas de saúde mental nas escolas, tanto para docentes, quanto para discentes.
O estudioso entende que um ambiente adequado para o educador também é relevante para uma atitude mais calma e efetiva nestes acontecimentos, principalmente baseando-se nas condições das escolas públicas, estaduais e municipais. Os ataques, porém, não ocorrem somente em instituições públicas. “Os ataques são cometidos em estabelecimentos públicos e privados, no mesmo grau de ocorrência estatística”, explica Cara. O fato de um ambiente estudantil ser privado não significa que este está mais protegido dos ataques. “O que acontece é que aquele ambiente da escola particular pode ser mais fácil de adquirir mudanças positivas.”
No videoclipe da música Dona de Mim, da cantora IZA, é encenado um ataque a uma escola. Ao interpretar a persona da professora, a artista Josi Lima defende seus alunos, mas não deixa de mostrar o medo que sente por ela e pelos demais. Embora vista como heróica, a atitude de defesa realizada pelos educadores exige elementos que transbordam, unicamente, o seu ofício de educador. Aparatos técnicos e emocionais devem ser ofertados para os docentes, para que saibam, minimamente, e de acordo com as possibilidades momentâneas, agir nesses ataques.
Reparação psicológica
Acontecimentos como esse podem deixar marcas psicológicas profundas na vida de quem os vivencia, gerando o conhecido Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TSPT), por exemplo. A Pfizer, empresa de soluções médicas, define a TSPT como “um tipo de transtorno de ansiedade que pode se desenvolver em pessoas que vivenciaram um evento traumático. Essa condição causa sofrimento intenso e prejuízos a vários aspectos da vida, como trabalho e relacionamentos”. Assim, um acompanhamento psicológico pós-trauma é importante para que o aluno não perca a vontade e a força de permanecer no espaço educacional.
A assistência prestada após o ataque ocorrido na manhã do dia 13 de março de 2019, na Escola Estadual Raul Brasil, da cidade de Suzano (SP), é um exemplo disso. O atentado deixou 7 mortos no total, sendo cinco estudantes e dois funcionários. Os responsáveis pelo crime foram dois ex-alunos do colégio. Após o ato, um deles atirou no companheiro e depois tirou sua própria vida.
De acordo com Dulce Ramos, psicóloga e coordenadora da Rede de Atenção Psicossocial do Município de Suzano, no dia do atentado à escola, houve muito apoio das universidades para lidar com as suas consequências, principalmente com relação ao psicológico dos envolvidos. “Tivemos um grupo de professoras e universitárias ligadas à USP que nos apoiaram em uma formação rápida das pessoas com os primeiros cuidados psicológicos que devem ser tomados, para que pudessem fazer o acolhimento daqueles que foram afetados pelo episódio”, informa.
“É difícil falar em redução de danos, porque esse é um tipo de crime que não pode ocorrer e está ocorrendo”, estabelece Cara. Segundo ele, as medidas após o evento traumático, devem trabalhar no sentido de promover uma recuperação e reparação emocional da comunidade escolar.
Na visão de Dulce, o preparo dos serviços de saúde diante de situações de crise deve ser uma medida primordial e que tem sido desenvolvida pelo Estado após experiências como a Boate Kiss e os desastres de Mariana e Brumadinho. Um recurso indispensável para auxiliar nesse processo é o guia de Primeiros Cuidados Psicológicos, estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que pode ser utilizado por qualquer profissional.
O atendimento médico, não apenas psiquiátrico e medicamentoso após os eventos traumáticos, contribui em grande medida para o cuidado mental da comunidade. “Um fenômeno de violência pode acabar ativando um sofrimento que já estava instalado, mas não quer dizer que esse sofrimento seja uma doença ou que tenha um diagnóstico”, considera Dulce.
As políticas públicas voltadas para o cuidado psicológico devem ir além da patologização do sofrimento e focar na abertura de espaços de diálogo sobre as experiências e angústias, aponta a pesquisadora. No município de Suzano, por exemplo, Dulce cita o projeto Cola no SUS, em que adolescentes foram incentivados a participar de rodas de conversa mensais sobre os mais diversos assuntos, como saúde mental, direitos humanos, sexualidade e identidade de gênero.
“É super bacana, porque uma vez por mês o Cola no SUS é aberto para os adolescentes da escola e da comunidade, não é para tratamento, não é consulta médica, não é para pegar a receita, é para colar no SUS e falar sobre saúde”, conta. Dessa forma, ela conclui que as políticas de saúde mental para a reparação psicológica das consequências desses eventos devem focar em oferecer suporte emocional para processar os acontecimentos, ao invés de apenas fornecer diagnósticos e soluções medicamentosas para o sofrimento.
Responsabilidade do Estado
A proteção da criança e do adolescente é assegurada, com absoluta prioridade, como dever da família, da sociedade e do Estado, de acordo com o art. 227 da Constituição Federal de 1988. Em um cenário de crescente violência em ambientes escolares, cabe ao governo elaborar ações que tentem entender suas complexidades e, com isso, criar medidas para enfrentar a problemática. O recente relatório produzido pelo Ministério da Educação, intitulado Ataques às escolas no Brasil: análise do fenômeno e recomendações para ações governamentais, pode orientar a formulação de políticas públicas. Daniel Cara, também relator do trabalho, afirma que foram pensadas cerca de 13 medidas que contemplam aspectos legais, psicológicos e educacionais.
Dentre as principais ações, Cara destaca a importância de uma melhor regulamentação e fiscalização do porte de armas e o controle das plataformas digitais. O professor relembra o caso da escola de Sapopemba, em que a arma utilizada pelo menino se tratava de um porte não legalizado de seu pai. “Se houvesse uma política de controle de armas, isso teria sido evitado e a vida de uma menina teria sido preservada”, ressalta o professor.
A responsabilização das plataformas digitais diante desses acontecimentos se mostrou possível após os desdobramentos do julgamento de 8 de janeiro. Empresas como Telegram e WhatsApp, que mediaram a organização dos atos antidemocráticos, foram indiciadas juntamente aos réus do caso. “As plataformas não são localizadas, juridicamente, no Brasil, têm foro jurídico nos Estados Unidos. Então, não pode ser uma solução só brasileira, mas o Brasil pode atuar a partir do próprio STF”, argumenta Cara.
Prevenção
Na esfera escolar, Marilene aponta a necessidade de equipes multidisciplinares e multiprofissionais, previstas na lei 13.935 de 2019, para uma melhor compreensão das dificuldades no ambiente escolar. “A escola brasileira tem se deparado historicamente com grandes desafios, quando analisamos os altos índices de exclusão nas escolas das classes trabalhadoras e o aprofundamento da desigualdade social na ausência de políticas públicas”, afirma a professora.
Além disso, Marilene menciona a demanda por uma política educacional que integre a convivência escolar ao processo de aprendizagem. Para isso, são necessários espaços de diálogo e reflexão abertos para discutir questões que não se limitam ao ambiente escolar, como violência doméstica, racismo, machismo e LGBTQIA+fobia. “As condições de promoção das relações precisam ser construídas coletivamente, por meio de uma proposta educacional permanente, democrática e que envolva os diversos segmentos da escola e da comunidade, permitindo que novas formas de convivência sejam possíveis”, explica.
Mesmo com o estabelecimento de um certo protocolo do FBI baseado em fugir, se proteger e – em caso de nenhuma das duas funcionar – enfrentar, Cara afirma que os comandos mais geram angústia do que resultados efetivos na segurança. Além disso, a partir de um treinamento deste protocolo, o aluno que planeja um ataque pode detectar suas falhas para usá-las a seu favor.
“O problema do protocolo é que ele não pode gerar mais estresse do que a inexistência dele e tem que ser verdadeiramente efetivo”, destaca o professor acerca das chamadas medidas columbiners, que não são consideradas úteis. Por exemplo, ao implantar muros mais altos e concertinos, a entrada dos próprios agentes de segurança é dificultada quando há a interdição dos portões, assim como a instalação de um detector de metais já pode instaurar um clima de violência no ambiente escolar.
Cobertura de casos de violência
Casos de violência escolar costumam repercutir por longos períodos na mídia, mesmo depois de anos do seu acontecimento e encerramento. No caso do ataque de Suzano, alguns veículos ainda noticiam o episódio, que já completou mais de quatro anos.
Não existe um consenso no jornalismo sobre como cobrir casos de violência – tanto autoprovocada quanto hetero provocada –, mas existem alguns manuais que ajudam a nortear a produção de matérias dessa natureza. A Associação de Jornalistas da Educação (Jeduca) publicou uma cartilha que contém recomendações sobre como cobrir ataques em escolas. O documento é resultado de um Grupo de Trabalho de Especialistas em Violência nas Escolas instituído pelo Ministério da Educação (MEC).
No relatório, os especialistas evidenciaram que coberturas extensas de casos de violência escolar podem influenciar jovens e adolescentes a fazerem o mesmo. A mídia, nesse caso, é responsável por disseminar os ataques através da veiculação de imagens e publicações de matérias. Na cartilha, os profissionais indicam que: “quanto maior a exposição do agressor na mídia, maior a sua notoriedade, que geralmente é um dos objetivos dos ataques a escolas. Uma grande exposição do agressor gera um processo de ‘santificação’ do agressor entre seus pares, porque ele passa a ser visto como um grande exemplo”, e “a difusão de fotos e vídeos do ataque funciona como um incentivo à repetição do acontecimento porque é vista pelos pares como um reforço à sua suposta competência. Além disso, a divulgação dos detalhes serve para criar um modelo para outros atentados”.
As recomendações da organização também podem ser pensadas para a divulgação de casos de violência auto provocada. Em 1774, Johann Wolfgang von Goethe publicou o livro Sofrimentos do Jovem Werther, em que o personagem principal cometeu suicídio por não conseguir ficar com a pessoa amada. Anos depois do lançamento da obra, o número de casos de suicídio na Europa aumentou consideravelmente, e alguns profissionais perceberam o quão danoso é divulgar abertamente casos desse tipo.
Dulce acredita que um grande erro da mídia, ao cobrir o ataque de Suzano, foi a falta de humanidade dos profissionais, que muitas vezes transformaram o sofrimento das famílias em furos de notícia. Outro problema relacionado à cobertura do caso está na valorização do fenômeno da violência. “Toda essa especulação em torno do agente promotor da violência não faz serviço nenhum para comunidade”, aponta Dulce. Para a profissional, é mais importante noticiar as estratégias adotadas por organizações locais e tomadas de decisão bem sucedidas, do que noticiar amplamente as violências cometidas.
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