Produções feitas por crianças contribuem para divulgação científica participativa

Brincadeiras e histórias aproximam o público infantil de conceitos da ciência e podem revelar aspectos de identidade e transformação em realidades locais

O engajamento de crianças e jovens em projetos científicos é uma das ações propostas por pesquisadores da USP para favorecer a percepção de ciência enquanto uma das ferramentas na resolução de problemas. [Imagem: Alessandra Bizerra/Projeto Alavanca]

O cenário científico tem enfrentado uma sequência de cortes financeiros e desinformação no Brasil. O orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) caiu mais da metade nos últimos seis anos e, em tempos de pandemia de Covid-19, notícias falsas sobre vacinação se propagaram em aplicativos de mensagens e redes sociais. Apesar dessas tendências, o interesse declarado por ciência é alto entre os brasileiros. Segundo a última pesquisa de percepção pública realizada pelo MCTI, mais de 60% das pessoas entrevistadas afirmaram estar muito interessadas ou interessadas em Ciência e Tecnologia. Os números são ainda mais altos quando se consideram assuntos ligados a Meio Ambiente (76%) e Medicina e Saúde (79%).

No entanto, estar interessado nem sempre é se informar sobre os temas. Como a pesquisa do MCTI aponta, grande parte dos brasileiros não visita e não participa de atividades em espaços de ciência e tecnologia, como os museus. Para uma maior aproximação entre ciência e sociedade, as escolas podem ser aliadas importantes ao estimularem a participação de crianças e adolescentes nas discussões sobre temas científicos.

A professora e pesquisadora Alessandra Bizerra, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), dedica-se a entender como a ciência, e mais especificamente a Biologia, circula em diferentes contextos sociais. Ela destaca que, no Brasil, os principais editais públicos de divulgação científica e popularização da ciência, aprovados pelo MCTI, têm as escolas como público principal, como indicam os resultados iniciais da pesquisa realizada por Tatiana Venancio, doutoranda em Educação orientada por Alessandra. 

Apesar de o viés escolarizado não garantir por si só a eficácia da divulgação científica em alcançar públicos mais amplos, a participação de crianças em projetos de divulgação e ensino de ciências tem potencial de estimular reflexões e transformações nas realidades locais.

Uma das maneiras de aproximar crianças e o universo científico é por meio da visita a museus de ciência e de projetos educativos, como o projeto Agrofloresta, desenvolvido pelo IB-USP em parceria com a comunidade São Remo. [Imagem: Projeto Alavanca/Jornal da USP]
Além dos muros da universidade

Como exemplo de iniciativa, Alessandra cita o projeto Ciências da Remo, desenvolvido por estudantes do IB em parceria com a comunidade do Jardim São Remo, localizado ao lado da USP na capital paulista. As atividades são diversas e incluem a leitura de território e sua relação com a biodiversidade da região. A proposta é estabelecer diálogos e uma construção participativa do conhecimento. “Uma das nossas ideias é ir às comunidades e tentar mapear características que as crianças gostariam de transformar ali. Então analisamos o que é cabível no tempo do projeto, o que podemos trazer de subsídios e como podemos incluir o que as crianças já sabem para construir essa transformação”, afirma.

O Riacho Doce, corpo de água que nasce na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ- USP) e atravessa a São Remo, foi um dos temas trabalhados. Alessandra lembra o quanto os estudantes da comunidade ficaram impressionados ao descobrir que o riacho que passa próximo à casa deles deságua no Oceano Atlântico pela Argentina, após um percurso pelo Rio Pinheiros, Rio Tietê e vários outros rios até formar o Rio da Prata. “Eles [os estudantes] marcaram à tinta no território por onde o riacho passa. Então é uma forma de divulgar o que eles aprendem, eles mesmos produzindo material de divulgação científica”, destaca a professora do IB.

O projeto hoje está voltado para a produção de mídias sobre Covid-19, como forma de discutir e divulgar aspectos da pandemia que afetam a realidade imediata da comunidade. Segundo Alessandra, o período de aulas on-line trouxe desafios para a motivação e a aproximação das crianças a temas científicos do cotidiano, mas a proposta é que, com o retorno presencial, as demandas voltem a ser colocadas pelas comunidades locais. O papel dos educadores e divulgadores científicos seria, então, o de trazer a ciência como uma possível ferramenta para a resolução de problemas, em diálogo com outras ferramentas disponíveis. 

Os projetos Riacho Doce e Agrofloresta foram desenvolvidos inicialmente em uma disciplina de graduação do IB-USP em parceria com a comunidade São Remo. A iniciativa foi posteriormente transformada no projeto de extensão universitária Ciências na Remo. [Imagem: Fúvia Mesquista/São Remo/IB-USP]

Além das fronteiras entre estados

A participação de crianças em iniciativas de divulgação científica e extensão universitária também pode ir além de áreas próximas à universidade. Marcelo Sato, mestre em Ensino de Ciências e biólogo formado pelo IB, foi até o interior de Santa Catarina estudar o engajamento de crianças de 6 a 12 anos na produção de materiais audiovisuais ligados à conservação ambiental. As crianças produziram dez episódios de radionovelas e dois vídeos de divulgação no contexto do projeto “Reintrodução do papagaio-de-peito-roxo no Parque Nacional das Araucárias”. O trabalho é fruto de uma parceria que envolve o Instituto Espaço Silvestre, as secretarias de educação das cidades de Ponte Serrada e Passos Maia, e três escolas da rede municipal.

Ao longo da produção, as crianças construíram histórias em grupo sobre o papagaio-de-peito-roxo, que havia sido extinto na região na década de 1980 e, desde 2010, tem sido reintroduzido na floresta pelo projeto.

Acompanhar e orientar a produção das histórias permitiu a Marcelo analisar quatro modos principais de participação infantil na divulgação científica: como as crianças inserem elementos de seu contexto e do local onde vivem; como elas constroem e representam elementos simbólicos, como o Bem e o Mal; como elas participam das decisões técnicas de produção, e como elas constroem e reivindicam suas identidades no processo.

O papagaio-de-peito-roxo, elemento-chave das produções feitas por crianças durante o mestrado de Marcelo Sato, é símbolo da Floresta de Araucária, um dos biomas que integram a Mata Atlântica. [Imagem: Marcelo Sato]

Para Marcelo, um dos maiores aprendizados de uma produção participatória é conhecer bem o público e entender que cada grupo social têm suas regras específicas e que é preciso equilibrar as diferentes regras e os interesses dos envolvidos: “Quando vamos criar uma história junto com as crianças, a gente tem que entender que as crianças vão encaixar nossas ideias naquilo que elas entendem como uma boa história”, destaca o pesquisador.

Neste sentido, para Alessandra, a contação de histórias trabalha emoções e pode ser uma aliada da ciência ao relacioná-la a outros fatores decisivos para a tomada de decisão das pessoas, como ideologia e valores sociais. Convidar as crianças para participar de ações que discutem e divulgam ciência, inclusive por meio de histórias, seria uma maneira de conhecer suas ideias sobre temas científicos e inseri-las no contexto local, no “mundo real” em que as crianças — e os adultos ligados a ela — vivem, com potencial transformador.

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