Vestígios de quilombo ignorados por metrô revelam o apagamento da história da população negra em São Paulo

Para pesquisadora, recorte sobre a questão racial nunca foi colocado durante processo de urbanização da cidade. Por isso, consequências e desigualdades são vistas ainda hoje

quilombo saracura
Foto do antigo Quilombo Saracura, na região do Bixiga, em São Paulo (SP). Créditos: Vincenzo Pastore/Instituto Moreira Salles/Reprodução/Twitter @CBRTV1

“Vestígios de um dos principais quilombos de São Paulo do século XIX foram encontrados durante as escavações para a construção da estação 14-Bis da Linha 6-Laranja do metrô”. Essa notícia não é uma novidade. A concessionária LinhaUni, responsável pela obra, encontrou os primeiros objetos quilombolas em abril de 2022, mas as escavações só foram paralisadas em fevereiro do ano seguinte – e por conta das chuvas.

Em abril de 2023, a LinhaUni pediu autorização para retomar as obras, mas o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) deu um parecer contrário, alegando a necessidade de discussão sobre a área, de valor histórico e cultural para a cidade. O que chama a atenção nesse contexto é a forma como a história da região foi ignorada.

Estudo de impacto ambiental realizado pelo mesmo Iphan em 2014 já apontava que o local era uma área de possível interesse cultural para a cidade. Antes disso, ainda, a existência do Quilombo Saracura já era de conhecimento dos pesquisadores e era possível encontrar registros sobre a “Pequena África” em antigas páginas de jornal. Mesmo assim, como mostram documentos levantados pela Agência Brasil, as investigações arqueológicas para as obras do metrô simplesmente desconsideraram a região.

Apagamento da memória negra

“O apagamento da presença negra no Bixiga não está associado somente ao encontro desses artefatos do Quilombo Saracura, mas também à questão da imigração italiana no bairro”, explica Ana Cláudia Castilho Barone, professora da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), da Universidade de São Paulo e pesquisadora do LabRaça, que estuda as relações raciais no espaço urbano.

No século XIX, antes do crescimento da cidade, o Bixiga era ocupado pela população negra de ex-escravizados que escaparam de fazendas e feiras e fundaram o Quilombo Saracura. A partir da década de 1870, os italianos passaram a ocupar a região e a concentração de equipamentos da cultura do país, com cantinas, teatros e festas como a da Achiropita – tradições pelas quais o bairro é conhecido até hoje – produziram o apagamento da presença negra no local.

No entanto, ainda que não tenham a mesma repercussão sobre a cultura paulistana como as tradições italianas, a população negra também deixou sua marca no espaço. A Casa Mestre Ananias (centro cultural de referência da capoeira), o Museu Memória do Bixiga e cortiços que ainda permanecem no bairro são espaços de memória que atestam a presença negra no local e que são elementos de agregação dessa cultura.

Antes de ser removida pelas obras do metrô, a Escola de Samba Vai-Vai ocupava a mesma localidade onde foram encontrados objetos arqueológicos do quilombo. Registros históricos apontam que foi nesse território que surgiu, na década de 1930, o cordão de carnaval chamado Vae-Vae, que depois deu origem à escola. “Por mais que essa história esteja apagada do imaginário da cidade, a presença dos negros está marcada por meio dessas instituições e desses espaços”, afirma a professora. Até hoje, quase dois anos depois de deixar o Bixiga, a nova sede da escola ainda não está pronta.

Processo de urbanização e a população negra

“O processo de urbanização nunca olhou para a questão racial. Não é que a questão racial foi desconsiderada, é que realmente esse recorte nunca foi colocado. A cidade desconsiderou completamente as especificidades, a importância da memória desses grupos, sua contribuição, sua cultura e sua presença nos locais”, afirma Ana Cláudia.

Em São Paulo, o crescimento da cidade em metrópole foi marcado por uma expulsão maciça da população negra dos bairros centrais para a periferia. Esse processo gerou uma série de desigualdades. “[Hoje,] os negros se concentram nos bairros periféricos. Também tem uma presença negra importante na região da Sé, onde tem cortiços e habitações precárias, porque a região sofreu obsolescência e a população pobre passou a ocupar esse lugar”, explica a professora. 

“Em decorrência da expulsão, a presença negra nos bairros com mais infraestrutura e os mais nobres da cidade acaba acontecendo apenas do ponto de vista dos trabalhadores, com porteiros, empregadas domésticas e motoristas de ônibus, prestando serviços para uma elite que, em quase toda a sua totalidade, é branca”, conclui.

Um dos focos dos estudos do LabRaça é auxiliar na formulação de políticas de recondução, compensação e equilíbrio social a partir do recorte racial. Além da valorização da memória negra no espaço, com a identificação de locais importantes para a história da presença negra em São Paulo e da monumentalização em espaços públicos de figuras negras importantes para a história do país, políticas de habitação, de reurbanização das favelas e de proteção das religiões de matriz africana são algumas das medidas apontadas como necessárias por Ana Cláudia.

“Essas religiões precisam de espaço para cultivar ervas. Muitos terrenos de Candomblé em São Paulo estão localizados onde não há possibilidades para o cultivo. Isso também tem que ser previsto, teria que ter um respeito maior e um cuidado em permitir que essas religiões se desenvolvessem no território de maneira adequada”, explica.

No entanto, as duas políticas públicas prioritárias, de acordo com a pesquisadora, são a desmilitarização da polícia, para preservar a vida da população negra – especialmente a vida dos jovens – e o incentivo às atividades culturais. “Na periferia, a proliferação da manifestação da cultura jovem também age como uma complementação à educação, que é muito precarizada para essa juventude”, defende a professora. 

“Essa é uma política pública central para reduzir as desigualdades, garantir a valorização da população negra na cidade e para modificar a autoestima e as possibilidades dessas pessoas de entenderem ou de terem uma expectativa de uma transformação no seu futuro, e não de se imaginarem confinadas na periferia sem chance de crescer, de se expandir e de se desenvolver”.

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