Novo Ensino Médio começa a ser implementado sem resolver problemas do antigo modelo

Criado em um contexto conturbado, projeto promete combater evasão e melhorar educação brasileira, mas enfrenta críticas e desafios na implementação

Imagem: Reprodução/Prefeitura de Macau RN

Por Antonio Misquey, João Francisco Motta Aguiar, João Pedro Barreto, Lucas Torres, Reginaldo Ramos e Valentina Moreira

O Ensino Médio brasileiro é alvo de constantes críticas há décadas. Em meio a jovens que abandonam o ensino básico, escolas que são alheias às necessidades do aluno e adolescentes que se formam sem saber o básico, esse sistema é considerado um modelo falho por grande parte da população. Em 2022, o Novo Ensino Médio começou a ser implementado e promete tirar o Brasil das baixas posições nos rankings internacionais de ensino, buscando aproximar o ensino da vida dos alunos e tendo como objetivo cumprir as ações previstas no Plano Nacional de Educação (PNE).

Por outro lado, a reforma recente é acusada de não garantir condições de permanência dos estudantes e ampliar desigualdades sociais. Sobre as 20 diretrizes estabelecidas pelo PNE, como o aumento das taxas de matrículas, a elevação da escolaridade média da população, a erradicação do analfabetismo absoluto e a redução do analfabetismo funcional, críticos argumentam que o Novo Ensino Médio justamente desvirtua o foco da mudança e vem para trazer ainda mais problemas, além de enfrentar claras dificuldades na sua implementação.

O Plano Nacional de Educação, estabelecido em 2014 e que se propõe a ser cumprido até 2024, já havia identificado a necessidade de reformar a educação oferecida aos jovens, tendo por isso previsto a reformulação do Ensino Médio. Três anos depois, em 2017, criou-se o novo modelo, com uma nova estratégia para manter os alunos nas escolas. No novo currículo, o ensino é aproximado da profissionalização e o estudante ganha poder de escolha. Mas ainda não está claro se essas mudanças serão suficientes, ou mesmo se o novo modelo será um retrocesso em relação ao que se tinha.

Principais mudanças

A Lei 13.415 de 16 de fevereiro de 2017, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, criando o Novo Ensino Médio, estabeleceu o aumento na carga horária e um currículo mais flexível para os alunos. A nova proposta se baseia na divisão do ensino médio em dois grandes blocos de ensino: a Formação Geral Básica e os chamados Itinerários Formativos.

Na Formação Geral Básica, que ocupará 60% das aulas, todos os alunos receberão, no máximo, 1.800 horas de conteúdos pautados na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Esses são os conhecimentos considerados essenciais e, por isso, são ministrados a todos os estudantes. A Matemática e a Língua Portuguesa são as únicas disciplinas do antigo modelo que entram na Formação Geral Básica e são obrigatórias nos três anos do Ensino Médio.

Já os Itinerários Formativos, que ficam com os outros 40% do total de aulas, contam com 1.200 horas de conteúdos específicos para que o aluno se aprofunde em alguma área, a qual ele próprio escolherá. Podem ser elas: Matemáticas e suas Tecnologias, Linguagens e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e Formação Técnica e Profissional.

Na teoria, a grande vantagem dos Itinerários Formativos é que eles dão ao aluno a opção por uma formação profissional enquanto se forma no Ensino Médio, sem precisar estudar horas complementares, ou cumprir um período integral.

Ivan Siqueira, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), era presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE) durante a discussão do projeto e explica que “essa divisão procurava seguir o padrão internacional com menos disciplinas e maior aprofundamento a partir de disciplinas eletivas”. Ele pontua que o modelo também foi escolhido pois supostamente facilitaria a permanência do aluno na escola, já que ele estaria mais engajado a estudar aquilo que escolheu.

Segundo pesquisa feita pelo IBGE/INEP/MEC, cerca de 1.152.846 adolescentes brasileiros estavam fora da escola em 2020

 

Outra novidade do modelo é o “Projeto de Vida”, que será um trabalho pedagógico feito com os estudantes para estimulá-los a refletirem sobre seu futuro pessoal e profissional. A ideia é que esse processo auxiliaria os alunos na escolha dos Itinerários Formativos e no momento após a formatura.

O Novo Ensino Médio também definiu o aumento na carga horária de aula, passando de 800 horas anuais para mil horas anuais. Além disso, profissionais com ‘notório saber’ passam a poder ministrar aulas, derrubando a obrigatoriedade de um diploma de licenciatura. Assim, profissionais formados em áreas específicas, com cursos de complementação pedagógica, poderão ser professores de ensino médio a partir de agora.

Outras reformas, mesmos problemas

Ainda que seja apresentada como tal, Ivan Siqueira lembra que a proposta de inserir o ensino profissionalizante no ensino médio não é uma novidade: “Em reformas anteriores, essa questão já tinha sido tentada”. Em 1971, ainda no regime ditatorial, aconteceu a primeira reforma do ensino médio brasileiro, por meio da lei 5.692/71. Seu objetivo era justamente de universalizar o ensino profissionalizante.

Após a reforma de 1971, em 1996 foi aprovada a segunda Lei de Diretrizes e Bases, dividindo a educação em ensinos básico, fundamental, médio, profissionalizante e superior. Com a nova lei, Siqueira destaca alguns avanços, como a universalização de matrículas na educação infantil. Por outro lado, persistem problemas como o pouco aprendizado e a evasão crescente a cada final de etapa.

Pátio de uma escola estadual. Imagem: Reprodução/Wikipédia

Entrando nos anos 2000, o Ensino Médio continuou sendo alvo de críticas, especialmente devido às posições baixíssimas do Brasil no Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) e às altas taxas de reprovação e evasão escolar.

Assim, a reforma de 2017 nasce em um cenário conturbado. Segundo o professor, esse histórico demonstra que, desde sua gênese, o desenvolvimento da educação foi tardio. “Começamos tardiamente a elaborar em um sistema nacional de educação na Constituição de 1934. A primeira Lei de Diretrizes e Bases é de 1961, depois em 1971 e 1996, a última”.

Como consequência, há uma dificuldade do Brasil em construir uma política educacional sólida, que ofereça um projeto de continuidade, ao mesmo tempo que esteja atualizada ao contexto mundial. “Os problemas do ensino médio são gestados no ensino fundamental. [Quanto à necessidade de modernização do modelo brasileiro], a mim me parece que ainda não nos demos conta das transformações que já estão ocorrendo no mundo, e que fatalmente chegarão à educação”, avalia Siqueira.

A escolha pelo modelo do Novo Ensino Médio

Manifestação contra a reforma do ensino médio em 2017. Imagem: Reprodução/Brasil de Fato

Quando estava sendo discutida a Lei 13.415, em 2017, o Brasil acabava de ser classificado entre os 11 piores de 70 em todos os rankings do Pisa, situação que sinalizava a tendência de estagnação do País em baixas posições nos rankings internacionais de ensino. A pressão para uma mudança no sistema educacional era cada vez maior e, em meio à crise do impeachment da presidente Dilma Rousseff e a instabilidade socioeconômica, a escolha do novo modelo a ser seguido tornou-se um espaço de disputas políticas. “Havia um consenso das dificuldades do Ensino Médio, mas não necessariamente sobre os caminhos para resolvê-los”, lembra Siqueira.

As discussões se encerraram com a adoção do Novo Ensino Médio por meio de uma Medida Provisória, sancionada pelo então presidente Michel Temer. Entre aqueles que não concordam com o sistema escolhido está Fernando Cássio, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e membro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Para ele e outros críticos, ao invés de melhorar a qualidade da educação, o Novo Ensino Médio é uma ‘tragédia’: “A reforma piora as condições de desigualdade que já existem no Brasil, desqualifica ainda mais a educação pública em relação à privada, e dentro das redes públicas, aumenta a diferença entre ricos e pobres”.

Ele argumenta que o sistema trará um “esvaziamento de conteúdo”, com menos acesso à ciência e uma abordagem superficial de questões relevantes para o conhecimento. Cássio afirma que essas mudanças afetarão, acima de tudo, as classes mais baixas.

Na sua visão, as escolas privadas dificilmente trarão medidas que levem à precarização do ensino – o que já não é necessariamente o caso das escolas públicas. E mesmo entre estas, a diferença entre escolas com um público de maior ou menor renda ficará ainda mais visível: escolas técnicas ou que exigem um “vestibulinho”, por exemplo, continuarão a possibilitar uma formação técnica e conteúdo de qualidade. Aquelas que estão nas periferias, por sua vez, serão as que mais vão sofrer com as mudanças.

Além disso, o professor comenta que uma mudança nas disciplinas não basta para que a situação educacional brasileira seja transformada: “Depositamos na reforma do currículo todas as esperanças, só que não é assim que funciona. Não adianta modificar o currículo e ter uma escola depredada, profissionais da educação que ganham 12 reais por hora/aula e que trabalham 60 horas por semana”.

Para ele, não há a necessidade de uma reforma curricular; o foco deveria ser o respeito ao cumprimento das diretrizes do Plano Nacional de Educação (PNE), como a ampliação de investimento público, elevação de taxas de matrículas em universidades e redução do analfabetismo.

Implementação e desafios

Em um país de escala continental como o Brasil, um grande desafio que o novo currículo encara é sua aplicação uniforme em todo o território. Para Fernando Cássio, a reforma tende a falhar ao tentar superar essa desigualdade econômica. Segundo ele, escolas privadas inevitavelmente seguirão levando vantagem frente às públicas e a liberdade de escolha do que estudar, como propõe o projeto, será ilusória.

“Essa liberdade sempre foi garantida para as classes médias. Com o esvaziamento do conteúdo, será ainda maior a discrepância”. Para sustentar seu argumento, Fernando cita o artigo Novo Ensino Médio e Indução de Desigualdades Escolares na Rede Estadual de São Paulo, trabalho produzido pelo grupo Rede Escolas Públicas e Universidade.

Oferta de itinerários formativos por escola (N = 3.698 escolas) e por número médio de matrículas no 1º ano do Ensino Médio na rede estadual de São Paulo, 2021. Fonte: Rede Escola Pública e Universidade.

Gustavo Mendonça, Gestor do Novo Ensino Médio da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, fala sobre sua experiência em São Paulo: “Para garantir equidade, temos que garantir investimento nas escolas, principalmente nas regiões mais afastadas”.

Mendonça diz que, neste momento, a principal dificuldade está sendo resolver problemas logísticos antes que eles prejudiquem a operação das escolas. “Para garantir essa implementação, precisamos repensar toda a estrutura da Secretaria de Educação, que, em várias etapas, não está preparada para atender o novo sistema”. Por essa razão, o gestor vê o objetivo de concluir a mudança ainda neste ano como um grande desafio.

Ivan Siqueira reconhece que, por causa da estrutura precária do país, o modelo de fato “pode gerar desigualdades”. Entretanto, para Siqueira, é importante “não esquecer que o modelo anterior tinha se esgotado porque também não propiciava formação técnica e nem incentivava o ingresso no ensino superior, não para todos”. Dada a implementação recente e o contexto em que ela se insere, o pesquisador afirma que “teremos que esperar algum tempo para sustentar com dados o que deu certo e o que não deu”.

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