O legado das amas de leite na sociedade brasileira

Estudo da USP analisa as razões da desvalorização do trabalho domésticas e suas consequências

Trabalhadora doméstica atual representada como ama de leite do período colonial [Reprodução: Colagem feita por Felipe Velames com imagens do Freepik e Wikimedia Commons]

Dois de abril de 2013. Uma data importante para trabalhadoras domésticas brasileiras que tiveram seus direitos trabalhistas garantidos por lei pela primeira vez com a assinatura da chamada PEC das domésticas. Dez anos depois, essas trabalhadoras continuam tendo seu serviço pouco valorizado pela sociedade brasileira, como mostra estudo da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP (FEA).

Realizado pelo Centro de Estudos em Macroeconomia das Desigualdades (Made) vinculado à FEA, a pesquisa Raízes e panorama do trabalho doméstico remunerado no Brasil: reprodução social e algumas de suas contradições evidencia os processos históricos e sociais que levaram a uma crescente desvalorização do trabalho doméstico. Ela também se propõe a analisar as consequências dessa desvalorização na sociedade, como a baixa remuneração das trabalhadoras domésticas e a perpetuação de desigualdades de classe, raça e gênero.

Raízes abertas do trabalho doméstico

Entre os motivos que explicam a baixa valorização do trabalho doméstico, Amanda Resende, uma das autoras do estudo, cita a divisão sexual do trabalho presente na sociedade brasileira, que acarreta em um não reconhecimento dos trabalhos exercidos por mulheres, em especial os trabalhos de cuidado.

A herança escravocrata do país também é mencionada como um dos fatores pela autora. Ela mantém uma relação hierárquica injusta e precária entre patrão e empregada advinda do período colonial com as chamadas amas de leite, mulheres negras responsáveis pela amamentação dos filhos dos senhores brancos que possuem semelhanças com as atuais trabalhadoras domésticas.
Não somente as trabalhadoras domésticas não são valorizadas, como tão pouco possuem seus direitos valorizados. O descaso governamental é um dos principais responsáveis por isso, explica Amanda.

Esse descaso governamental é atestado na prática pela falta de fiscalização do Governo em ambientes domésticos para verificar se os direitos estão sendo respeitados Um exemplo recente foi o caso de Madalena Gordiano, trabalhadora doméstica negra que não possuía somente seus direitos desrespeitados, como também era mantida em regime de semiescravidão por não haver uma fiscalização do governo.

Normas que fazem com trabalhadoras informais, como diaristas, não possuam qualquer direito trabalhista também são citadas por Amanda como descaso governamental que perpetua a desvalorização do trabalho doméstico.

Que horas meu direito volta?

Devido ao descaso governamental ser um dos principais fatores que perpetuam a desvalorização, Amanda defende que o próprio governo deveria realizar uma garantia desses direitos.
A entrevistada sugere a criação de políticas públicas que fiscalizem o trabalho doméstico para ter a certeza de que os direitos conquistados pela PEC das domésticas estão ocorrendo na prática, além da revogação das normas que excluem as diaristas do acesso pleno aos seus direitos.

A ampliação do oferecimento dos serviços públicos de creche também é citada pela autora. Essa medida ajudaria as trabalhadoras domésticas no desenvolvimento dos seus filhos, ao mesmo tempo que não as sobrecarregaria com uma dupla ou tripla jornada de trabalho.

Amanda Resende, uma das autoras do artigo. [imagem: currículo Lattes da pesquisadora]

“Em abril, completaram-se 10 anos da aprovação da PEC das domésticas”, comenta Amanda. “Nossa pesquisa busca evidenciar a realidade dessa categoria de trabalhadoras e demonstrar que ainda estamos longe de garantir sua proteção adequada. Essa tarefa é, sem dúvida, uma das responsabilidades do atual governo.”

Métodos utilizados para verificar a desvalorização

Para atestar essa baixa valorização do trabalho doméstico, as autoras realizaram uma investigação e comparação histórica das legislações trabalhistas para observar as mudanças nos direitos das trabalhadoras domésticas, bem como entrevistas com essas pessoas para comprovar as suas dificuldades e lutas.

A pesquisa também verificou a menor remuneração do trabalho doméstico se comparado a outros serviços. Utilizando de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio contínua (PNAD contínua), ela observou que, enquanto as trabalhadoras negras de maneira geral recebem um salário médio de R$ 1790, as trabalhadoras negras domésticas recebem R$ 967,34, uma redução de aproximadamente 46%.

Gráfico de rendimento médio habitual mensal no trabalho principal de trabalhadoras domésticas, mulheres e pessoas ocupadas em geral, com desagregação por raça, realizado pela autora com dados da PNAD contínua [Imagem: Arquivo Pessoal]
A pesquisa de Amanda Resende, Fernanda Peron, João Pedro Freitas, Alessandra Benedito, Anna Lygia Rego, Karine de Paula Bernardino, Larissa Cristina Margarido, Lorraine Carvalho Silva, Taís Dias de Moraes & Luiza Nassif Pires pode ser conferida na íntegra no site do Made USP.

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