Agricultura familiar busca estratégias para inovação

Desenvolvimento do ramo agropecuário gera debate sobre o futuro de um dos setores mais importantes e diversos da agricultura

Imagem: Agência Brasil

Nossa realidade atual é marcada por rápidas mudanças. A pesquisa traz soluções para o modo de produzir; a tecnologia maximiza o desempenho e reduz impactos; e as demandas da sociedade mudam com frequência. A agropecuária vive as mudanças a cada dia, num esforço para caminhar junto à inovação tecnológica, aos desejos da sociedade, e à sustentabilidade.

Nisso, há empenho para tornar possível a adesão de um importante setor da economia a este processo: a agricultura familiar. Promover o desenvolvimento desta área é um grande desafio, e pesquisa, extensão rural e políticas públicas buscam a melhor forma de fazê-lo.

A agricultura familiar compreende formas diversas de produção agropecuária e é a grande responsável pelo abastecimento alimentício do mercado nacional: segundo o IBGE, dos alimentos na mesa do brasileiro, cerca de 70% provém da agricultura familiar. Ela também representa 85% dos estabelecimentos rurais no país.

O doutor em Sociologia Paulo Moruzzi, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, reitera a importância da agricultura familiar: “Os produtores familiares tendem a explorar de forma mais eficaz suas terras, oferecendo muitos postos de trabalho.” Neste setor 74,4% dos trabalhadores rurais estão empregados, tornando-o instrumento de fixação da população no campo.

No entanto, agricultores familiares sofrem entraves econômicos, sociais, geográficos e tecnológicos que dificultam a modernização da atividade. Enquanto agronegócio e agroindústria inovam em sua produção, muitos estabelecimentos familiares ficam à margem do desenvolvimento.

“A inserção no processo de desenvolvimento pode ampliar a geração de emprego e renda, e dinamizar economias locais, com produtos de qualidade para a população”, relata José Humberto Valadares Xavier, pesquisador em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural na Embrapa. Não se trata apenas da introdução de inovações tecnológicas no sistema familiar: “A modernização significa uma profunda modificação da organização da produção e também das relações sociais.”

A agricultura familiar movimenta milhões de trabalhadores e produz a maior parte dos alimentos para consumo no Brasil. Fonte: SEAD

Agricultura familiar: categoria plural e complexa

Não é possível falar de um modelo padrão de agricultura familiar. O termo engloba famílias de diferenças marcantes, portanto propor uma única abordagem que contemple todas as realidades é equivocado. Xavier explica que os núcleos agricultores vão desde famílias pouco incorporadas aos mercados, que praticam agricultura voltada principalmente para sustento da própria família, até estabelecimentos integrados com os mercados agrícolas, que buscam valorização de seus produtos.

Estas desigualdades são evidentes se compara agriculturas de diferentes estados. Enquanto no Nordeste têm-se 71% dos produtores sem renda para sair da linha da miséria, no Sul há uma agricultura familiar organizada e bem desenvolvida, com produtores integrados ao mercado e à inovação, gerando renda e produtividade.

Elas podem coexistir num mesmo estado ou comunidade. A proximidade com grandes centros e áreas de fácil escoamento da produção, por exemplo, já é vantagem para estabelecer contato do produtor familiar com os mercados.

Para Moruzzi, tal diversidade implica que a inovação deve ser fundada no estudo das especificidades de cada território. “Este reconhecimento deve estar fundado na análise do lugar que a agricultura familiar ocupa, para um desenvolvimento sobre bases sustentáveis, com inclusão social e compromisso ambiental.”

Desafios para o desenvolvimento

Com o acelerado crescimento do agronegócio e o desenvolvimento de tecnologias para produção agrária, torna-se urgente pensar em maneiras para evitar o prejuízo à agricultura familiar. André Chagas, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, aponta consequências da falha na incorporação de agricultores familiares numa lógica moderna: “Os que não acompanham essa dinâmica tendem a perder produtividade, podem sair do mercado, adquiridos por produtores mais capazes, ou ficarem pendurados em subsídios do Estado”.

Estabelecimentos agrícolas, mesmo os familiares, precisam apresentar algum nível de competitividade para se manter num mercado. Chagas explica que, sem esta competitividade, a produção só sobreviverá por meio de subsídios ― os quais as contas públicas não conseguem garantir satisfatoriamente.

Xavier lembra que estes produtores enfrentam limitações além da técnica. O baixo nível de escolaridade relaciona-se a uma capacitação precária para gestão, o que implica na dificuldade do produtor em administrar sua propriedade e pode limitar sua visão para a inovação.

O pesquisador comenta sobre práticas comuns de gestão na agricultura familiar. Ele conta que produtores procuram adaptar suas atividades às pressões externas, como a limitação de recursos ambientais. Isto significa uma preocupação com a prevenção de riscos, que “pode ter como consequência certa resistência à mudança tecnológica, aparentando postura passiva e  imobilismo técnico. Mas esse comportamento deve ser analisado como estratégia destinada a limitar o risco e, portanto, deve ser integrada no processo de mudança tecnológica.”

A organização destes agricultores, não só dentro de seus próprios estabelecimentos, mas em uma comunidade agrícola, é essencial para o desenvolvimento rural, segundo Xavier. “A organização é estratégica para viabilizar estabelecimentos agrícolas, pois possibilita mais produtos para comercializar, com agregação de valor por meio de infraestruturas coletivas de beneficiamento, acesso ao crédito, estratégias de capacitação técnica e gerencial, acesso a insumos, máquinas e equipamentos, assim como a promoção de aspectos sociais como educação, saúde e lazer.”

Crescimento com sustentabilidade

Ao passo que a inovação tecnológica torna-se cada vez mais importante para a agropecuária brasileira, outra questão exige atenção: a sustentabilidade. Cresce uma demanda não apenas imposta por instituições de cuidado ambiental, mas também da sociedade, sobre o manejo dos recursos utilizados para a agricultura. A preocupação com desmatamento, queimadas, a poluição de rios e solos, a erosão e a escassez hídrica impacta na maneira de consumir.

Eis uma oportunidade para a agricultura familiar. Para Moruzzi, a agroecologia pode ser uma base sólida para a inovação no ramo. As lógicas produtivas, sociais e econômicas da produção familiar estão bem adaptadas ao viés agroecológico, e são favoráveis à perspectiva da sustentabilidade.

Para isto ocorrer, retoma-se a necessidade de adaptar cada medida à realidade em questão, para que nem o meio ambiente nem a qualidade de vida e produção do agricultor sejam prejudicadas. Segundo Xavier, “é importante desenvolver métodos e ferramentas para avaliar o desempenho dos estabelecimentos, com os ‘óculos’ da sustentabilidade. Trata-se de avaliar e analisar como eles se comportam em viabilidade econômica, promoção de aspectos sociais e prudência ecológica.”

Novos mercados, novas oportunidades

Recentemente, novos nichos de mercado vêm surgindo principalmente para o ramo alimentício. O aumento da preocupação com a preservação do meio ambiente, o respeito aos animais, e com a forma de produção e a qualidade do que se consome criou novos segmentos cujos interesses podem ser bem atendidos pela agricultura familiar.

São os consumidores vegetarianos, veganos, adeptos de dietas saudáveis, do fitness, apreciadores da comida gourmet, entre outros. Eles apresentam grande cuidado com a seleção de seus alimentos ― e, como dito, a agricultura familiar tem grande potencial para a produção sustentável, além de gerar produtos com importantes cargas culturais. Como reitera Moruzzi: “A agricultura familiar é capaz de responder às expectativas sociais crescentes de um desenvolvimento sustentável, inclusivo e conciliando produção saudável com proteção ambiental.”

A alimentação orgânica cresce em adeptos no Brasil – uma oportunidade para a agricultura familiar. Imagem: Repórter Gourmet

É possível aumentar a demanda para a agricultura familiar pelos novos consumidores. No entanto, é necessário que o produtor esteja ciente das possibilidades, e disposto a arriscar.

O empreendedorismo rural pode ser incentivado com base nisso. A precariedade na gestão da propriedade e o baixo nível de capacitação técnica, juntamente ao empreendedorismo, podem ser temáticas de programas de treinamento oferecidos ao produtor rural. Hoje, o Sebrae oferece tais serviços junto ao setor, mas há espaço para expansão do trabalho em torno destes mercados alternativos.

Soluções para o presente

Existem agentes comuns nos esforços de desenvolvimento deste segmento. A pesquisa, ensino, extensão rural e políticas públicas estão presentes em grande parte dos programas e ações de apoio ao agricultor familiar.

Chagas lembra que uma rede de pesquisa em agricultura, envolvendo universidades, escolas agrícolas estaduais e a Embrapa, que se destaca na pesquisa e promoção da difusão tecnológica, já existe. Moruzzi, no entanto, afirma que há mais a ser explorado: “O papel da universidade pública deveria ser ainda maior neste campo, promovendo o fortalecimento da agricultura familiar a partir de uma análise profunda dos meios mais adequados para este fim.”

Existem diversas políticas públicas direcionadas ao desenvolvimento de produtores familiares. O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) é destaque, oferecendo crédito para financiamento da produção de pequenos agricultores.

Todavia, Chagas aponta que, embora projetos relacionados à agricultura familiar tenham crescido na última década, ainda não existe uma avaliação rigorosa dos resultados. Ele denuncia a falta de uma padronização dos dados, que permita a avaliação dos impactos de cada programa. “Hoje, não sabemos ao certo quanto gastamos, e muito menos quais os resultados de tais gastos”.

Moruzzi concede que as políticas já existentes são medidas pertinentes da ação pública, mas deveriam ser acompanhadas por intervenções estruturais, como a reforma agrária.

Para evitar os danos da limitação de recursos públicos, Chagas sugere a atração de agentes privados. “O financiamento ainda é muito dependente de bancos estatais. Seria importante envolver bancos privados ou mesmo instituições financeiras locais.” Ele sugere que o acesso à inovação seja garantido pelo Estado, com políticas de subsídios com prazos de validade, vigentes até que a família supere sua condição adversa.

“Considera-se o desenvolvimento sustentável não apenas como mudança tecnológica, mas um processo de mudança social, baseado na construção coletiva de conhecimento”, conclui Xavier. Essa modernização e desenvolvimento requerem atuação conjunta de pesquisa, ensino e governo, numa relação construtiva com cada produtor, moldada à sua própria realidade.

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