Embate entre jornalismo e governo pede autocrítica à imprensa

Com influência das redes sociais, poder e mídia brigam por "centros produtores da verdade"

O debate sobre a existência de um conflito entre governos e imprensa permeia setores da sociedade há muito tempo, mas ganhou um destaque especial recentemente, com ações controversas, por exemplo, do governo de Jair Bolsonaro e do Supremo Tribunal Federal no Brasil e da administração de Donald Trump nos Estados Unidos. Pensando nisso e na intersecção entre jornalismo e democracia, o grupo de pesquisa “Jornalismo, Direito e Liberdade” (JDL), vinculado à Escola de Comunicações e Artes e ao Instituto de Estudos Avançados da USP, fez de “Jornalismo e crise da democracia” seu tema geral para 2019, e tem realizado reuniões e eventos voltados ao assunto.

Liderado pelos professores Vitor Blotta e Eugênio Bucci, o grupo promoveu em maio o seminário “Governo x Imprensa: Quando o Jornalismo é o Alvo” para debate. A partir do evento e das pesquisas, conclusões puderam ser tomadas pelo JDL: elas vão desde o extremismo e populismo político como causas, com uma visão carismática e afetiva dos líderes como influência aos gostos e opiniões populares, à necessidade de autocrítica à atividade jornalística.

Cartaz de divulgação do seminário (Imagem: Divulgação/JDL)

Entre alguns casos concretos trabalhados pelo grupo, estão a demonstração de que o “embate” entre mídia e governo não se restringe a apenas uma corrente política. Foram debatidas, por exemplo, a expulsão de um jornalista do “New York Times” do Brasil em 2004, após reportagem crítica do jornal sobre o então presidente Lula; a empreitada do presidente Jair Bolsonaro contra a “Folha de S.Paulo”, antes e depois de sua eleição; e os ataques do presidente norte-americano, Donald Trump, ao mesmo NYT.

“A proposta do seminário é ver em que medida governantes, especialmente o Executivo, exercem uma pressão excessiva sobre meios de comunicação, a ponto de intimidar, difamar”, afirma o professor Blotta. “É pensar nesses abusos do governo sobre a liberdade de imprensa, que vão desde campanhas difamatórias em relação ao trabalho do jornal até mesmo a alguma coisa mais direta, como ‘pedir a cabeça’ do jornalista ou pedir uma extradição”, completa.

As causas da descredibilidade da imprensa alavancada por governantes são diversas. A mais conhecida no momento, evidentemente, é o uso das redes sociais pelo poder, que Blotta classifica como um canal de comunicação mais direto entre o governante e o povo. Trump, por exemplo, é frequentador assíduo do Twitter, no qual divulga campanhas abertas contra veículos importantes (e sérios), como o “New York Times” e a rede de televisão CNN. Bolsonaro, seguindo a onda do líder norte-americano, também já atacou o jornalismo em suas redes, tanto no Twitter quanto em transmissões ao vivo no Facebook, tendo a “Folha” como um de alvos favoritos. Classificar os críticos como “fake news” virou moda nos governos.

Segundo a opinião do professor, muitas vezes as redes sociais são meios com alcance até maior que o dos jornais, o que os torna “centros produtores da verdade”, mesmo que não os sejam. Blotta traça ainda paralelo com a ciência, comparando a desinformação às campanhas de descrédito da Academia nas mídias sociais, como as de terraplanismo ou contrárias às vacinas.

Mas há saídas para a verdade? Para Blotta, sim – com a necessidade de debates. Ele cita o “crowdfunding” e o pagamento pela informação séria como importantes para a valorização da atividade jornalística, além de conclamar o apoio de fundos e pessoas mais ricas à imprensa – como ocorre com o jornal “The Guardian” (Inglaterra), com a agência de Michael Bloomberg e até mesmo no Brasil, com a revista “Piauí” sustentada pelos Moreira Salles.

“É importante continuar fazendo um bom jornalismo, responder com melhor checagem ainda e com mais equilíbrio nas matérias, para conseguir uma base de leitores que também seja cética ao poder”, diz. “Talvez o jornalismo consiga se salvar por isso, por ser uma posição tão forte melhorando suas técnicas e a parte ética.”

Além disso, ainda propõe atuações legislativas e judiciárias para se combater o massacre dos poderosos sobre os “peixes menores” – sem deixar de lado, é claro, uma autocrítica à imprensa e à academia.

Para Blotta, chegou o momento de se pensar na relevância das informações divulgadas e a quem se divulga. “Entender que existe uma opção de informação muito elitizada”, diz. “A produção poderia ser mais voltada para outros públicos, que não se identificam, não se sentem representados por esse tipo de informação. Isso não significa perder critérios de qualidade, mas sim pensar em temas e linguagens diferentes e de maior acessibilidade, sem fazer a distorção de sobrepor o emocional e o gosto sobre o informativo.”

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