Impactos da tragédia no litoral norte de São Paulo deixam rastros sociais e ambientais

Cinco meses após o desastre em São Sebastião, quando deslizamentos de terras provocaram a morte de 65 pessoas e deixaram milhares desabrigadas, população do litoral norte de São Paulo ainda enfrenta dificuldades

Vestígios da tragédia em São Sebastião após quatro meses da chuva [Acervo Pessoal/Mariana Krunfli]

Por Danilo Queiroz, Lívia Lemos, Mariana Krunfli, Thais Morimoto e Yasmin Araújo

Desastres naturais no litoral

No dia 19 de fevereiro, um temporal histórico atingiu São Sebastião e provocou diversos deslizamentos. Esse desastre, porém, não foi o único que ocorreu no litoral brasileiro. Em 1967, um escorregamento de terra na cidade de Caraguatatuba, no litoral norte do estado de São Paulo, matou cerca de 450 pessoas. Em 2011, uma enxurrada de lama atingiu a região serrana do Rio de Janeiro e deixou quase mil mortos e mais de 100 desaparecidos.

Embora em épocas diferentes, essas catástrofes no litoral têm em comum um fator: a chuva. “O que deflagra o escorregamento no Brasil é a água da chuva. A água para nós é um problema”, afirma o geólogo Marcelo Fischer, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas da USP (IPT-USP). Apesar da água ser o principal agente responsável pelo processo de escorregamento na região serrana, Fischer explica que se trata de um fenômeno natural: “O relevo não está instável, então a massa que está na encosta ou no barranco, quando recebe chuva, desliza para a Serra do Mar. A chuva é natural, não tem como impedir”.

O pesquisador salienta que as encostas dos litorais são áreas naturalmente perigosas. Contudo, ainda que exista um conjunto de leis que regulamentam o processo de urbanização dos espaços, a exemplo do artigo terceiro da Lei de Parcelamento do Solo Urbano, que proíbe a ocupação de terrenos alagadiços e sujeitos à inundação pelo risco iminente que tais lugares oferecem, se tornou comum a habitação humana nessas locais classificados como de risco.

Quando você tem uma encosta ou um morro e a população ocupa, o que ela faz primeiro? Tira a vegetação e expõe o solo. E a vegetação é importante, porque ela protege até um certo nível de chuva. Logo em seguida, [a população] deixa a superfície plana. Como o morro é inclinado, ela faz uma escavação no solo que chamamos de paredão. O material escavado é lançado mais para frente da casa e forma um aterro. Depois, constrói a moradia.”

O geólogo explica que, quando uma casa é construída nesses parâmetros, as chances do morro escorregar aumentam significativamente: “Esse aterro é mais fofo que o restante. Um cubinho de solo tem um peso de uma tonelada. Quando chove, vai para duas toneladas. Por isso, o morro escorrega. Chamamos de escorregamento induzido porque tem o corte e o aterro”.

Caminho deixado pela lama na Vila Sahy [Acervo Pessoal/Mariana Krunfli]

Além de leis e números

Apesar das irregularidades, milhares de pessoas no país residem em moradias com estruturas instáveis como as destacadas pelo geólogo. Um relatório do IBGE calcula que existam cerca de 5,13 milhões de moradias ocupadas, concentradas em 13.151 aglomerados “subnormais”, o que corresponde a 7,8% das residências do país. Segundo uma pesquisa da Prefeitura de São Sebastião, havia 649 habitações e 779 famílias localizadas em áreas de risco. 

Esses dados expõem uma característica muito marcante de tragédias como a que ocorreu no começo deste ano no litoral norte paulista: a desigualdade e a falta de políticas públicas eficientes. O alto volume de chuvas que castigou a Vila Sahy e o morro do Pantanal, regiões mais afetadas da cidade, configura uma das muitas dimensões por trás de um desastre.

Se faz necessário, para a compreensão de episódios como este, se voltar também para a análise das condições sociais sobre as quais o evento se instaurou. É o que diz a professora e especialista em desastres da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), Norma Valêncio: “Eu faço parte de uma corrente, das ciências sociais, que entende o desastre como um acontecimento social dramático, associado a um evento físico, carregado de uma dimensão de perdas e danos coletivos.”

O perfil socioeconômico dos mais afetados é uma das faces desses eventos extremos que têm ganhado espaço nos estudos acerca de desastres ambientais no Brasil. Grupos que ocupam territórios nos quais as políticas públicas não chegam são, em sua maioria, pessoas em situação de vulnerabilidade. É o que reforça um estudo feito pelo Instituto Pólis, realizado nas cidades de Belém, Recife e São Paulo. 

O grupo de pesquisadores fez o mapeamento das áreas mais suscetíveis à ocorrência de desastres naturais, relacionou-o com o perfil socioeconômico das famílias que as ocupavam e constatou que eram, predominantemente, pessoas negras e de baixa renda. 

Esses dados também ganharam espaço nas pesquisas de Norma, que reitera a necessidade de se aprofundar na análise de tragédias ambientais: “Tem que se complexificar a dimensão sócio-econômica, política e territorial. Esses afetados têm classe social. Nós estamos falando de submoradias, de pessoas pretas e de pobres.”

“Um mesmo evento se situa em um contexto ambiental com pessoas de diferentes níveis de fragilização”

Destroços permanecem na parte superior da Vila Sahy [Acervo Pessoal/Mariana Krunfli]
Uma pesquisa publicada recentemente pelo IPT calculou que, de 1988 até junho de 2022, houve 4.146 mortes em decorrência de deslizamentos de terra no país. O Rio de Janeiro é o estado com maior número de mortes, 2.143, seguido por São Paulo, com 567. O desastre do litoral norte paulista, de fevereiro deste ano, deixou 65 mortos e milhares de desabrigados. 

Em maio deste ano, três meses após a tragédia, segundo matéria da Folha de São Paulo, o Governador do estado, Tarcisio de Freitas, autorizou o retorno de 270 famílias a casas que estão localizadas na chamada “zona amarela”, área que deve ser evacuada caso fortes chuvas aconteçam.  

Sobre isso, Marcelo Fischer, afirma que “nós do IPT autorizamos eles a voltarem porque não tinham para onde ir e não dava para ficarem em hotéis ou pousadas”. Ele admite que o maior problema é não saber o que fazer com as pessoas: “É mais fácil para a gente chegar lá e  dizer: ‘Aqui é área de risco e vocês não voltam’. Mas o que fazemos com essa turma? Ou eles irão invadir outra área ou voltam para a mesma”.

Esse cenário costuma se reproduzir em tragédias da natureza, quando muitas famílias retornam a moradias irregulares. Maria Vidal, moradora da Vila Sahy, um dos bairros mais atingidos pela chuva no Carnaval, acredita que a sua casa ainda é habitável e que pretende continuar a morar nela: “Vale a pena lutar por aquilo que você fez. Não é pelo bem material, é pelo suor de 30 anos. Vim para cá com 19 anos de idade, estou com 53 e nunca mudei de lugar. Tenho que lutar, não sair com as mãos abanando e comprar uma casa por 30 anos e pagar tudo de novo. Onde vou achar mais emprego para pagar tudo isso com os salários de hoje em dia?”.

A casa de Maria Vidal teve ordem de demolição [Acervo Pessoal/Mariana Krunfli]
A moradora ainda reflete sobre o apego não só com a moradia física, mas com a comunidade em si: “Todos aqui dentro sofreram, trabalharam, são dignos, correndo daqui para a Baleia para botar um bloco na casa e perder tudo de uma vez. É uma vizinhança maravilhosa, todo mundo se gosta e se cuida. São 30 anos aqui, criando filhos, já tenho dois netos. Uma filha com 30 anos que foi criada aqui dentro, e dois netos, de quatro e de cinco anos. Então é uma vida.”

O papel da Defesa Civil

A Defesa Civil é o órgão do Estado que tem a missão de identificar as áreas de risco, prestar socorro nos desastres e preparar a população para saberem agir em casos de emergências. Embora algumas pessoas contrariem o papel da entidade e a acusem de não executar a sua função com êxito, Fischer, responsável por coordenar projetos em conjunto com a Defesa Civil, pontua que o órgão tem um preparo específico durante o período das chuvas.

Em São Paulo, chove muito de dezembro a março. Durante esses meses, temos o PPDC, Plano Preventivo da Defesa Civil, que é um instrumento técnico para mitigar esse problema.” O geólogo explica que, com essa ferramenta, é possível monitorar as chuvas, analisar a previsão meteorológica e fazer a vistoria de campo. “Com esses três parâmetros, tentamos chegar antes do escorregamento”.

O pesquisador também salienta que a atuação da Defesa Civil não se restringe apenas ao começo do ano: “No resto do ano, a Defesa Civil vai para as comunidades, leva informação e dá treinamento”.

Todo ano tem o treinamento e quem está treinando a comunidade é a equipe de Núcleos de Proteção da Defesa Civil (Nupdec). Basicamente, são duas aulas, teórica e prática. O treinamento serve para que seja possível tirar as pessoas antes de ter um escorregamento, antes de chegar uma enchente brusca levando tudo e arrastando todo mundo.”

Fischer acrescenta, contudo, que “o treinamento é uma solução para uma emergência, não para resolver o problema da moradia [irregular]. Eu estou treinando porque o lugar é perigoso.”

Vestígios de uma casa afetada pela tragédia na Vila Sahy [Acervo Pessoal/Mariana Krunfli]

São Sebastião 

Passados quatro meses dos desastres que ocorreram em São Sebastião, ainda são muitas as inseguranças que atravessam a vida dos moradores. Dia a dia, o trauma é relembrado na vizinhança. Seja pela falta de uma pessoa querida que se foi com a lama e os destroços, ou até mesmo a memória afetiva de percorrer certas localidades. Porém, a mídia segue sendo financiada pelos setores mais ricos da sociedade, estimulando o esquecimento de algo que, para aqueles que estavam presentes na hora do ocorrido, tem sido difícil esquecer. 

Para além de um desastre imposto pelas mudanças climáticas, toda essa situação representa também uma violência institucional e imposta em maior grau sobre os corpos daqueles que fazem parte da camada mais baixa da sociedade. Maria, que presenciou os estragos na Vila Sahy, relata sobre os efeitos que a chuva causou nos seus vizinhos: “Tadinho, sofreu muito aquele homem [Edivaldo]. Perdeu tudo. Ainda bem que não perdeu a vida dele e da família. Vivia daquilo [aluguel de imóveis, destruídos pelos deslizamentos]. A mãe de Valdemir se foi, só ficou ele. A filha quebrou os braços e as pernas. Edivaldo ainda está para fazer a cirurgia, não fizeram ainda. 

Retirada às pressas de sua moradia, a ex-moradora da Vila Sahy comenta sobre sua experiência durante a tragédia: “Chegaram [Defesa Civil] aqui na porta e falaram: ‘Olha, a senhora está em uma área de risco e vai ter que sair daqui de imediato’. E a gente estava com a mente ruim, porque não tinha ninguém com a mente boa com o tanto de vizinho que morreu. Aí pronto, entrei dentro do carro e peguei a minha bagagem”. Ela continua: “Acho que não é só pegar a pessoa, arrancar ela para fora e derrubar a casa dela, tem que pensar nos anos que ela ficou ali”.

Um dos ajudantes no resgate dos moradores em São Sebastião, Fischer acrescenta que  a maior dificuldade enfrentada, além da chuva ininterrupta, foi o acesso às comunidades, o qual ficou interditado por causa dos deslizamentos que atingiram a estrada principal. Por este motivo, a mobilização rápida da equipe para retirar os moradores: “Estamos mais preocupados com as pessoas e com a vida delas do que com a casa. Se tem um escorregamento do lado do vizinho, quem está do lado tem que sair”.

Quando questionado se a Defesa Civil comunicou os moradores com antecedência a respeito dos deslizamentos, o pesquisador salienta que “as equipes estavam lá no meio da chuva. A Defesa Civil mandou SMS, foi para o rádio, o prefeito falou nas redes sociais. Então houve uma mobilização. O que acontece: estou dentro do meu barraco, eu escuto que tem para sair, é uma decisão minha. A maioria não sai”.

A maioria não sai porque não é apenas uma casa. É um espaço de pertencimento. Seguindo a ordem de despejo das autoridades civis, essas pessoas saem perambulando, até hoje em meio aos restos do desastre – ambiental e político. Para dona Maria, seu maior desejo é esquecer as cenas de horror vividas naquela noite: “Mexeu com o meu psicológico. Agora está bom, mas, na hora, eu queria sumir.” 

Após o resgate de pessoas depois de um deslizamento de terras, a Defesa Civil também cumpre o papel de ajudar na reconstrução. “Passada a emergência, quando a gente sabe que não vai chover, a Defesa e a Prefeitura entram para ver se a rua vai ter que ficar ali mesmo. Então, eles chegam com maquinário de limpeza. Eles, talvez, não reconstruam as casas que são particulares, não pode ter dinheiro público no particular”.

O pesquisador ainda afirma que “se você for hoje no litoral norte, de certa forma, está quase tudo normal. Você acessa as ruas, os serviços, vai para pousadas. Vários morros já estão com acesso livre, então você acessa as vielas”.

Obras no entorno das estradas do litoral norte [Acervo Pessoal/Mariana Krunfli]
Por outro lado, Maria afirma que a situação na Vila Sahy não é a mesma desde a tragédia: “Mudou muita coisa. Ficou difícil, a falta das pessoas também, dos vizinhos. Ficou tudo calado, silêncio. Não tem mais aquela alegria que tinha no bairro. Quando chove, você também já tem um pouco de medo, não sabe o que vai acontecer”. 

Desnaturalização do desastre 

Norma ressalta a necessidade de desnaturalização da tragédia e, para isso, defende um estudo interdisciplinar desses episódios.

Norma observa uma predominância no Brasil e no mundo da adesão à teoria de hazards (fatores de ameaça potencial) quando se trata de desastres. Com o passar do tempo, profissionais que atuam com os hazards, como meteorologistas, climatologistas e geógrafos, se consolidaram, pelo menos diante da sociedade, como especialistas em desastres. Eles ganharam o status de autoridade, o que a pesquisadora acredita poder ser prejudicial na construção do desastre no imaginário social. 

Esses cientistas são muito importantes, não estou dizendo o contrário, mas eles usam, muitas vezes, de sua competência para transmitir para a sociedade, que tem pouca percepção e consciência de risco, uma porção de interpretações que contribuem para a estigmatização [das pessoas que vivem em áreas de risco]”.

A pesquisadora acredita que informar a sociedade de forma eficaz faz parte da interdisciplinaridade do estudo de desastres e do resgate histórico como meio de conscientizar: “É muito importante que jornalistas, sociólogos, economistas, psicólogos e antropólogos estejam sempre em conexão para complementar os conhecimentos e pensar que tipo de capacitações a gente pode dar previamente para as pessoas para que elas se orientem de maneira mais eficaz para comportamentos solidários”.

Para entender a naturalização do desastre é necessário investigar, antes de tudo, a sua origem.

Ela ainda questiona o uso do termo “desastre natural” e reforça que é preciso entender o que está por trás da forma que eventos naturais extremos são recepcionados em diferentes locais: “Se trata de questionar o processo histórico de modelos de desenvolvimento. São modelos econômicos fracassados que geraram processos de vulnerabilização de certas populações. A análise é mais complexa”.

Casa para alguns, desabrigo para outros 

Mesmo com ordem de demolição para sua casa, Maria, atualmente, reveza a moradia na Vila Sahy com um apartamento nos prédios construídos pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), em Bertioga. Ela confessa que demora mais de uma hora em transporte público lotado do apartamento até o antigo bairro para levar os netos para a escola e trabalhar.

Diversas casa na parte superior da Vila Sahy receberam placas de interdição e realocação para moradias do CDHU [Acervo Pessoal/Mariana Krunfli]
“Lá em Bertioga não tinha mais casa para minha filha, só para mim. Ela não morava aqui comigo, morava lá em cima [Vila Sahy], onde deu o vermelho. De lá, foi para o aluguel, porque não tinha casa em Bertioga para todo mundo. Teve para uns e outros não, faltou. Foram 300 apartamentos. Meu irmão, que está lá em cima [Vila Sahy], também não foi”.

Além dessas moradias provisórias, que não acolhem todos os mais de 5.000 desabrigados, o governo decretou a construção de 700 casas. Enquanto as moradias não são finalizadas, foi prometido um auxílio aluguel para aqueles que não conseguissem uma vaga no CDHU. Porém, de acordo com o relato de Maria, tal auxílio não ocorreu.

“Minha filha está morando em cima [da minha casa]. Ficou morando de aluguel três meses depois da tragédia, com eles prometendo auxílio aluguel, que iam dar e não deram. Ela não tinha dinheiro nem para o aluguel. Eu falei: ‘Minha filha, pega sua bagagem e vai para a minha casa, porque eu vou ficar em Bertioga e aqui. Não podemos ficar na rua’ ”. 

Segundo Maria, a moradia do CDHU vai ter um preço: “Quando chegou lá, na primeira reunião, falaram: ‘na Baleia Verde vai ser tudo pago.’ Se já tivessem avisado aqui na porta que ia ser tudo pago, a gente não tinha nem ido para Bertioga. Na hora, estava todo mundo com a cabeça quente.”

Com mais conjuntos habitacionais em construção, ela explica: “São casas pré-montadas. É para pagar com uma porcentagem do salário da pessoa, dura 30 anos. Quando é que vou terminar de pagar essa casa? Se eu já tenho 30 anos aqui, já fiz tudo aqui e não tenho mais nada?!”.

Maria afirma que, apesar de muitos moradores já terem deixado a parte superior da Vila Sahy, alguns ainda permanecem na região pelo sentimento coletivo: “Acho que ainda tem sete vizinhos perto de mim, daqui para cima. [Um pouco] para baixo, o pessoal já foi embora. Os que não foram, não querem ir. Aqui é um lugar bom, maravilhoso. Quem não quer viver aqui nessa paz? Quando a gente tem filhos e netos, é uma semente que plantamos naquele cantinho”. A moradora continua: “Não paga o IPTU, mas tem outras coisas que você tem no lugar: laços”.

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