Imposto seletivo pode ser uma medida positiva para a saúde dos brasileiros, mas valor arrecadado precisa ser bem empregado

Especialistas explicam como projeto previsto na reforma tributária pode mitigar consumo de mercadorias nocivas e para quais áreas deve ser direcionado o tributo

A reforma tributária pretende diminuir o número de impostos sobre bens e serviços [Imagem: Pixabay/ Reprodução]

Por Alex Amaral, Diego Coppio, Felipe Bueno, Guilherme Ribeiro e Júlio Silva

A reforma tributária está perto de se concretizar. Atualmente em análise pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado, o Projeto de Lei Complementar (PLP) 68/2024, que regulamenta a tributação prevista na Emenda Constitucional 132, espera a aprovação da Casa para ser enviado para sanção presidencial. Segundo o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, é esperado que o texto seja aprovado ainda neste ano. 

O atual sistema brasileiro de tributos indiretos — os quais incidem sobre produtos e serviços — é um dos mais complexos do mundo atualmente.  Essa esquematização abre espaço para diferentes possibilidades de interpretação, o que pode provocar falta de transparência na quantia paga pelo consumidor e favorecer a contestação jurídica dessas normas, também conhecida como litígio.

Segundo o professor Pedro Forquesato, do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP, a alteração proposta na reforma prevê a substituição de cinco impostos em dois que irão atuar juntos. Os tributos federais PIS, Cofins e IPI serão substituídos pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), enquanto o ICMS e o ISS, em âmbito estadual e municipal, respectivamente, serão substituídos pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Forquesato explica que a mudança prevê também uma nova alíquota de 26,5% cobrada no final da cadeia produtiva. O imposto aplicado atualmente, com uma tributação que ocorre na origem, conta com incidência de impostos cumulativos ao longo da cadeia que não são recuperados posteriormente, fator que traz maior onerosidade para o produto final e potencial redução do Produto Interno Bruto (PIB).

Imposto Seletivo

Além do CBS e IBS, está prevista a criação de um terceiro tributo, o Imposto Seletivo (IS), que atuará em âmbito federal e incidirá sobre produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, como cigarros, bebidas alcoólicas e bebidas açucaradas. Conforme o docente, a principal valência dessa tributação não está apenas na arrecadação de recursos para o governo, mas na solução de externalidades e internalidades negativas. 

De acordo com o especialista, as internalidades baseiam-se na ideia de que, muitas vezes, as pessoas tomam decisões sem pensar no seu melhor interesse, optando por consumir produtos viciantes e que prejudicam a própria saúde. As externalidades, em contrapartida, explicam a maneira pela qual o consumo de um bem afeta não só a pessoa que está consumindo, mas também outras pessoas no seu entorno.

“Temos, por exemplo, os casos de fumantes passivos que, mesmo não consumindo diretamente o cigarro, são afetados por quem, de fato, fuma. E o cigarro causa também as chamadas externalidades fiscais, porque gera uma série de doenças graves nos fumantes. Então essas pessoas precisam ir para os hospitais públicos, sobrecarregando o SUS, por exemplo”, analisa o docente.

Conforme Forquesato, esse tipo de tributação sobre produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente vem sendo discutido ao redor do mundo desde o começo do século 20. Ele explica que, atualmente, Estados Unidos, França, Reino Unido, Portugal, Índia e diversos outros países já se utilizam desse modelo fiscal com o intuito de solucionar suas respectivas externalidades.

Cigarro e bebidas alcoólicas são alguns dos itens incluídos na lista de produtos que serão incididos pelo imposto seletivo [Imagem: Pixabay/ Reprodução]

Saúde da população

Conforme Fernando Aith, professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) e diretor geral do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário (Cepedisa), ambos da USP, o aumento da tributação sobre produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente pode gerar benefícios significativos para a população brasileira. Entretanto, ele ressalta a necessidade de um acompanhamento rigoroso das autoridades fiscais e sanitárias para evitar consequências adversas.

Segundo o dossiê “Panorama dos acidentes de trânsito por uso de álcool no Brasil”, elaborado pela ONG Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), o Brasil registrou, em 2021, quase 11 mil mortes e 76 mil hospitalizações em acidentes de trânsito causados por álcool. Para Aith, além de diminuir as doenças nos próprios usuários de substâncias nocivas como o cigarro e o álcool, a aplicação dessa tributação é capaz de atenuar os danos às famílias a partir da redução dos acidentes e dos casos de violência doméstica, que podem ser agravados pelo consumo da bebida.

No âmbito da alimentação, o especialista destaca que o imposto seletivo pode modificar os hábitos alimentares das pessoas ao tornar mais caros produtos com alto teor de açúcar, sal e gordura, comuns em alimentos ultraprocessados. Com o encarecimento desse tipo de  comida, espera-se que os alimentos orgânicos e naturais tornem-se mais competitivos no mercado, beneficiando a população em termos de qualidade alimentar.

Monitoramento

No entanto, o especialista alerta para a necessidade de vigilância constante para evitar efeitos adversos da implementação do imposto e ressalta que o aumento no custo pode acabar gerando o crescimento do mercado paralelo, como o contrabando. Ele explica que o comércio de mercadorias falsificadas pode surgir como uma resposta ao aumento dos preços e prejudicar ainda mais a saúde das pessoas, já que se utiliza de substâncias de baixa qualidade na composição das mercadorias.

Com relação à fiscalização, Aith acredita que o governo federal deve estar preparado para agir em conjunto com diferentes órgãos de controle, como o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e a Vigilância Sanitária, para garantir que a implementação do imposto seja eficaz e que os produtos nocivos à saúde não sejam comercializados de maneira irregular. A fiscalização da venda dessas mercadorias, tanto no varejo quanto no atacado, será fundamental para evitar o crescimento do mercado ilegal e garantir que a medida traga os resultados esperados.

O professor também destaca a importância de se monitorar constantemente os efeitos do imposto sobre os preços e sobre os hábitos de consumo. Para isso, é necessário realizar pesquisas para avaliar se a medida está, de fato, conseguindo reduzir o consumo dessas mercadorias. “É fundamental fazer um trabalho conjunto de monitoramento e fiscalização para evitar que o comércio ilegal gere soluções ainda mais nocivas à saúde das pessoas. Essa prática é importante, ainda mais no Brasil, onde há dificuldades de fiscalizar todas as fronteiras”, avalia.

Bebidas açucaradas

Uma das novidades propostas na reforma é a inclusão de bebidas açucaradas na lista de produtos incididos pelo imposto seletivo. De acordo com a nutricionista Gabriela Rigote, mestra em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, esses produtos contêm adição de açúcar, seja de origem natural ou processada, em sua composição. Entre os líquidos incluídos nessa categoria, estão os refrigerantes, sucos industrializados, energéticos, chás adoçados e até mesmo algumas bebidas fit que, apesar de promoverem uma imagem saudável, muitas vezes contêm altos níveis de açúcar em sua composição.

O consumidor não tem controle sobre a quantidade de açúcar ingerido nas bebidas açucaradas [Imagem: Pixabay/ Reprodução]
Os principais problemas associados ao consumo dessas bebidas, segundo Gabriela, estão relacionados ao ganho de peso, que pode levar à obesidade e, consequentemente, a doenças crônicas, como diabetes e problemas cardiovasculares. Além disso, a ingestão de açúcar em excesso também contribui para problemas dentários, como cáries, especialmente em crianças.

Para a especialista, o problema principal é a falta de controle sobre a quantidade de açúcar que elas contêm. “Esses produtos já vêm adoçados, e o consumidor não tem autonomia para controlar o quanto de açúcar está ingerindo. Como alternativa a isso, é possível misturar frutas com sabores mais suaves, como o limão, com frutas mais doces, como o melão, ou até combinar as frutas com chás, como o capim-santo, que já tem um sabor naturalmente adocicado”, sugere a nutricionista.

Imposto nas bebidas 

Em relação à medida do imposto seletivo sobre bebidas açucaradas, Gabriela considera a ideia como uma forma eficaz de reduzir o consumo desses produtos. Ela recorda que esse tipo de taxação já foi adotado em outros países com resultados positivos, com a redução do consumo de refrigerantes e sucos industrializados. Tornar essas mercadorias mais caras, segundo ela, auxilia as pessoas a repensar suas escolhas na hora de adquirir algo para beber.

Entretanto, a nutricionista também destaca que o imposto seletivo não é a única medida necessária para combater o consumo excessivo de açúcar entre a população. Ela cita a importância da rotulagem nutricional, especialmente a rotulagem frontal, que indica em uma etiqueta na frente das embalagens quais substâncias estão presentes em excesso nas mercadorias, como gorduras saturadas, açúcar e sódio, de modo que todos os consumidores tomem conhecimento da qualidade nutricional do que estão adquirindo.

Além disso, a especialista defende que as políticas públicas governamentais devem incluir programas de educação alimentar e nutricional, especialmente em escolas e comunidades, para aumentar a conscientização sobre os riscos do consumo excessivo de açúcar. Ela também destaca a importância da fiscalização dos órgãos competentes para que as empresas e distribuidoras apresentem informações verídicas nas embalagens, bem como a regulação da publicidade desses alimentos que é veiculada ao público infanto-juvenil.

Alimentos ultraprocessados

Segundo Gabriela Rigote, a aplicação do imposto seletivo deveria ter sido ampliada para outros alimentos ultraprocessados que, segundo ela, também causam doenças crônicas derivadas das altas quantidades de sódio, açúcar e gordura saturada presentes. Entre as mercadorias que se encaixam nessa categoria, ela destaca os biscoitos recheados, os salgadinhos e o macarrão instantâneo.

O imposto seletivo pode auxiliar a população na redução de consumo dos alimentos ultraprocessados [Imagem: Pixabay/ Reprodução]
“Quando a discussão desse tributo começou, houve manifestos e iniciativas assinadas por profissionais da saúde e da nutrição pedindo a inclusão dos ultraprocessados no imposto seletivo. As associações brasileiras de nutrição, de saúde coletiva e o IDEC (Instituto de Defesa de Consumidores) apoiaram a causa, mas o governo acabou excluindo esses alimentos do imposto seletivo, apesar das evidências científicas dos malefícios para a saúde”, declara.

Para a nutricionista, o novo imposto pode estimular a indústria alimentícia a produzir novas alternativas de alimentos sustentáveis, uma vez que os ultraprocessados serão menos consumidos. No entanto, ela ressalta que o destino dos recursos arrecadados pela tributação é crucial para a eficácia do imposto seletivo e, para que a medida traga benefícios reais à saúde pública, o tributo deve ser investido em políticas públicas que promovam a saúde da população, como programas de alimentação saudável, de incentivo à prática de atividades físicas e à melhoria do sistema de saúde.

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