Mortes por Covid evitáveis asfixiam profissionais da saúde

Imagem por: Kevin Kobsic / Disponível em: Unsplash

A falta de oxigênio, leitos e materiais hospitalares durante a segunda onda de Covid-19, tem asfixiado não apenas pacientes, mas também os profissionais de saúde na linha de frente do combate à doença. Segundo Elaine Gomes dos Reis Alves, pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte (LEM) do Instituto de Psicologia da USP, “os profissionais [de saúde] que assistem esse cenário vão ficando com falta de ar e crise de ansiedade”.

Nos hospitais, a morte de pacientes é recebida como um fracasso pessoal pela equipe de saúde, sentimento que se agrava pela mistanásia, ou seja, a morte miserável, precoce e evitável. A impossibilidade de salvar alguém logo se torna o “eu deixei morrer”. “Você assistir o outro que não precisava morrer e que está morrendo ali do seu lado é enlouquecedor”, diz Elaine. A pesquisadora explica que quanto maior a sensação de impotência e a vivência de situações consideradas injustas e desnecessárias, maior o risco de adoecimento mental. 

Para os profissionais de saúde, cada leito é uma nova história e à medida em que eles vão trocando de leito, trocam de história e, também, de sofrimento. Tudo isso é internalizado pelos profissionais, que vão sendo marcados. 

Muitos deles mantêm distância de seus pacientes, a fim de se assegurar que “a história do outro não me pertence”. Apesar desses esforços, Elaine já ouviu muitos relatos de identificação do profissional de saúde com o doente: “eles nos procuravam para dizer ‘agora eu vi uma criança doente que tem a idade do meu filho, nome do meu filho, parece com meu filho’”. 

Essa identificação coloca o profissional da saúde diante de não apenas a sua finitude, mas o que é pior, a finitude daqueles que amam. E, na atual crise de saúde, manter a distância da história do outro se torna ainda mais complicado, uma vez que eles se tornam vetores do Sars-Cov-2 e podem contaminar familiares e amigos. 

Nas situações em que, de fato, ocorre o pior dos casos, a morte de um ente querido, mais uma vez, vem a culpa. Para evitar tais tragédias, muitos profissionais de saúde se isolaram de suas famílias durante a pandemia, alugando moradias temporariamente ou evitando beijos e abraços de filhos e companheiros. 

Com isso, eles perdem um dos maiores protetores da saúde mental, a família. “A família organiza e acolhe, estar junto com a família faz com que você se reenergize, se sinta bem”, comenta Elaine.

Adoecimento e tratamento mental

Nesse novo cenário, os profissionais de saúde têm mais chance de desenvolverem ansiedade, depressão, transtorno pós-traumático, ataques de pânico, podendo chegar até a suicídio. Mesmo antes do Coronavírus, a classe já apresentava taxas de suicídio bastante altas. 

Uma pesquisa de 2018 realizada no hospital Harlem Hospital Center, na cidade de Nova York, revelou que o suicídio entre profissionais de saúde varia de 28 a 40 a cada 100 mil habitantes. Isso representa mais que o dobro da população geral, que é de 12,3 a cada 100 mil habitantes. 

Além das saudades da família, os profissionais de saúde precisam lidar com cargas de trabalho ainda mais altas agora. Isso dentro de uma cultura laboral, em que o sofrimento psíquico é visto como fraqueza e há tabus em torno da procura por ajuda profissional para tratar da saúde mental.

Avelino Luiz Rodrigues, professor do Instituto de Psicologia da USP e pesquisador das interações mente e corpo e das somatizações, levou o Projeto Laboratório Sujeito e Corpo (SuCor), do qual é coordenador, ao Hospital Universitário da USP durante a pandemia. O objetivo era fornecer aos profissionais de saúde do hospital atendimento psicológico para a criação de mecanismos que os ajudassem a lidar com as emoções durante a pandemia.

O professor comenta que a conclusão do projeto é de que a pandemia fez com que emergisse com muita intensidade todas as questões mal resolvidas e tensões desses profissionais. “A impressão que nós tivemos é que nesse momento da pandemia é como se a panela tivesse destampada, abriu a panela de pressão”, comentou Avelino.

O projeto pôs à disposição do Hospital Universitário sete profissionais, que atenderam dez pessoas. Para Avelino, a procura pelo atendimento foi muito baixa em relação à quantidade de profissionais que, em conversas informais, relataram o quanto precisam de suporte psicológico. Porém, entre conversas informais e a procura sistematizada por ajuda há uma grande distância. “É um passo que eles têm que dar perante eles mesmos e perante a comunidade a que pertencem”, declarou. 

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