Economia da beleza: a lucratividade por trás do ‘corpo’ ideal

Obsessão por um corpo perfeito e pressão estética imposta pelas redes sociais torna o Brasil país recordista em cirurgias plásticas e procedimentos estéticos

Procedimentos estéticos e produtos direcionados à beleza são popularizados pelas redes sociais. Imagem: Emanuely Benjamim
Procedimentos estéticos e produtos direcionados à beleza são popularizados pelas redes sociais. Imagem: Emanuely Benjamim

Por Caroline Santana, Clarisse Macedo, Emanuely Benjamim, Marilia Monitchele e Melannie Silva

A pandemia de Covid-19 virou o mundo de cabeça para baixo, hábitos duramente consolidados foram completamente modificados pela imposição de uma nova rotina e pela ansiedade causada por uma doença até então desconhecida pela a maior parte da população mundial. O período de isolamento afetou profundamente a relação das pessoas com a alimentação, a atividade física e seus próprios corpos.

Quem não se lembra do boom de vídeos ensinando pães de fermentação lenta? Ou da avalanche de personal trainers com treinos aeróbicos que podiam ser feitos em nossas salas de estar? Houve ainda o surto coletivo de skincare e praticamente todo mundo comprou pelo menos um produto para os cabelos ou pele. As vendas de maquiagem sofreram uma queda drástica, mas as de produtos de cuidados com o corpo nunca estiveram mais em voga. 

Se o cenário do lado de fora era de caos e temor, na solidão de nossas casas sobrava algum tempo para o autocuidado e a reflexão, mesmo que breve, sobre padrões estéticos. Corpos mais diversos ocupavam propagandas e espaços de mídia, influencers gordas ganhavam visibilidade propagando discursos de aceitação enquanto teciam críticas aos padrões hegemônicos, inúmeros podcasts, outro setor que viu seus adeptos crescerem, traziam um novo estrangeirismo à baila, o conceito de “body positivity”, que nada mais era do que ver beleza em seu próprio corpo. 

Nas mídias sociais, a tal da positividade corporal, usada como hashtag milhões de vezes, se tornou um movimento. Naturalizou-se as tours pelo corpo onde pessoas (principalmente mulheres), mostravam com orgulho celulites, estrias, manchas, poros dilatados e pelos corporais. Rotinas de exercícios e alimentação não eram mais vistas como tortura, mas como um processo de autocuidado. A perspectiva era a de que os corpos não precisavam ser corrigidos, mas que as diversas formas, tamanhos, cores e idades precisavam ser normalizadas. 

Entretanto, mesmo parecendo o período de maior acolhimento da imagem natural das pessoas, a realidade era outra. O discurso de aceitação não demorou a se tornar uma armadilha tóxica para muitos de seus adeptos.

Um estudo conduzido no Reino Unido, por exemplo, descobriu que muitas causas de estresse e ansiedade relacionados ao Covid-19 eram associados à imagem corporal negativa. Imagem/Reprodução: Freepik
Um estudo conduzido no Reino Unido, por exemplo, descobriu que muitas causas de estresse e ansiedade relacionados ao Covid-19 eram associados à imagem corporal negativa. Imagem/Reprodução: Freepik

Para Cesar Moraes, nutricionista especialista em comportamento alimentar e doutorando da USP, o discurso de auto aceitação corporal foi cooptado pelo mercado como uma forma comercializar mais produtos e incentivar as pessoas a adotarem uma nova forma de padrão estético. “O body positive tem uma ideia de diversidade corporal, mas acabou sendo deturpado. Hoje vemos pessoas ‘saradas’ com corpo definido usando a hashtag, o que reforça um padrão de beleza já existente”.

O breve respiro de aceitação parece estar sofrendo duros reveses. As tours pelas características naturais dos corpos estão se tornando cada vez mais escassas, sendo substituídas pelas conhecidas imagens de antes e depois e compartilhamentos de rotinas “fit” e “receitas saudáveis”, quase sempre acompanhadas do consumo diário de Whey Protein

“A pressão estética hoje em dia não é só a pressão pela magreza, embora se saiba que ambas caminhem lado a lado”, diz a psicóloga Caroline Curty, “essa pressão coloca, sobretudo, as mulheres em uma situação de alienação que é onerosa e pode se refletir em uma insatisfação quase patológica que, em termos psicológicos, pode se somatizar em transtornos diversos, desde alimentares, ou de desordem mental”. 

A pesquisadora alerta que esse tipo de cobrança pode levar pessoas a tentar superar os limites do próprio corpo com a adoção de rotinas de treino absurdamente intensas, dietas restritivas e, no extremo, a realizarem cirurgias que podem modificar drasticamente a qualidade de vida. 

O boom das academias 

Essa preocupação com a estética corporal tem impacto econômico significativo. A cultura tóxica fitness, que não é necessariamente nova, mas volta agora revigorada, traz os conhecidos discursos de auto superação e o perigoso desejo de buscar a magreza no menor tempo possível, trazendo imagens e textos destinados a impressionar seguidores nas redes sociais. Ela se concentra em apresentar um ideal de aparência e acaba culpabilizando o indivíduo pelo modo como seu corpo é. A receita é velha, os ingredientes, no entanto, são novos e caríssimos.

A assessoria de imprensa da Smart Fit,  rede de academias com milhares de unidades no Brasil e na América Latina, afirma que a empresa cresceu muito do período pandêmico até hoje. Dados fornecidos pela rede revelam que, do final de 2019 até o início de 2023, cerca de 153 unidades de academias (próprias e franquias) foram abertas pelo grupo Smart Fit, o que resulta em quase 2.129.000 matrículas de alunos ativos.   

Muitas pessoas desse público não fazem exercícios com o objetivo exclusivo de emagrecer, mas também melhorar a saúde e aumentar a qualidade de vida. Essa preocupação favoreceu o chamado “mercado fitness”, e colocou o Brasil em segundo lugar no ranking de números de academias, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. 

O problema é que a busca pelo corpo ideal e a adoção de regimes de exercícios intensos podem gerar distúrbios complexos, quando não são acompanhados por um profissional responsável. Um bom treino e alimentação balanceada não são prejudiciais à saúde. No entanto, a proliferação do discurso fitness cria estereótipos e, muitas vezes, reduz comportamentos naturais, como a alimentação, somente ao ganho de massa muscular e/ou a perda de gordura.

 O exercício físico passa a ser visto como uma “tortura” necessária na busca do corpo perfeito, o pãozinho do café da manhã vira o temido “carboidrato”, tudo passa a ser calculado, medido e direcionado para construção do “shape”. O que deveria ser uma relação saudável com o próprio corpo, torna-se um caminho aberto para propagação de distúrbios alimentares e de imagem. 

“As redes sociais amplificam a visão da alimentação apenas pelo nutriente. Estou comendo x de carboidrato e x de proteína, retirando toda a nossa identificação e relação social com a comida”, resume Cesar. “O que pode se tornar um problema quando a pessoa começa a se privar de situações sociais para poder ficar dentro de padrão rígido de alimentação”.

 Distúrbios Alimentares 

É perceptível o tratamento diferente quando a pessoa é magra e quando não o é”, diz Akysa Carina, estudante de enfermagem que enfrentou distúrbios alimentares. Ela ainda aponta para a forma como essa distinção se manifesta, como o bullying e estereótipos propagados na mídia e em ambientes familiares. 

Os transtornos alimentares levam o indivíduo a dois extremos: a restrição ou a compulsão. O primeiro corresponde a  rejeição espontânea da comida e leva à perda de peso, resultando em quadros de anorexia. Já a compulsão diz respeito à ingestão descontrolada de uma grande quantidade de comida como tentativa de aliviar sintomas de ansiedade e vem acompanhada de sentimentos como constrangimento e culpa, podendo ou não incorrer em atos compensatórios, como a indução ao vômito no caso da bulimia nervosa. 

O curta-metragem Likeness (2013), protagonizado por Elle Fanning, aborda a bulimia por meio da visão subjetiva da personagem, mostrando, por meio de imagens impactantes, como ela enxerga o mundo ao seu redor e a si mesma. Imagem/Reprodução: Youtube
O curta-metragem Likeness (2013), protagonizado por Elle Fanning, aborda a bulimia por meio da visão subjetiva da personagem, mostrando, por meio de imagens impactantes, como ela enxerga o mundo ao seu redor e a si mesma. Imagem/Reprodução: Youtube

A anorexia é consequência de uma distorção de imagem, que leva o sujeito a se perceber como alguém acima do peso mesmo que isso não seja um fato. O medo constante de engordar leva à restrição alimentar e a fome, que é vinculada a ideia de valor pessoal pelo anoréxico: quanto maior for a sua capacidade de suportá-la, melhor ele se sente. “Eu estava num período conturbado do meu semestre, fiquei sem comer porque não dava tempo e percebi que me sentia feliz em estar sem comer. Chegava no final do dia pensando: ‘Hoje eu só comi uma banana, que incrível! Vou emagrecer e ficar bonita’” relata Akysa. 

A estudante ainda destaca o impacto das redes sociais no processo de percepção do próprio corpo. “Uma influenciadora fica grávida e um mês depois aparece mostrando sua barriga chapada, sendo que ela já tinha feito procedimentos estéticos prévios e tempo para fazer academia, o que a maioria de nós não tem”, sintetiza. 

O peso da indústria estética  

Nesse cenário de incessante busca pela beleza irretocável, o Brasil chegou ao o segundo lugar no ranking mundial de realização de cirurgias plásticas – contabilizando mais de 2,3 milhões de procedimentos em 2022, segundo dados da International Society of Aesthetic Plastic Surgery (ISAPS)

A crescente procura por intervenções cirúrgicas pode ser atribuída a fatores como o avanço da medicina estética e o aumento da oferta de clínicas e profissionais especializados. Imagem/Reprodução: Freepik.
A crescente procura por intervenções cirúrgicas pode ser atribuída a fatores como o avanço da medicina estética e o aumento da oferta de clínicas e profissionais especializados. Imagem/Reprodução: Freepik.

A pressão por uma aparência considerada ideal impulsiona pessoas a buscar procedimentos estéticos como uma solução rápida para problemas relacionados à autoestima e à aceitação social. Um exemplo dessa oferta é a crescente adesão a serviços estéticos nas clínicas odontológicas, tópico que tem levantado muitas discussões. A Clínica Sorriso, consultório nos Pimentas, em Guarulhos, passou por essa adaptação recentemente. 

“Acho de extrema importância as clínicas se adaptarem e se atualizarem com as novas áreas odontológicas”, comenta a dentista e esteticista Larissa Evelyn, que atende na clínica.

A dentista explica que decidiu se especializar em estética visando contribuir com soluções para a elevação da autoestima de seus pacientes. Em sua perspectiva, essa mudança recente nas clínicas está ocorrendo, justamente, porque há muita procura por profissionais com esse tipo de especialização, uma alternativa altamente rentável. 

A incursão dos dentistas no ramo da estética facial tem suscitado debates acerca da capacidade e das dimensões éticas envolvidas. Guilherme Ziroldo, graduando em Odontologia na USP, explica que o tema é bem discutido e que alguns de seus professores não são favoráveis às práticas estéticas dentro de consultórios odontológicos. Em contrapartida, há profissionais que defendem esse espaço, argumentando que a formação de Odontologia engloba o conhecimento necessário para a realização desses procedimentos.

Atualmente, há vários dentistas que são reconhecidos como especialistas em harmonização orofacial, que visa não somente um sorriso bonito, mas também uma aparência facial harmoniosa. A habilidade em harmonização orofacial se tornou um diferencial valioso para os dentistas, já que apenas eles possuem a capacidade de realizar procedimentos odontológicos. É importante destacar que não há regulamentação específica nesse meio. A falta de regulamentação permite que profissionais de outras áreas ingressem no ramo da estética facial e corporal como forma de complementar sua renda. 

Redes sociais como um espaço plural

Desde o boom de conteúdos voltados ao autocuidado e à preocupação com a imagem corporal, tem se popularizado hábitos não saudáveis, como treinos físicos que excedem o limite fisiológico, dietas restritivas e a intensa busca por cirurgias plásticas. No entanto, mesmo em um contexto de pressão por buscar o corpo perfeito, algumas influencers digitais, como Gkay e Evelyn Regly, tem caminhado na contramão. Em meio a um país recordista em cirurgias plásticas, ambas as criadoras de conteúdos retiraram suas próteses mamárias de silicone e, no caso de Gkay, alguns procedimentos estéticos faciais, como preenchimento labial, também foram desfeitos.    

Ainda que as redes sociais abram espaço para discursos sobre rotinas saudáveis, mercado fitness e comercialização de uma beleza ideal, a transmissão deles pode deturpar a aceitação do corpo como é de fato ao propagar hábitos que diminuem a qualidade de vida inclusive de adolescentes. De acordo pesquisa publicada na revista científica Jama Pediatrics em 16 países, incluindo o Brasil, um a cada cinco jovens de 6 a 18 anos são afetados por distúrbios alimentares. Em meninas, a taxa chega a 30%, enquanto nos meninos de mesma idade ela se limita a 17%.

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