Meio ambiente em perigo: o quanto a pandemia custou para os ecossistemas brasileiros

Além da crise sanitária, o ano de 2020 foi marcado por queimadas, desmatamento e flexibilização de políticas ambientais

Representação do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ante os desastres ambientais do ano de 2020 [Autoria: Matheus Zanin (2021)]

Por Beatriz Carneiro, Catarina Virginia Barbosa, Gabrielle Abreu, Kaynã de Oliveira e Matheus Zanin de Moraes

O ano pandêmico de 2020 reuniu ameaças severas ao meio ambiente, como as queimadas no Pantanal e a exportação ilegal de madeira na Amazônia. Em meio a este cenário, a pandemia foi vista como uma oportunidade pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de passar reformas para desregulamentar a fiscalização e simplificar leis ambientais que afetariam o manguezal, um ecossistema já muito ameaçado. Confira nesta reportagem especial, as decisões do Governo Federal por meio do Ministério do Meio Ambiente e os impactos diretos e indiretos da pandemia na resolução desses conflitos. 

O Conama e a “passada da boiada”

As ações do Governo Federal que impactaram o meio ambiente em 2020 começaram um ano antes, quando o governo reduziu de 96 para 23 o número de membros do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), órgão consultivo e deliberativo dentro do Ministério do Meio Ambiente. Com esta ação, o ministro Ricardo Salles concentrou a maioria dos votos nas mãos do Governo Federal e de representantes do setor produtivo. 

Em reunião ministerial em abril de 2020, Salles defendeu que o governo utilizasse o momento da pandemia para focar na flexibilização de normas ambientais e “passar a boiada”.  O professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e especialista em Geografia Política e Meio Ambiente, Wagner Costa Ribeiro, explica que essa postura do ministro visa cumprir uma política de fragilização das políticas ambientais em âmbito nacional e, consequentemente, colocar uma agenda de interesses privados enquanto os olhares voltam-se para a pandemia.

Diante da nova concepção do Conama, em setembro de 2020, o governo revogou quatro resoluções, três delas consideradas necessárias para a preservação de manguezais, da restinga e dos lençóis freáticos. As Resoluções 303/2002 e 302/2002 tratam de parâmetros e definições de limites para áreas de preservação permanente, as APPs, com a primeira tratando especificamente das restingas e dos manguezais. A revogação dessas regras abriria espaço para especulação imobiliária nas faixas de vegetação das praias, além de outras atividades de exploração. 

Manguezais são áreas úmidas entre ambientes marinhos e terrestres, sujeitos ao regime de marés. [Fonte: Divulgação/Revista Algo mais (2020)]
A justificativa do Governo Federal para a revogação foi que essas regras já eram abarcadas por leis que vieram depois, como o Código Florestal. Yara Novelli, professora do departamento de Oceanografia Biológica do Instituto Oceanográfico (IO) da USP, comenta que a Lei 12.651, de 25 de maio de 2012, também conhecida como novo “Código Florestal” ajuda na conservação do ecossistema, sem tirar o mérito das resoluções revogadas. “O Código Florestal tem um viés tremendamente agrícola, pastoril e empresarial, mas ainda assim, os manguezais estão juntos com as restingas protegidos sob a caracterização de APPs. Este inciso da lei não foi alterado e com ele nós temos uma regência bastante favorável à conservação do ecossistema”, explica a professora. 

Houve grande comoção por parte da sociedade civil para a não revogação dessas medidas. A questão foi levada ao Supremo Tribunal Federal (STF) e, em outubro do mesmo ano, a ministra Rosa Weber suspendeu a decisão do Conama. Para a relatora, a revogação das normas protetivas, sem que se procedesse à sua substituição ou atualização, compromete o cumprimento da legislação brasileira. 

Preservação do manguezal

O manguezal é o único ecossistema no mundo que possui espécies de árvores que toleram a água salgada, contendo uma vegetação que respira através de raízes aéreas. Ele atua como berçário para espécies marinhas e ajuda a amenizar o efeito estufa, explica Novelli. “Os manguezais são os mais eficientes captadores de CO₂ da atmosfera, mais até do que florestas tropicais terrestres. Eles não somente abrigam espécies de importância comercial, como também protegem a linha de costa contra a erosão e prestam serviços ecossistêmicos culturais importantes como o sincretismo religioso”, diz a pesquisadora. 

Sabendo do amparo jurídico para a preservação dos mangues, temos como desafio a falta de aplicação do nosso sistema legal, como comenta Patrícia Iglecias, professora associada da Faculdade de Direito (FD) da USP e diretora-presidente da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB). “O Brasil tem reputação internacional de possuir um abrangente e atualizado arcabouço legal, em especial para o meio ambiente (…), sendo a fragilidade mais evidente do Brasil no âmbito da implementação das suas políticas ambientais, a capacidade de fiscalização e aplicação da ampla legislação existente”. Reflexo disso é que os manguezais perderam 20% de sua área em 15 anos, em parte por causa da expansão urbana, como indica o MapBiomas

Amazônia, Pantanal e desmatamento

Não bastasse o registro de 194.949 mortes por covid-19 em 2020 no Brasil, o ano também se encerrou com o maior número de focos de queimadas ao longo de dez anos, segundo o  Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O Instituto registrou 222.798 focos, contra 197.632 em 2019, um aumento de 12,7%.  Só na Amazônia, foram 103.161 focos de queimadas em 2020, um aumento de 15,68% com relação a 2019. 

Apesar das queimadas serem mais numerosas na maior floresta tropical do mundo, o pior aumento dos focos foi visto na maior planície alagada do planeta: o Pantanal, com um crescimento de 120% a mais que o ano de 2019. Em 2020, foram registradas 22.116 queimadas no bioma, sendo que o ano anterior contou que contou com menos da metade do número de focos, 10.025.

O ano de 2020 fechou com o maior número de queimadas em uma década, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). [Fonte: Ibere Perisse / Projeto Solos / AFP (2020)]
O professor da FFLCH, Wagner Costa Ribeiro, explica que esse contexto de aumento das queimadas e a verificação do desmatamento, tanto na Amazônia como no Pantanal, não apresenta relação direta com a pandemia. “O que estamos assistindo, na verdade, é um projeto do Governo Federal de flexibilização da legislação ambiental, por meio do enfraquecimento dos órgãos ambientais e, ao mesmo tempo, de impunidade em relação a quem comete crimes ambientais”, critica. 

Ribeiro ainda enfatiza que o desmatamento ilegal e os focos de queimadas acontecem em unidades de conservação e em terras indígenas: “os dados apontados pelo Inpe são realmente muito importantes e dramáticos, porque eles têm uma peculiaridade em comum: estão acontecendo onde não deveriam, e isso comprova o ‘coroamento’ da falta de ações do Governo para coibir essas atividades ilegais”. 

Para piorar a situação de descaso com as políticas voltadas ao meio ambiente, o relatório do Observatório do Clima (OC) divulgou que o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2021, enviado pelo governo ao Congresso, tem a menor proposta orçamentária desde o ano de 2000 para o Ministério do Meio Ambiente.

A docente Patrícia Iglecias explica as implicações do projeto nas políticas de fiscalização: “O PLOA demonstra uma expressiva diminuição no orçamento federal para fiscalização ambiental e combate a incêndios florestais, implicando numa redução de 27,4% em comparação com 2020. Se comparado com o ano de 2019, a redução é ainda mais expressiva, sendo de 34,5%”.

O que se tem assistido é uma série de decretos vinculados a unidades de conservação e uma desestruturação do Ministério do Meio Ambiente. O órgão se utiliza do contexto da pandemia para “passar a boiada” na legislação ambiental, haja vista que, pela situação de urgência da saúde pública, temas relacionados a covid-19 ganham maior visibilidade.

Junta-se a esse cenário pandêmico, o sufocamento dos órgãos de fiscalização federal e as medidas que incluem a flexibilização do controle da exportação de madeira, como comenta Iglesias. “Essas ações, dentre outras, podem gerar sérias consequências para a capacidade de ação do governo federal para a preservação dos principais biomas na Amazônia e no Pantanal para conter o desmatamento, as queimadas e o consequente aumento das emissões de gases de efeito estufa nacionais.”

Desastres ambientais e consequências na saúde

Além dos impactos sociais decorrentes do desmatamento, o processo de queima e destruição de biomassa gera resíduos e aumento da poluição do ar, em decorrência da produção de gases como gás carbônico (CO2), metano (CH4) e monóxido de carbono (CO). Se antes da pandemia a poluição já prejudicava a saúde da população, ao longo de 2020, o aumento de casos de covid-19 em regiões afetadas pelo desmatamento revelou um novo problema para a saúde pública: a possibilidade de agravamento dos sintomas relacionados ao coronavírus.

De acordo com Rafael Junqueira Buralli, doutor em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP (FSP-USP), a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado foram biomas que sofreram um aumento significativo da taxa de desmatamento nos últimos anos, aumentando a vulnerabilidade e suscetibilidade dos indivíduos à covid-19. 

Incêndio florestal atinge o Pantanal em julho de 2020. [Fonte: Polícia Militar Ambiental, Corpo de Bombeiros e Instituto Homem Pantaneiro]
“A poluição do ar afeta o sistema respiratório e cardiovascular. Consequentemente, causa doenças crônicas como asma e bronquite. A poluição do ar também já foi associada a ataques cardíacos, derrames, diabetes e hipertensão, que são, obviamente, comorbidades muito importantes, tanto do ponto de vista dos efeitos à saúde humana, como dos efeitos aos sistemas de saúde, dos impactos por internação”, explica Rafael. Tais comorbidades são fatores agravantes da covid-19 e podem, ainda, dificultar seu diagnóstico.

Embora não existam ainda estudos que comprovem que a fragilização do sistema respiratório causada pelas queimadas aumente as chances de casos graves de coronavírus, um levantamento da Agência Pública de 2020 aponta que os meses com maior registro de queimadas na região amazônica também foram os meses em que os estados dessa mesma região tiveram maior incidência de infecções por Síndrome Respiratória Aguda, diagnóstico que precede a confirmação da covid-19. 

Em 2021, o sistema de saúde de Manaus entrou em colapso pela falta de oxigênio para atender pacientes em estado grave de covid-19 [Imagem: Fotos Públicas]
Paulo Saldiva, patologista e professor da Faculdade de Medicina (FMUSP) da USP, ressalta ser “possível que a fumaça das queimadas, por provocar uma inflamação no trato respiratório, fragiliza as defesas contra o vírus e torna a infecção mais provável, dado o mesmo inóculo do vírus. Ou seja, uma quantidade de vírus, mesmo pequena, quando enfrenta um pulmão mais inflamado tem mais chances de se propagar. É assim que acontece com a poluição do ar e com os fumantes”.

Além dos problemas derivados da poluição do ar, o desmatamento aproxima animais e humanos. “À medida que destruímos os habitats onde esses animais vivem, eles migram para mais perto de nós, o que aumenta o risco de doenças zoonóticas, que passam dos animais para os humanos. Cerca de 70% das doenças infecciosas emergentes, que são observadas entre humanos, são originárias de animais, como o próprio coronavírus”, Buralli acrescenta.

Para o professor Saldiva, a pandemia leva à reflexão sobre o equilíbrio planetário para evitar tragédias como a atual. É essencial preservar, focar no desenvolvimento sustentável para garantir a sobrevivência do ecossistema e garantir à população o acesso à saúde. “A pandemia escancara que a Amazônia e a região centro-oeste tem uma deficiência de assistência de saúde e insumos, tanto pela sua geografia, quanto por uma consequência crônica dos profissionais de saúde não se deslocarem preferencialmente para essa região. Que no futuro não se repita a tragédia de pessoas morrendo por falta de ar”.

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