Dez anos da PEC das domésticas: o que realmente mudou?

Aprovada em 2013, Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 478/2010 tenta corrigir injustiças da complexa relação de trabalho doméstico

Reflexos da PEC das Domésticas na classe dos trabalhadores domésticos e rurais dez anos após a aprovação da Proposta de Emenda. Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Por Camila Sales Machado, Ester Thaís Leandro de Brito, Gabriela Varão Lima Bentes Pessoa, Júlia Moreira Martins de Oliveira, Nicolas Vaz Coelho e Suelyton Ryan da Silva Viana

Em 2013, após três anos de tramitação e polêmicas, foi aprovada a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 478/2010, que ficou conhecida como PEC das Domésticas. Demorou ainda mais dois anos para que fosse de fato regulamentada. A ideia era que estendesse os direitos trabalhistas de outras profissões à classe dos trabalhadores domésticos e rurais.

Por isso, dez anos após a aprovação da PEC, todos os trabalhadores domésticos deveriam gozar, entre outros direitos, de seguro-desemprego, indenização em caso de demissão sem justa causa, a jornada de trabalho de oito horas diárias e 44 semanais, além da garantia de respeito ao salário mínimo.

O trabalho doméstico no Brasil hoje

Dados de 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontam que existem cerca de 5,8 milhões de trabalhadores domésticos no país. Destes, 91,4% são mulheres, sendo que 67,3% delas são negras. Além disso, o rendimento mensal da categoria sequer atinge o salário mínimo definido em R$ 1.320, apesar do nível de escolaridade dessas trabalhadoras não parar de aumentar.

Segundo documento elaborado pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos), houve crescimento de cerca de 70% das trabalhadoras com ensino médio completo ou equivalente. Entretanto, mais da metade ainda não possui esta formação. 

Com apenas 24,7% tendo carteira assinada, as diaristas ainda estão alijadas dos direitos garantidos pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), submetendo-se à informalidade e situações subalternas. Concomitantemente, as profissionais encaram o envelhecimento sem previdência, uma vez que metade da categoria possui mais de 45 anos.

Da casa grande para os apartamentos de luxo

“O que eram as casas grandes no passado, são os apartamentos de luxo hoje. O que eram os escravos domésticos no passado, são as empregadas domésticas hoje. A senzala moderna é o quartinho da empregada.”

Este é um trecho retirado da palestra feita por Joyce Fernandes, mais conhecida como Preta Rara, no TedXSãoPaulo em 2017. Rapper, escritora e ex-empregada doméstica, a artista abriu espaço em suas obras e redes sociais para que novas e contínuas reflexões sobre o trabalho doméstico no país fossem criadas.

Preta Rara em sua palestra Eu, empregada doméstica [foto: YouTube do TedXSãoPaulo / reprodução]
O processo de regulamentação do trabalho doméstico começou a caminhar ainda no século 19, mesmo que não representasse, de fato, avanços significativos para a ocupação. Em 1886, dois anos antes da abolição da escravatura, houve a ampliação de uma norma presente no Código Municipal de Posturas, que operava como uma ferramenta de controle pelos patrões frente às criadas.

Durante o século passado a batalha pela emancipação de direitos começou a ganhar mais força, mesmo que de maneira abstrata – já evidenciando a insatisfação da classe. Tanto o Código Civil de 1916 como os avanços na esfera trabalhista durante a primeira Era Vargas sequer citavam as domésticas ou reconheciam a profissão.

Isso impedia, por exemplo, que as profissionais gozassem de direitos trabalhistas assegurados para outras ocupações. A categoria ficou de fora das disposições que promoviam, por exemplo, o acesso à sindicalização e às férias remuneradas, conforme analisado na pesquisa. 

O estudo “A construção do trabalho doméstico assalariado no Brasil”, de Larissa Cristina Margarido e Taís Dias de Moraes do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo (USP), conta que tanto a Constituição Federal de 1934 (que estabeleceu o direito ao salário mínimo) como a CLT justificavam a exclusão da categoria com base na ideia de que o trabalho doméstico era uma atividade reprodutiva — tarefas de cuidado a vida ou ao lar —, que acontecia apenas em residências particulares dos patrões – o que remonta às bases do período escravocrata, aferindo a lógica de propriedade.

Foi em resposta a essa invisibilidade e descaso estatal que as primeiras entidades foram criadas, como a Associação Profissional de Empregados Domésticos, fundada em 1936 por Laudelina de Campos Melo na cidade de Santos, estado de São Paulo, que lutava pelo seu reconhecimento enquanto entidade sindical.

As relações de trabalho permaneceram nos mesmos moldes estruturais até 1988, com a implementação da nova Constituição Federal. A lei trouxe avanços significativos ao reconhecer os direitos das trabalhadoras domésticas, promovendo o acesso ao salário mínimo, às férias remuneradas e à aposentadoria: um marco importante, mas que não mudou efetivamente a realidade da área.

A PEC hoje: emancipação para todas?

Heranças de um passado colonial e escravocrata, as relações de trabalho entre empregadores e as domésticas, ainda hoje, escancaram a mesma lógica de propriedade. Entre os principais casos que marcaram as notícias recentemente, pode se citar o de trabalhadoras domésticas encontradas em situação análoga à escravidão. Um exemplo é o caso de  Sonia Maria de Jesus, mantida em situação análoga a escravidão por 40 anos pelo desembargador Jorge Luiz de Borba e de sua esposa Ana Cristina Gayotto de Borba.

Sem salário, documentação ou férias, Sonia dormia e morava na casa do casal desde os 9 anos de idade, sendo resgatada da residência após uma denúncia anônima. Com um processo judicial conturbado, a empregada doméstica voltou à casa de seus patrões depois de uma visita no abrigo para o qual foi encaminhada e o pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva pelos ex-chefes sob justificativa de ser “quase da família”.

Larissa Margarido, bacharela em direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP, explica que essa suposta relação afetiva muitas vezes dificulta as denúncias por parte das trabalhadoras, mesmo que elas reconheçam a violação de seus direitos. “Elas passam anos da vida delas neste ambiente, criam laços com as crianças com as quais elas cuidam e muitas vezes com os próprios patrões. São funcionárias não reconhecidas como funcionárias.

Em entrevista à Agência Universitária de Notícias (AUN), Fabiana Severo, defensora pública da União e ex-presidenta do Conselho Nacional de Direitos Humanos, traz um panorama sobre a lei e o cenário da categoria no país.

De início, a defensora pública explica, de um ponto de vista pessoal, que a medida trouxe avanços positivos no ordenamento jurídico da categoria por reconhecer os direitos desses trabalhadores. Porém, sua efetividade, fora do plano normativo, ainda não ocorre na prática: “A gente percebe que o Poder Judiciário, ao aplicar a norma, ainda tem um olhar de muita banalização e naturalização daquela situação, que pela lei configura trabalho escravo”, afirma.

Fabiana em audiência no Conselho Nacional de Direitos Humanos [foto: Supremo Tribunal Federal / reprodução]
Já do ponto de vista social, ela conta que as elites ainda perpetuam um “apego” histórico à escravidão. Por isso, há uma reprodução massiva de comportamentos que atentam contra o bem-estar da profissão, mesmo que, segundo ela, no plano normativo da sociedade, ocorra o reconhecimento dessas práticas enquanto violação dos direitos humanos.

Fabiana também explica que além de existir certa resistência por parte dos empregadores, tanto pela banalização, como pelo tratamento frente às trabalhadoras, o Poder Judiciário também compactua da mesma ideia ao não ter uma multiplicidade de olhares. Ela explica que o Poder Judiciário precisa ter uma visão mais ampla do ponto de vista racial, de gênero e até do social mediante a categoria.

A defensora pública é autora do livro Trabalho escravo no Brasil: mecanismos de repressão e prevenção, originalmente sua tese de mestrado em Direito pela USP. Ela ressalta a importância de dar visibilidade aos casos de trabalho doméstico análogo à escravidão e às situações de exploração trabalhista no País. “Acho que precisa ter um trabalho contínuo de sensibilização nesses casos”, diz. “Não basta ter a evolução normativa, a gente precisa que esses direitos sejam introjetados na sociedade brasileira.”

Além disso, faz um adendo sobre a retirada da individualidade das profissionais que moram nas residências com seus empregadores. Ela lembra que esse tipo de situação está nas raízes da cultura brasileira, mas que precisam ser reconsideradas e pensadas, tendo em vista que cria-se um sentimento de dependência e submissão por uma vida inteira. “A violação da dignidade e da retirada completa das possibilidades de construção de tudo, de família, de vínculos, de privacidade. É uma situação de submissão de uma vida inteira”, conclui. 

Só quem vive na pele sabe

Anatilde Santos Pereira Silva, aposentada, moradora da cidade de São Paulo, começou a trabalhar ainda na infância, aos 13 anos, após migrar da Bahia com a família. Com a necessidade de ajudar em casa, iniciou sua trajetória trabalhista como empregada doméstica em uma casa de família. Após cinco anos de muito trabalho e pouco retorno financeiro, ela decidiu se demitir.

Ainda no ensino médio, Anatilde começou a trabalhar como auxiliar de departamento pessoal em uma fábrica no bairro paulistano do Brás. Depois, se formou em contabilidade e conseguiu uma oportunidade de trabalho na RedeTV, onde ficou por cerca de 10 anos, até ser demitida. Com um problema de saúde que a impossibilitava de conseguir um novo emprego regulamentado, a profissional recorreu novamente ao trabalho doméstico como fonte de renda.

Com uma bagagem enorme e cheia de experiências, ela dividiu parte de sua história como empregada doméstica em entrevista à Agência Universitária de Notícias (AUN).

Anatilde comemorando seu aniversário de 60 anos em novembro de 2023 [Foto: Acervo Pessoal]
Anatilde conta que um dos maiores desafios enquanto doméstica era lidar com o comportamento dos patrões, sobretudo na lógica do tratamento. Ela lembra que muitas vezes não recebia sequer um bom dia, além de sentir na pele a indiferença dentro das residências. “Você se doa bastante, mas na maioria das vezes eles [patrões] não dão valor para a sua dedicação”. Ela explica que as atividades do lar exigem demais, mas reconhecimento não existe. 

A mulher também explica que muitas vezes as profissionais que ocupam essas atividades estão em situação de vulnerabilidade social, por isso acabam se submetendo e aceitando certos abusos. Ela lembra de alguns episódios bem particulares de sua vida. Um dos mais marcantes, como comenta, era da forma como se sentia vigiada por uma criança de 11 anos, filho de seus patrões. Ela explica que o garoto a monitorava durante o expediente, depois contava para sua mãe caso Anatilde tivesse feito algo de “errado”.

A aposentada ainda conta que no primeiro emprego não podia se sentar junto aos patrões. “Era criança, mas não sentava na mesa junto com eles para comer, eu sentava numa mesinha, na área”. Além das discriminações, foi vítima de assédio sexual por um dos familiares de uma das patroas e teve de manter em segredo por ameaças do homem.

Quando questionada sobre a PEC e as conquistas da profissão, Anatilde afirma que as determinações não são respeitadas e cumpridas na prática. “Tem muita gente [empregadores] que passa a perna nas empregadas, principalmente as que não têm conhecimento e que são mais velhas”. Ela comenta que a resistência, a má vontade e o aproveitamento dos patrões dificultam que a lei seja efetivada.

Sobre o assunto, ela relembra um caso de violação de direitos que vivenciou de perto: uma de suas colegas de profissão trabalhou durante anos como diarista em uma residência familiar na cidade de São Paulo, acreditando que estava em um trabalho regulamentado. Quando precisou reconhecer seu tempo de serviço, junto ao INSS, devido a um problema de saúde, descobriu que seu chefe nunca realizou o registro formal na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS).

A aposentada, que continua na ativa, lembra que durante sua juventude os patrões podiam ofertar qualquer salário, mas que, pelo menos agora a lei impõe remunerações justas. Acredita, apesar de tudo, que o cenário tem mudado, principalmente entre as trabalhadoras mais jovens, que não se calam e denunciam eventuais abusos. Por outro lado, ela comenta que apesar da regulamentação ajudar, muitos patrões continuam agindo de forma injusta e desonesta, por “debaixo dos panos”.

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