Desafios e conquistas dos museus brasileiros: sucateamento, financiamento e reconstrução

Alguns dos museus mais importantes da história brasileira passaram por tragédias devido à falta de investimentos e manutenção

Vista frontal do Museu do Ipiranga. Foto: Arquivo Pessoal/Guilherme Castro Sousa

Por Elaine Alves e Guilherme Castro Sousa

Em janeiro de 2009, foi criado o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), vinculado ao então Ministério da Cultura, com o objetivo de ser um órgão responsável pela implementação da Política Nacional de Museus e pelo aprimoramento dos serviços no setor. Dentre as metas do Instituto, integram-se o aumento da visitação e da arrecadação, o fomento a políticas de aquisição e preservação de acervos, bem como a criação de ações integradas entre os museus brasileiros. O Ibram sucedeu o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) nas responsabilidades relacionadas aos museus federais e atualmente administra diretamente 30 museus.

No entanto, durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, houve um agravamento do sucateamento nos espaços culturais, dado refletido na redução orçamentária dos museus federais. Segundo informações do jornal O Tempo, obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação, entre 2019 e 2020, o orçamento destinado às unidades administradas pelo Ibram sofreu uma diminuição de 13 milhões de reais, caindo de 80 milhões para 67 milhões de reais.

De acordo com Camilo de Melo Vasconcellos, vice-diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, os museus não podem depender exclusivamente do financiamento do Estado, seja em nível federal, estadual ou municipal. “Atualmente, é necessário buscar financiamentos da iniciativa privada ou de agências de fomento, como da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)”. Essas instituições de fomento à pesquisa são destinadas principalmente aos museus de produção científica, como os universitários, que foram menos atingidos pelo contingenciamento dos recursos públicos brasileiros, mas ainda dependem de financiamentos externos. 

A redução nas dotações orçamentárias também afetou as agências de fomento federais. No entanto, museus localizados no Estado de São Paulo, como o Museu Paulista, a Pinacoteca e o Museu da Língua Portuguesa, que adotam um modelo de gestão baseado em contratos entre o Estado e a iniciativa privada, não foram tão afetados.

Em 2013, por exemplo, o Museu Paulista (MP) da USP, também conhecido como Museu do Ipiranga, enfrentou uma grave crise financeira que comprometeu sua estrutura física. A instituição optou por fechar suas portas para que as devidas reformas pudessem ser realizadas, porém, o financiamento não foi totalmente proveniente de recursos públicos. A partir da Lei de Incentivo à Cultura, os trabalhos de restauração, modernização e ampliação do museu arrecadaram cerca de R$ 188 milhões junto ao setor privado, contando com patrocínios diretos de empresas como Atlas, Banco Safra, BNDES, Bradesco, Caterpillar, Comgás, CSN, EDP, EMS, Fundação Banco do Brasil, Honda, Itaú, Vale, Sabesp, Grupo Ultra Ipiranga, Pinheiro Neto Advogados e Banco Santander. 

Devido aos novos investimentos previstos para o setor cultural durante a gestão do atual governo federal, o cenário dos museus federais, coordenados pelo Ibram, pode se tornar mais positivo. “O Ministério da Cultura demonstrou preocupação com a política de museus e a criação do Instituto Brasileiro de Museus teve como objetivo principal estabilizar a política museológica do país naquela época. Agora, observamos que todos esses esforços estão sendo retomados”, afirma Maria Cristina Oliveira Bruno, professora de Museologia do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP.

Por isso, a professora possui uma perspectiva otimista para o futuro dos museus brasileiros. “Estamos formando novos quadros e profissionais. Esses exemplos mencionados aqui servirão como referência para outros museus que surgirão, tanto em termos de infraestrutura quanto de acessibilidade e outras questões relevantes para o nosso campo”.

Saiba mais sobre como grandes museus de São Paulo e Rio de Janeiro estão a seguir. 

Museu do Ipiranga: um caso exemplar

O Edifício-Monumento durante a construção dos andaimes e pessoas à frente, 1888. Fotógrafo desconhecido. Acervo Museu Paulista da USP (Coleção Bezzi). Restauração óptica por João Sócrates de Oliveira, 1990.

A experiência de reestruturação física do Museu do Ipiranga é um exemplo de sucesso no enfrentamento aos desafios da última década. O projeto do museu, realizado pelo italiano Tommaso Gaudenzio Bezzi em 1882, é eclético e se baseia em palácios renascentistas, abrindo suas portas pela primeira vez em 7 de setembro de 1895. A construção do jardim foi iniciada apenas 13 anos depois, sendo inaugurado em 1909 e reinaugurado em 1923 em sua versão final, que se mantém, em sua maior parte, até os dias atuais. 

Referente ao centenário da inauguração da estrutura, os primeiros sinais de deterioração se tornaram evidentes. Em 1993, diversos fragmentos caíram do teto da escadaria na entrada principal. Após avaliação foi constatado que o telhado de cobre e a rede elétrica precisavam ser totalmente substituídos e as torres laterais necessitavam de reforma, além de outras medidas pontuais. Apesar da reestruturação que levou os visitantes a conviverem com as obras, até 2013 os efeitos das fortes precipitações, por exemplo, não puderam ser resolvidos completamente, o que contribuiu para a degradação do espaço. 

Em vista dessas dificuldades, o Museu, no início dos anos 2000, começou a realizar uma série de reparações do seu espaço, com o objetivo de não apenas reformulá-lo, como também ampliá-lo. No segundo semestre de 2005 foi elaborado o “Estudo de Viabilidade do Projeto de Ampliação do Museu Paulista” pelo Escritório Paulistano de Arquitetura, em conjunto com a Comissão de Espaço Físico do Museu. Nos anos seguintes foi realizada  uma série de encontros, estudos e avaliações sobre a reconstrução e financiamento do projeto. 

Obras de restauração no Museu do Ipiranga. Foto: Divulgação/Museu do Ipiranga

Em 2013, o prédio apresentava diversas rachaduras e laudos apontavam a ameaça de queda dos forros de algumas salas, como as do Salão Nobre, Biblioteca e Auditório. Diante desse cenário, decidiu-se pelo fechamento do Museu ao público em 3 de agosto de 2013. Nos seis anos seguintes houve uma continuidade dos esforços para viabilização e financiamento do projeto. O custo total da reforma foi de 235 milhões de reais, obtendo o maior valor já captado entre a iniciativa privada pela Lei Federal de Incentivo à Cultura, na quantia aproximada de 188 milhões. 

A reforma teve início em 2019, sendo concluída três anos depois, o que possibilitou a reabertura a tempo da comemoração do bicentenário da independência. Com a reabertura, o espaço expositivo foi triplicado, incluindo áreas novas e outras que antes não tinham acesso ao público. O Novo Museu do Ipiranga possui onze exposições de longa duração e uma temporária. Ao todo, as exposições englobam mais de 3.800 itens e contam com 333 recursos multissensoriais que garantem a fruição de todos os públicos. O espaço se destaca por sua acessibilidade, além de estrutura adequada para atender a todos os tipos de público. Há telas táteis, reproduções em metal, maquetes tridimensionais, dispositivos olfativos, cadernos em Braile, amostras de texturas e objetos originais adquiridos especificamente para o manuseio dos visitantes. 

Reinauguração do Museu do Ipiranga, em 6 de setembro de 2022. Foto: Divulgação/Museu do Ipiranga

Apesar das dificuldades estruturais e financeiras, o Museu do Ipiranga foi capaz de se manter na dianteira dos museus brasileiros através de uma gestão ambiciosa e capaz. “O caso do Museu Paulista é um orgulho para nós da universidade. É um projeto evidentemente novo e exemplar de uma instituição que percebeu o risco anos atrás e teve a coragem de fechar as suas portas para poder se recuperar, fazendo isso magnificamente”, afirma Maria Cristina

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Museu da Língua Portuguesa: a preservação do patrimônio linguístico

Em 21 de dezembro de 2015, um incêndio de grandes proporções atingiu o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. De acordo com o laudo da Polícia Civil, que concluiu seu inquérito em julho de 2019, um defeito em um dos holofotes do local deu início às chamas. No dia do acidente, a instituição estava fechada para visitação devido a reparos na iluminação. 

O incêndio, que destruiu parcialmente a estrutura do Museu e consumiu o telhado, começou no primeiro andar do edifício e se alastrou para os andares superiores. Durante três horas, o Corpo de Bombeiros trabalhou no combate às chamas e o brigadista Ronaldo Pereira da Cruz, de 39 anos, faleceu após uma parada cardiorrespiratória enquanto cumpria sua função. Na ocasião, a instituição afirmou que seguia regularmente as rotinas de segurança e contava com seguro-incêndio, avaliado em 34 milhões de reais. 

Incêndio no Museu da Língua Portuguesa destruiu o telhado do edifício. Foto: Reprodução/G1

Já em janeiro de 2016, o Governo do Estado de São Paulo assinou um convênio para a reconstrução do Museu da Língua Portuguesa, junto à iniciativa privada. O custo total do projeto foi de aproximadamente 85 milhões de reais — sendo estimados R$ 36 milhões provenientes do setor privado, que se somam aos R$ 34 milhões da indenização do seguro contra incêndio. Desse total, R$ 3 milhões foram investidos nas ações emergenciais e R$ 2 milhões foram destinados para o primeiro ano de manutenção do Museu após sua reabertura. 

Entre os parceiros e patrocinadores das obras de restauração estão a Fundação Roberto Marinho, a EDP Brasil, o Grupo Globo, o Grupo Itaú e a Sabesp, bem como o  Governo de Portugal. A iniciativa também teve apoio da Fundação Calouste e do Governo Federal por meio da Lei de Incentivo à Cultura. O IDBrasil Cultura, Educação e Esporte é a organização social responsável pela gestão do Museu. 

Após cinco anos de obras de restauração, o Museu da Língua Portuguesa foi reinaugurado em julho de 2021, com a completa recuperação arquitetônica e readequação de seus espaços internos, reforços de segurança contra incêndio — como a instalação de sprinklers (chuveiros automáticos) nas dependências do local —, recursos de acessibilidade física e de conteúdo, além de experiências novas e anteriores de exposições. De acordo com a Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, todo o acervo do Museu era virtual, por isso sua recuperação plena foi possível após o fim da reconstrução do edifício. 

O local manteve parte da estrutura de seu projeto original, assinado em 2006 pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha e seu filho Pedro Mendes da Rocha. Aproximadamente 85% da madeira necessária para a recuperação das esquadrias da construção foi utilizada do próprio material já existente no edifício, com a reutilização de madeira da cobertura original, datada de 1946. Também foram empregadas 89 toneladas de madeira certificada proveniente da Amazônia, reforçando o novo compromisso do Museu com a sustentabilidade. 

Durante as obras, a instituição obteve uma certificação ambiental em Liderança em Energia e Design Ambiental (LEED) devido às suas medidas de adoção de técnicas para economia de energia na operação do museu, gestão de resíduos durante as obras e utilização de madeira que atenda às regulações ambientais. Quanto à acessibilidade, o Museu conta com rampas, pisos podotáteis, banheiros adaptados, recursos acessíveis à pessoas com deficiência no espaço expositivo e equipes treinadas para receber todos os visitantes. 

Todas as etapas foram aprovadas e acompanhadas pelos três órgãos do patrimônio histórico: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan); Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) e Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp).

O Museu da Língua Portuguesa, instalado em um dos principais prédios históricos de São Paulo, foi aberto ao público em 2006. Por ser um dos principais pontos de passagem dos imigrantes que chegavam ao Brasil e um espaço dinâmico de contato e convivência entre várias culturas e classes sociais, a Estação da Luz foi escolhida para abrigar a instituição. “A escolha do prédio se deu porque há a ideia de que a estação é um ponto de encontro e havia o desejo de mostrar que a língua é um ponto de encontro de culturas”, explicou Marília Bonas, diretora técnica do Museu, para a Gazeta de S. Paulo, em julho de 2021.

Museu da Língua Portuguesa após obras de restauração. Foto: Ana Mello/Museu da Língua Portuguesa

A instituição é um dos primeiros museus dedicados totalmente a um idioma, o português — língua oficial de aproximadamente 300 milhões de pessoas em todo o mundo. Durante seus primeiros anos de funcionamento, entre 2006 e 2015, o Museu recebeu cerca de 4 milhões de visitantes e mais de 30 exposições temporárias, incluindo mostras sobre figuras populares no Brasil, como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Machado de Assis, Fernando Pessoa e Cazuza. 

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Museu Nacional: um resgate histórico

Em 1818, o Museu Nacional foi fundado por D. João VI como parte de uma série de iniciativas para promover o desenvolvimento da arte, ciência e tecnologia no Brasil. Inicialmente, a instituição foi chamada de Museu Real e localizava-se no Campo de Sant’Ana, no centro do Rio de Janeiro. A partir de 1892, foi transferida para o Paço de São Cristóvão, um palácio construído no início do século XIX que serviu como residência da família real portuguesa.

Segundo as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, o objetivo principal do Museu era incentivar estudos nas áreas de Botânica e Zoologia. Seu acervo incluía uma coleção de 700 peças egípcias adquiridas por D. Pedro II durante suas expedições, além de artefatos greco-romanos recuperados em escavações realizadas em Herculano e Pompeia. O museu também possuía itens de Paleontologia e Antropologia, como o Maxakalisaurus topai, um dinossauro encontrado em Minas Gerais, e o fóssil humano mais antigo do Brasil, conhecido como “Luzia”. Além disso, o museu exibia objetos representativos das culturas indígena, afro-brasileira e do Pacífico, juntamente com uma coleção de conchas, corais e borboletas na área de Zoologia.

Após o fim do Estado Novo, em 1946, o Museu Nacional foi incorporado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Como museu universitário, a instituição investiu em exposições que refletiam sua história e atividades de pesquisa e ensino, com o objetivo de divulgar o conhecimento científico e antropológico. Até 2018, o Museu abrigava mais de 20 milhões de peças em seu acervo.

Em 2 de setembro de 2018, três meses após completar dois séculos de existência, o Museu Nacional foi atingido por um incêndio de grandes proporções, resultando na destruição de 85% do acervo que estava instalado no Paço de São Cristóvão. No entanto, os itens da Biblioteca Central, do Departamento de Botânica e do Departamento de Vertebrados, que já estavam localizados no Horto Botânico do Museu Nacional, não sofreram nenhum dano.

O incêndio no Paço de São Cristóvão destruiu cerca de 85% do acervo do Museu Nacional. Foto: Marcelo Sayão/Agência EFE

Em 2020, a Polícia Federal concluiu que a causa do incêndio foi um curto-circuito provocado pelo superaquecimento de um aparelho de ar-condicionado, devido à falta de manutenção adequada e de investimentos no local. O Museu Nacional tentou revitalizar o edifício a partir de recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), porém, embora o contrato com a instituição tenha sido assinado em junho de 2018, os fundos não foram liberados.

Para as obras de restauração, o Museu Nacional recebeu apoio financeiro internacional de países como Alemanha e Portugal. Internamente, o apoio veio do Congresso Nacional por meio de emendas da bancada de parlamentares, que destinaram 55 milhões de reais para a reconstrução do edifício. Além disso, o Projeto Museu Nacional Vive — resultado de uma cooperação técnica entre a UFRJ, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Instituto Cultural Vale — está financiando a reconstrução do Museu. 

A iniciativa dispõe de apoio financeiro do BNDES, patrocínio platinum do Bradesco e da empresa Vale, apoio do Ministério da Educação (MEC), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), do Congresso Nacional, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e do Governo Federal, por meio da Lei de Incentivo à Cultura. Além disso, conta com a parceria da instituição Associação Amigos do Museu Nacional (Samn).

A fachada principal do Paço de São Cristóvão foi totalmente restaurada em setembro de 2022. Foto: Diogo Vasconcellos/Museu Nacional-UFRJ

Segundo Ana Luisa Lima, assessora de comunicação do Museu Nacional, os recursos ainda são insuficientes para a realização de todas as obras necessárias. Contudo, o governo atual tem se mostrado disposto a angariar mais fundos para a conclusão da reconstrução. Atualmente, a restauração das fachadas do Paço de São Cristóvão e a instalação de cobertura do bloco histórico já foram completamente concluídas. 

As obras seguem nos blocos dois, três e quatro do Paço de São Cristóvão. Foto: Diogo Vasconcellos/Museu Nacional-UFRJ

As obras nos blocos dois, três e quatro do edifício seguem em progresso e as novas edificações estão sendo construídas respeitando as exigências legais de acessibilidade para pessoas com deficiência. De acordo com a assessoria de imprensa do Museu Nacional, os prédios já existentes precisam passar por adaptações de acessibilidade e a instituição continua em busca de recursos para este fim. “É fundamental nessa nova fase do Museu, na qual temos por parte do governo a demanda de entregar grande parte da instituição aberta e funcionando para o público em abril de 2026, que encontremos parceiros dispostos a complementar os recursos que nos faltam. Estamos muito animados, pois o projeto de reconstrução do primeiro museu brasileiro é um projeto vencedor. Vai acontecer”, afirma Alexander Kellner, paleontólogo e diretor do Museu Nacional. 

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Cinemateca Brasileira: uma tragédia anunciada

Vista frontal da Cinemateca Brasileira, na Vila Clementino. Foto: Divulgação/Cinemateca Brasileira

A Cinemateca Brasileira surgiu em 1949 como Filmoteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo e tornou-se independente em 1956. A instituição já chegou a ser considerada uma das principais do gênero no mundo e atualmente possui o maior acervo de filmes da América do Sul. No entanto, nos últimos anos, o local passou por uma série de instabilidades político-administrativas que resultaram em diversos desafios, incluindo o incêndio de 2021, tragédia que atingiu o primeiro andar do galpão na Vila Leopoldina. 

Em 2013, um novo regimento reduziu drasticamente as funções e a importância da Cinemateca na estrutura ministerial e nas políticas públicas de preservação audiovisual, iniciando um processo de esvaziamento e enfraquecimento da instituição. Na época, um relatório feito pela Controladoria Geral da União (CGU) forneceu denúncias de irregularidades na prestação de contas da gestão vigente. Como resultado, o Ministério da Cultura exonerou Carlos Magalhães, que era diretor da Cinemateca há oito anos. Essa foi a primeira de uma série de intervenções do Ministério da Cultura, que passou a nomear diretamente a direção da Cinemateca, sem a participação do Conselho Consultivo da instituição, cujo papel estratégico nas decisões sempre foi previsto em seu estatuto de criação. Entre 2014 e 2018, houve uma drástica redução no quadro de funcionários.

Em 2018, houve um impasse administrativo da gestão da Cinemateca em relação ao Ministério da Educação, que se prolongou por meses. Mesmo com o retorno da gestão, as atividades técnicas foram paralisadas por quase dois anos, em razão do desligamento integral das equipes. Em 2020, durante a presidência de Jair Messias Bolsonaro, uma enchente destruiu parte do acervo fílmico e documental armazenado na unidade da Vila Leopoldina e o quadro da crise se intensificou. Regina Duarte, que atuou brevemente como Secretária Especial de Cultura, foi anunciada como a nova diretora da Cinemateca pelo presidente. Sem experiência comprovada para atuar à frente da gestão da instituição, Regina nunca assumiu de fato sua direção, resultando em uma crise administrativa do espaço. Após novos cortes de verba e demissão de funcionários, a Cinemateca encerrou suas atividades ao público em agosto de 2020.

Acervo da Cinemateca Brasileira. Foto: Divulgação/Cinemateca Brasileira

Em julho de 2020, o Ministério Público Federal em São Paulo (MPF-SP) entrou com uma ação na Justiça contra a União por abandono da Cinemateca. Em abril de 2021, os trabalhadores da Cinemateca lançaram um manifesto alertando para o perigo que o acervo corria sem acompanhamento técnico. Em 29 de julho de 2021, ocorreu um incêndio na unidade da Vila Leopoldina durante a manutenção do sistema de climatização. O fogo consumiu uma área de cerca de 300 a 400 metros quadrados do galpão. 

De acordo com Maria Dora G. Mourão, professora titular aposentada da ECA-USP e diretora geral da Cinemateca Brasileira, uma lista completa dos materiais perdidos com a enchente de 2020 e o incêndio de 2021 está sendo finalizada pela gestão atual e deverá ser publicada em breve. Até o momento, não existe um relatório completo do que foi perdido nos incidentes. “A maioria dos filmes eram cópias. Suas matrizes ficam na Cinemateca da Vila Clementino, mas havia materiais, como filmes de alunos do curso de cinema da ECA-USP, que estavam armazenados no local e foram perdidos. Nós ainda não temos a relação completa e a previsão é que ela seja concluída até o mês de agosto”, esclarece Maria Mourão. Além dos filmes, uma grande quantidade de documentos também foi perdida nos incidentes.

O incêndio de 2021 foi o quinto enfrentado pela Cinemateca em sua história. As películas de nitrato, nas quais os filmes analógicos eram gravados até a década de 40, são materiais extremamente sensíveis e sujeitos a autocombustão. Portanto, sem um cuidado adequado, episódios como o de 2021 podem se repetir. O primeiro incêndio ocorreu em 1957, seguido pelo segundo em 1969, durante outra crise de financiamento da instituição, e o terceiro em 1982. Passaram-se 34 anos sem que ocorresse um incidente semelhante, até que em 2016 ocorreu o quarto incêndio na história da instituição, resultando na perda de mais de mil rolos de filme.

Em seus 74 anos de existência, a Cinemateca enfrentou crises, enchentes e incêndios, mas conseguiu continuar atuando pela preservação e promoção do audiovisual brasileiro. O caso mais recente não é diferente. Ainda em julho de 2021, a Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo lançou um Edital de Chamamento Público para a nova publicização da gestão da Cinemateca Brasileira. A Sociedade Amigos da Cinemateca venceu o processo de concorrência pública e iniciou um projeto emergencial para a retomada das atividades da instituição, conseguindo reabrir as portas da Cinemateca ao público em maio de 2022.

Desde a sua reabertura, a instituição já recebeu mais de 125 mil visitantes, e o público tem aumentado expressivamente. Recentemente, a Sociedade Amigos da Cinemateca anunciou o Projeto Viva Cinemateca, que contempla uma série de projetos e investimentos, incluindo a modernização e ampliação da sede na Vila Clementino, projetos de recuperação, catalogação e digitalização de seu acervo fílmico, além de uma grande programação cultural que abrangerá São Paulo e outras 12 cidades do Brasil. O projeto prevê a modernização e reestruturação dos espaços da Cinemateca, procurando revitalizar a instituição e preservar o patrimônio audiovisual mantido por ela.

Para saber mais sobre o Projeto Viva Cinemateca, acesse este link

Um panorama latino-americano

Museus são uma conexão do presente com o passado, uma possibilidade de construir e vivenciar a memória. Seja explorando temas como independência, idioma, natureza ou cinema, os museus têm a capacidade de se conectarem com o espírito dos visitantes e transformá-los. No entanto, a América Latina enfrenta desafios como o contingenciamento de recursos e o sucateamento científico e cultural. Esses obstáculos representam uma problemática que precisa ser enfrentada e superada, a fim de preservar e fortalecer o papel dos museus como agentes de educação, preservação histórica e transformação cultural.

Na sua formação, o museólogo Camilo Vasconcellos teve contato direto com a museologia mexicana. “Fiquei muito encantado com os museus do México e voltei com a ideia de tentar entender por que aqueles museus eram tão visitados, enquanto os museus brasileiros, nem tanto. No México, museus históricos alcançam maior visibilidade e, no Brasil, os museus de arte moderna e contemporânea que se destacam”. De acordo com Camilo, em parte, essa questão pode ser atribuída aos processos revolucionários ocorridos no México no início do século 20, nos quais os museus foram integrados a um projeto estratégico pelo Estado Nacional. A partir da revolução, diversos esforços foram criados para valorizar a memória indígena e popular do país. Além disso, os museus sempre mantiveram ligações com movimentos populares, o que contribuiu com o engajamento dos visitantes.  

Segundo o museólogo, quando comparado a outros países, o Brasil apresenta um cenário positivo no que diz respeito aos museus. “Temos cursos de formação para museólogos, arqueólogos, etnólogos, restauradores e conservadores. Também temos concursos públicos para a contratação desses profissionais, uma Lei destinada aos museus, o Instituto Brasileiro de Museus e uma política de intercâmbio com outros museus latino-americanos”, destaca. Somado a isso, Camilo identifica um processo de revalorização dos museus na América Latina. 

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