Motivos históricos diferenciam manifestações no Haiti

Reivindicações populares vão além do atual momento de crise na América Latina

Milhares de manifestantes pedem a renúncia do atual presidente – Foto: Andres Martinez Casares / Reuters

Desde setembro as ruas do Haiti estão inundadas por pessoas protestando contra o governo do presidente Jovenel Moïse. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), as manifestações já deixaram ao menos 86 pessoas feridas, e 42 mortes foram registradas. Este novo capítulo de reivindicações no país caribenho “se relaciona com uma história profunda de luta, resistência e movimentos populares – para além da atual conjuntura de crise latino-americana”, disse o professor Everaldo de Oliveira Andrade, da Faculdade de Filosofia, Letras, e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que lançou recentemente o livro “Haiti: dois séculos de história”.

Reparação histórica

Andrade comenta que a independência do Haiti marcou profundamente a história da América Latina. O processo revolucionário haitiano se deu através da libertação dos escravos, em um “movimento único, histórico e original”. A agitação promovida no país foi tão grande que despertou um temor nos proprietários de escravos brasileiros. “O medo era de que esse movimento se estendesse para cá e os negros escravizados passassem a reivindicar sua liberdade”, comenta.

Além disso, o Haiti protagonizou movimentos culturais entre os séculos 19 e 20 que reforçavam os ideais da independência. Por exemplo, no século 19, o Haiti e a Etiópia eram as duas únicas nações com independência obtida por povos negros. O professor explica que ambos protagonizaram o movimento do “Panafricanismo” – “que é a valorização da África como continente em contraponto ao colonialismo e às teorias racistas europeias”.

Um dos países auxiliados pelo Haiti em seu processo de independência foi a Venezuela. O ex-presidente venezuelano Hugo Chávez estabeleceu um acordo de venda de petróleo subsidiado para o Haiti. De certa forma, era uma “reparação histórica” pelo que o Haiti havia feito no passado em apoio aos processos de independência.

“O subsídio foi interrompido com a crise da Venezuela. A falta de combustíveis ajuda no colapso de diversos serviços no Haiti, e é uma das motivações das atuais mobilizações”. Os atos ainda foram impulsionados pela notícia de que o presidente Moïse foi acusado pelo Tribunal Superior de Contas de comandar um esquema de corrupção onde essa verba destinada ao petróleo era desviada. 

“É uma tentativa de resgatar a democracia”

Embora os protestos tenham o objetivo imediato de renúncia do presidente, existem outras motivações em jogo. Nas ruas, os manifestantes ressaltam a necessidade de se estancar a desvalorização do “gourde” (moeda nacional haitiana), melhorar a qualidade de vida e retomar o poder de compra da população. “É uma tentativa de resgatar a democracia no Haiti”, diz Andrade.

Para o professor, a ocupação dos Estados Unidos e da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o Haiti em “missão de paz e justiça” gerou uma influência que deslegitima o sistema político perante a população. Iniciada em 2004 e encerrada há poucas semanas, “foi um período de tutela sobre a vida econômica e política do Haiti” – que também está na raiz das manifestações.

“A missão de paz teve um sentido muito mais repressor, e de controle político-militar, do que esforço de reconstrução e apoio para o desenvolvimento econômico do Haiti”. Na visão do professor, a atuação estrangeira em território haitiano se portava como a “imposição de um estatuto neo-colonial”, e a resistência a esse estatuto está na base dos movimentos populares que vemos hoje.

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