Conquista do protagonismo de pessoas transexuais e travestis na saúde requer mudanças profundas

Especialistas avaliam que violência sofrida por essas pessoas apresenta características educacionais, sociais e políticas

Grande parte das instituições de saúde seguem com um olhar marcado pela binaridade [Imagem: Freepik]

No Brasil, cerca de 70% de pessoas trans e travestis não concluíram o ensino médio e apenas 0,02% desses indivíduos teve acesso ao ensino superior, de acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Entre os diferentes motivos que explicam os índices, encontram-se a falta de atenção às demandas de gênero dentro das escolas, a constante violência contra esses indivíduos — pelo 14º ano consecutivo, o Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis no mundo — e a ausência de políticas públicas de permanência para essas pessoas no campo estudantil.  

A partir dos dados, é possível compreender que a participação profissional dessas pessoas em diferentes setores da sociedade é também reduzida e invisibilizada. Na área da saúde, por exemplo, além da ausência de atendimentos inclusivos, a falta de atuação desses indivíduos como protagonistas é marcante. 

Estudo e protagonismo

Lu Schneider Fortes, biomédico e pesquisador da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP), explica que desde a graduação começou a ter alguns incômodos com relação a como as questões de gênero e sexualidade eram abordadas no campo acadêmico. “Quando esses temas eram tratados, eles eram colocados de uma forma muito estigmatizante, chegando até a patologizar essas pessoas”, explica o pesquisador. 

Por esse motivo, com a orientação do professor José Miguel Nieto Oliveira, Schneider começou a desenvolver uma pesquisa que tem como objetivo central tratar as questões de gênero na área da saúde a partir de um trabalho etnográfico. Assim, um dos principais desafios associados ao desenvolvimento do estudo, relaciona-se ao fato dele ter sido iniciado em 2020, ano que ficou marcado pelos desafios impostos pela pandemia de Covid-19. 

Como o especialista não dominava o método etnográfico de pesquisa, um dos caminhos para entrar em contato com profissionais transexuais e travestis da saúde foi a participação de encontros online de algumas associações — como o Comitê Técnico de Saúde da População LGBT. “Comecei a contatar essas pessoas para pensar em estratégias de reparação de efeitos que são muito estruturais, mas que também são sociais e políticos”, complementa Schneider.

O pesquisador adiciona que o projeto, denominada como Para além do campo: sobre ameaças, redes e protagonismos de pessoas trans e/ou travestis como profissionais de saúde, também buscava colocar esses sujeitos como protagonistas e produtores de conhecimento da saúde, deslocando a visão comumente abordada dessas pessoas como pacientes. 

Educação formadora 

Schneider reflete ainda que a falta de pessoas transexuais e travestis na área da saúde é a ponta desse debate. A garantia dos direitos de pessoas transexuais e travestis passa também pela permanência estudantil durante o ensino básico, pela luta diária contra a violência e pelo acesso a espaços de poder. “Acho que existe uma dificuldade que é colocada pela própria cisgeneridade de não querer perder o seu espaço de privilégio”, avalia o autor do estudo. 

Apesar das dificuldades associadas ao tema, Lu considera que alguns avanços foram feitos nos últimos anos. Dessa forma, a dissertação apresenta uma visão crítica da formação do sistema de saúde e da ideia de cisgeneridade — categoria que se refere às pessoas que se identificam com o gênero atribuído no nascimento. Apesar disso, Lu reforça que também pensa em como criar alianças com pessoas cis, principalmente se essas estiverem comprometidas com esse tema. 

Além disso, Schneider considera que a aprovação de cotas trans em algumas universidades pode abrir portas para uma mudança, mesmo que lenta, desse sistema — sendo importante considerar, mais uma vez, que a luta contra a desigualdade envolve caminhos ainda mais profundos. 

As redes de apoio como possibilidade de resistência também são abordadas pelo especialista que avalia que, muitas vezes, há um conhecimento sendo produzido por pessoas trans e travestis que não é aceito pela maioria das pessoas. “O primeiro passo para que as pessoas, de fato, sejam protagonistas é transmitir essas vozes para fazer isso reverberar e alcançar todos os espaços possíveis”. 

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