Estudo da Saúde Pública propõe o pagamento por serviços ambientais aos catadores de materiais recicláveis

Análise constatou que a remuneração dos catadores é feita de forma incompleta e sem levar em conta a importância ambiental da ação desses trabalhadores

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), 90% dos resíduos coletados não são reaproveitados ou reciclados na América Latina, e a maior parte é destinada para aterros sanitários e lixões [Foto: Freepik]

Associar o trabalho dos catadores de materiais recicláveis a um serviço ambiental pode parecer algo de simples compreensão — mas não é o que a lei brasileira prevê. Em um país onde 30% dos resíduos sólidos são passíveis de reciclagem e 5,3% do total são recuperados, de fato, toda a situação é incipiente. Os catadores, por sua vez, veem-se precarizados em um sistema que, por si só, já é precário do início ao fim. 

Situação difícil

Pollyana Ferreira da Silva, engenheira sanitarista e ambiental de formação pela Ufob (Universidade Federal do Oeste da Bahia), com mestrado em engenharia urbana pela UFScar (Universidade de São Carlos), sempre pesquisou resíduos, mas decidiu mergulhar de vez no assunto em seu doutorado, na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP). Não há, no Brasil, uma remuneração destinada aos catadores que diga respeito ao serviço ambiental por eles prestado. E foi com esse pensamento que a engenheira foi investigar a importância de que haja esse pagamento e as possibilidades de mudança.

Em sua tese, Pollyana cita uma pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) sobre o pagamento de serviços ambientais para catadores, realizada em 2010, mesmo ano em que foi aprovada a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Na pesquisa em questão, apontou-se o fato de que a reciclagem melhora a qualidade urbana e reduz as pressões dos ecossistemas naturais frente a um padrão de processo produtivo que vai de encontro a esses objetivos. 

Em entrevista à Agência Universitária de Notícias (AUN), a engenheira aponta que há outros obstáculos a serem superados antes de abordar o pagamento aos catadores em si: “A primeira coisa em que se pensa é encerrar os lixões. Depois é que vai se pensar em não enterrar os resíduos e recuperar esses materiais. A realidade brasileira ainda é muito aquém do esperado”. Ela compara a realidade do Sul e do Sudeste à do Norte e do Nordeste, onde há muito mais lixões.

Em sua tese, Pollyana ressalta o fato de que a América do Sul é o continente que mais desenvolveu pesquisas sobre PSA (Pagamento por Serviços Ambientais), mas que a relação entre o pagamento por serviços ambientais e o trabalho dos catadores ainda não aparece de forma evidente, ao contrário do que ocorre com questões como a conservação das florestas, a gestão ambiental e a conservação de recursos hídricos. A Política Nacional de Serviços Ambientais também não aborda serviços urbanos.

Pensando nisso, ela pesquisou todos os impactos gerados pelos resíduos e a relação do trabalho dos catadores com a questão ambiental. Foi feita, então, uma divisão em três categorias: Redução da extração de materiais da natureza, Controle da poluição frente aos impactos da presença dos resíduos no ambiente e Gestão de Resíduos. Ela cita exemplos de relações diretas e indiretas com o controle das enchentes, de doenças e da emissão de gases do efeito estufa. “Ao mesmo tempo em que parece claro que os catadores prestam um serviço ambiental, isso não está escrito em lugar algum e os catadores têm um papel fundamental em tudo isso”.

Proposições do Ipea

Na pesquisa do Ipea surgiram, também, algumas possibilidades de solução para a questão dos catadores. São elas: pagamento por produtividade, acréscimo compensatório graduado e fundo cooperativo.

Indagada a respeito da validade e da efetividade dessas propostas caso aprovadas, Pollyana acredita que elas dariam certo, mas prega atenção e cautela: “Acredito que sim [daria certo], só que temos que tomar alguns cuidados para não tornar o instrumento também perverso, porque a realidade dos catadores tem que ser bem pensada”. Ela completa e lembra que um modelo de atuação que funciona em um município pequeno poderia não funcionar em uma grande metrópole, por exemplo. 

Outro apontamento que a engenheira faz se refere à cadeira de reciclagem e aos papéis de cada ator. Afinal, não há só o catador. “O catador está lá na ponta [da cadeia de reciclagem]. Ele é um trabalhador que está próximo da comunidade. Existem empresas que são ‘atravessadoras’: compram materiais reciclados de cooperativas e vendem para a indústria”. A indústria, nesse caso, teria benefícios com o processo de garimpagem feito pelos catadores.

Pollyana também faz um questionamento no sentido de que, se houver um pagamento pelo serviço ambiental, alguém deverá pagar por isso. “É o município, que hoje, pela nossa legislação, é o titular do serviço de saneamento? É a população, que paga a taxa de lixo (quando há essa taxa)? É o governo federal, que fará o pagamento como incentivo?”. Ela ressalta que não acha que será uma solução única e que essas questões devem ser equacionadas. 

Nesse sentido, uma questão relevante é o fato de que os catadores são, hoje, remunerados de acordo com a quantidade de material que conseguem coletar. Não há, portanto, um pagamento fixo. Por essa razão, a pesquisadora acredita que o pagamento com produtividade, por exemplo, não poderia ser aplicado por si só. “Uma sugestão é que os catadores recebam um salário mínimo para sobreviver, porque não é possível sobreviver da renda da venda de materiais. A tarefa exige esforço físico e existe uma oscilação de mercado muito grande porque os materiais sofrem muito com a alteração do dólar”. Ela completa e cita o exemplo do plástico, que tem origem no petróleo e seu valor mutável de acordo com a variação do petróleo. 

Avanços 

Apesar da sensação de pouco avanço no que se refere a essa realidade, Pollyana destaca que houve, sim, avanços, especialmente na construção de um potencial de tecnologia social. “Por exemplo, o Brasil é um dos principais recicladores de latinha. Você não vê latinha nas ruas, mas é porque o valor de mercado começou a ser alto”.

A engenheira destaca algumas conquistas dos catadores: eles conseguiram reconhecimento como profissão, estão na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), conseguiram estar na Política Nacional de Resíduos Sólidos, a proibição de catadores nos lixões e o incentivo que a política dá para que os municípios contratem cooperativas e associações.

Necessidade de investimento

Para que se alcance índices mais altos de reciclagem, a pesquisadora ressalta a importância de que se invista no tema para que a atuação dos catadores não tenha que ser tão rudimentar. “Tem gente que está em situação de vulnerabilidade social e é catadora. Esses métodos são baseados na pobreza da população”. 

“A atividade de catação é uma profissão que surgiu na pobreza. Não conheci ninguém até hoje ainda que falou: ‘eu decidi ser catador’. Ninguém decide ser catador, muitas vezes é por falta de opção ou porque vive em uma família de catadores” 

Frente a essa situação, a engenheira acredita que as políticas devem ser interligadas e que deve-se ter maior investimento público, pois da parte da iniciativa privada o objetivo principal é, em geral, o lucro. Mesmo casos em que há acordos firmados a partir da Política Nacional de Resíduos Sólidos, em que a atuação da iniciativa privada é válida, ela crê que não são o suficiente.

“Precisamos de mais investimento público. As cooperativas muitas vezes funcionam descapitalizadas. E precisa-se de todo o maquinário. Para fazer educação ambiental precisa de investimento”

A pesquisadora também destaca a importância de capacitar os profissionais que, em geral, possuem baixa escolaridade e conhecimento sobre finanças, por exemplo. “Mas existe uma resistência muito grande ainda. Não é uma atividade simples e não sei se isso vai estar na agenda de muitos governos”, completa.

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