O governo Jair Bolsonaro apresentou, no início de setembro, as regras para adesão ao Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares em um decreto assinado pelo próprio presidente. De acordo com o Ministério da Educação, a intenção é militarizar 216 escolas, 54 a cada ano até 2023. A implementação das escolas cívico militares era uma das promessas de Bolsonaro na campanha eleitoral.
Segundo Marcos Garcia Neira, professor titular e diretor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), “é um equívoco pensar que em uma escola que tem a gestão administrativa e educacional feita por militares da reserva na escola soluciona a questão da indisciplina”.
Lançamento
Já no início do ano o governo criou uma unidade específica no MEC: a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares, vinculada à Secretaria de Educação Básica. De acordo com o decreto de sua fundação a função da subsecretaria é “promover, fomentar, acompanhar e avaliar, por meio de parcerias, a adoção por adesão do modelo de escolas cívico-militares nos sistemas de ensino municipais, estaduais e distrital tendo como base a gestão administrativa, educacional e didático-pedagógica adotada por colégios militares do Exército, Polícias e Bombeiros Militares”.
Contudo, o projeto de militarização das escolas apenas foi apresentado em setembro. No evento, Bolsonaro reafirmou sua confiança no modelo cívico-militar no combate à indisciplina e seu papel na promoção de patriotismo: “Queremos botar na cabeça de toda essa garotada a importância dos valores da educação moral e cívica e respeito à bandeira”, disse.
Após um mês do lançamento, quinze estados (Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Ceará e Minas Gerais) e o Distrito Federal aderiram ao programa. Para fazer propaganda do projeto, o Ministro da Educação também gravou um vídeo cômico em seu twitter onde parabenizou o deputado federal Felipe Barros (PSL) pela adesão do estado do Paraná e fez piada com os governadores que resolveram não aderir: “De repente ele (governador) acha ‘feio’, mas não vai faltar demanda!”, afirmou.
O ministro Abraham Weintraub ganhou fama nas redes sociais fazendo vídeos debochados para explicar suas propostas para o MEC e rebater críticas. “Nesses cargos onde as pessoas têm responsabilidade sob um conjunto grande de pessoas existe uma certa liturgia. A gente espera que um ministro possa ser bem-humorado, mas não que trate os assuntos mais sérios da sua pasta de maneira jocosa, pouco séria, e sarcástica”, afirmou o professor Marcos Neira sobre o comportamento do ministro.
“São maneiras de se comunicar com a população muito infelizes e pouco pedagógicas para um ministro da educação”, afirma.
Recursos
O Ministério da Educação foi segunda pasta mais afetada pela política de contingenciamento do Governo Federal, com R$ 348,5 milhões bloqueados, apenas perdendo para o Ministério da Cidadania, que perdeu R$ 619,2 milhões. Mesmo enfrentando estes cortes e os diversos protestos das universidades federais contra o contingenciamento, o ministro Abraham Weintraub afirmou que tem orçamento para o projeto de militarização das escolas. O programa pretende orçar em R$ 1 milhão cada escola participante investir em infraestrutura e pagamento de salários, o que deve custar, até 2023, R$ 54 milhões anuais ao MEC.
“Para projetos pirotécnicos tem recurso. Para continuar financiando o ensino público de qualidade nos Institutos Federais ou nas Universidades Federais, para continuar apoiando as pesquisas que vão tornar o país mais justo e menos desigual, aí não tem recurso”, questiona o professor acerca das prioridades orçamentárias do Ministério da Educação.
O diretor da FEUSP também critica o fato do programa priorizar escolas com maior vulnerabilidade social e nota no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) abaixo da média nacional: “O projeto cívico-militar mira quem? Eles estão querendo doutrinar, militarizar e apagar as identidades daquele mesmo grupo que eles estão matando: o jovem pobre, negro, que mora na periferia. Ou seja, ou eles mudam, ou são dizimados, ninguém está pensando em promover melhores condições para eles”.
Modelo
Além da melhoria do ambiente escolar, uma das expectativas envolvidas no projeto de militarização das escolas públicas é melhorar a aprendizagem e o desempenho dos alunos, o que seria medido em indicadores como o Ideb. As cívico-militares existem graças a uma parceria entre Secretaria Estadual de Segurança Pública e Secretaria Estadual de Educação e, segundo o Ministério da Educação (MEC), há 203 unidades no País com esse modelo em 23 Estados e no Distrito Federal, que atendem 192 mil alunos.
De fato, a nota do Ideb nos colégios militares é maior do que o da maioria das escolas públicas. Quando olhamos para os dados de 2017 a média das instituições militares foi de 6,5, enquanto nas escolas públicas a média foi de 4,1. Entretanto, o professor aponta para uma falsa correlação que o governo faz desses dados. “Nas escolas militarizadas, em todas elas, há processo seletivo, há professores contratados com outra carga horária e os estudantes têm outras condições sócio-econômicas. Não dá para comparar esses colégios com a escola estadual de periferia”.
Contudo, o professor também ressalta que modelos não militarizados atingem resultados semelhantes e até melhores do que os colégios militarizados. “Dá sim para comparar qualquer colégio militar com os Institutos Federais e as escolas em tempo integral, onde você também tem processo seletivo e bom salário dos professores e aí os resultados são equivalentes”, afirma.
Também é preciso ressaltar que as escolas cívico-militares têm um modelo muito diferente das escolas públicas estaduais e municipais. O modelo prevê atuação de militares na gestão escolar e educacional (monitores, supervisores, psicopedagogos, etc.) e a manutenção de professores civis nas salas de aula, diferente dos colégios militares onde todo o corpo docente e administração são formados oficiais do exército. Acerca do modelo cívico-militar o ministro também afirmou “não existe sobreposição entre espaço do professor civil e a equipe militar. É uma conjunção de valores que permite um norte”.
Todavia, o professor Marcos Neira acredita que a relação entre militares e comunidade escolar encontraria dificuldades no que diz respeito à formação dos oficiais da reserva. “Eu quero ver no que isso vai dar. Quase todos os sistemas públicos exigem que essa função também tenha tempo de magistério. Como que a gente vai contratar alguém da reserva que não tem a menor formação pedagógica e vai lidar com crianças que vêm de grupos sociais completamente diferentes? E como essas pessoas vão lidar nessa escola com alguém que é da educação?”, questiona.
Além disso, vale lembrar que A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em seus artigos 14 e 15, apresentam determinações acerca da gestão democrática das escolas, e versa sobre a participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola bem como a participação da comunidade escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes. Segundo o professor, a ingerência dos militares na administração das escolas poderia ir de encontro com o determinado na LBD.
“Nas escolas que adotam gestão democrática o órgão mais importante é o Conselho de escola, um colegiado composto por alunos, pais, professores e membros da equipe pedagógica que vão discutir os problemas da escola e encontrar soluções. Quem passou uma vida acostumado a receber ordens do capitão, do tenente ou do tenente-coronel vai aceitar ser orientado, conduzido e comandado pelos professores e professoras? É uma estrutura que não condiz em nada com o militarismo”, afirma.
Segundo o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, devem ser usados, na primeira fase, 540 militares da reserva para atuar em 30 escolas. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, disse que pretende terminar o mandato com 10% das escolas do país sob gestão cívico-militar, e assume que para atingir tal valor seria necessária a reeleição do presidente Jair Bolsonaro.
Adesão voluntária?
Durante o lançamento do programa, Bolsonaro fez comentário sobre a implementação das escolas cívico-militares este ano no Distrito Federal, em que pais, alunos e professores de duas escolas decidiram não aderir à militarização e afirmou que é preciso “impor” o modelo. Tal afirmação culminou na demissão do ex-secretário de educação, Rafael Parente, que usou as redes sociais para criticar a imposição da gestão militarizada nas escolas. “Eu gostaria de estar na pele desse secretário e ser demitido por não aceitar esse modelo. Qual o problema de qualquer profissional defender os seus princípios e o bem daquele serviço que ele está prestando?”, afirma o diretor.
O professor avalia positivo o caráter de adesão voluntária do projeto e ressalta que uma mudança desse tipo não pode ser objeto de imposição e que a decisão da comunidade escolar será afetada tanto pela narrativa do governo, quanto pela realidade de conflitos e precarização enfrentada pelas escolas. “A propaganda pode ser disseminada com tanta força nos veículos de comunicação que a comunidade ache que aquilo é bom. Eu até entenderia os professores que enfrentam conflitos cotidianamente e vejam nisso uma maneira de protegê-los dessa realidade. Talvez a comunidade faça uma escolha sem condições ideais”, afirma.
Impacto Pedagógico
Nos colégios militares e cívico-militares é comum a imposição de regras duras de disciplina, que incluem a restrição das movimentações dos estudantes na escola, formação de filas, mãos para trás e cabeça baixa. Há também exigência de uniforme específico (fardamento) e obrigação de cortes de cabelos curtos (para os meninos) e presos (para as meninas), além da proibição de brincos, colares chamativos, entre outras restrições.
Ao ser perguntado se tal modus operandi teria algum benefício pedagógico o diretor da FEUSP foi categórico: “Não vejo absolutamente nenhum benefício desse modelo para escola nenhuma, seja para aquelas que estejam em situação de vulnerabilidade ou não, seja para aquela que tem o Ideb alto ou não”, afirma o professor.
“A escola pública da contemporaneidade precisa ser o lugar da diversidade. É muito bom que os meninos tenham cabelo comprido, curto, ou pintado, bem como as meninas, é muito bom que o aluno vá para a escola e encontre pessoas de todos os tipos, porque a gente precisa aprender a conviver com as diferenças”. O professor também disse ser contrário ao uso de uniforme inclusive nas escolas que não são cívico-militares.
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