Pesquisa inédita traz à luz o Teatro do Sentenciado, movimento artístico encabeçado por Abdias Nascimento

Experiência de teatro carcerário no Carandiru (1943-1944) precedeu a fundação do Teatro Experimental do Negro por Abdias Nascimento, dramaturgo e ativista do movimento negro

Abdias Nascimento foi ator, poeta, escritor, dramaturgo, professor universitário, ativista e deputado e senador federal. [Imagem: Reprodução/Ipeafro]

A tese O Teatro do Sentenciado de Abdias Nascimento, escrita pela professora de teatro Viviane Narvaes, é um estudo inédito sobre este movimento cênico dirigido por presos – entre eles o fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN), Abdias Nascimento – na penitenciária do Carandiru (SP) dos anos 1940. O grupo apresentou seis espetáculos e algumas cenas curtas durante o cárcere de Abdias. 

Viviane começou a atuar com teatro na prisão por meio do Programa de Extensão Cultura na Prisão da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e sentia falta de conhecer o histórico do teatro carcerário brasileiro. Em uma disciplina da professora Maria Sílvia Betti, na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Viviane descobriu o TEN e Abdias Nascimento (1914-2011). 

Ao pesquisar o TEN no Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), Viviane descobriu o Teatro do Sentenciado, mais desconhecido. “Se o teatro produzido pela classe trabalhadora no Brasil está ausente da história, quem dirá o teatro de um setor que é ainda mais invisibilizado”, diz. A pesquisadora passou então a estudar o movimento como objeto de pesquisa. “Em alguns livros que abordam a experiência do Teatro Experimental do Negro, [o TS] sempre é citado como um aspecto da biografia do Abdias. Ninguém tinha olhado para a experiência dessa forma”.

O objetivo do TEN era propagar a inserção do ator negro nos palcos, fora de papéis estereotipados. O movimento também promoveu programas de alfabetização e formação política.

Os espetáculos realizados foram “O dia de Colombo”, “Revista Penitenciária”, “Patrocínio e a República”, “Defensor Perpétuo do Brasil”, “Zé Bacoco” e “O preguiçoso”. As peças foram escritas por outro encarcerado, diante da necessidade que Abdias sentiu de representar a realidade em que se encontravam. 

O surgimento do teatro veio a partir do esforço de modernização das instituições que o Brasil passou no Estado Novo (1937-1945). A penitenciária do Carandiru ganhou um novo diretor, o médico Flamínio Fávero, que buscou humanizar o cárcere por meio da criação de um jornal, da iniciativa teatral, e uma visão mais voltada à recuperação dos presos. 

Para realizar a pesquisa, Viviane fez um  levantamento de fontes a partir de arquivos nacionais e o arquivos estaduais de São Paulo, fontes do Teatro Experimental do Negro, o acervo da família Fávero, entrevistas com duas integrantes do TEN e com Elisa Larkin Nascimento, viúva de Abdias, que disponibilizou seus cadernos e materiais. 

A principal fonte, entretanto, foi Submundo: Cadernos de um Penitenciário, diário que Abdias Nascimento manteve durante o cárcere no Carandiru. A viúva de Abdias, Elisa, que também é diretora do Ipeafro, disponibilizou o original datilografado; o livro permanece inédito, mas há previsão de publicação para 2022. 

Para Viviane, o teatro carcerário pode humanizar  a população prisional no Brasil. “Eles vão ganhando visibilidade e assim sendo vistos como pessoas, porque a expressão da arte é uma característica totalmente humana”, diz. O teatro não era só para presos, mas feito por eles. “Embora [Abdias] tenha sido um preso político, ele está vivendo uma prisão comum, no meio de criminosos célebres daquele período. Ele tem a sagacidade de não se comportar lá como um intelectual que está levando a consciência para esses presos; não, eles estão produzindo juntos – é uma voz coletiva que se eleva”. 

O Teatro do Sentenciado inovou tanto em forma quanto em conteúdo. Na peça “Revista Penitenciária”, os atores personificam partes da prisão como o refeitório e a sapataria. Além disso, “há uma forte utilização de música, leitura de poemas, números de mágica e adivinhação que incluem elementos não dramáticos na encenação – tudo isso compõe outros planos de significado, que começam a dialogar com os elementos que vão constituir, no teatro convencional, a modernização do teatro brasileiro”, explica Viviane. 

Mesmo com os esforços de humanização no Carandiru, os encarcerados ainda eram chamados pelo número. “A prisão é uma morte em vida, onde você não tem direito nem ao seu próprio nome”, opina Viviane.

Em “Patrocínio e a República”, Abdias protagoniza José do Patrocínio. “No meio dessa estrutura altamente hierarquizada, ele vai resgatar um herói preto e colocá-lo como protagonista. Isso é um espaço de crítica. Ele poderia pegar qualquer outro [herói]. mas é o Abdias que está lá. E ele vai ver a realidade sócio-histórica de quem é o público, de quem são esses homens”, diz Viviane.

A publicação do livro Submundo e a divulgação das experiências de Abdias em cárcere podem trazer à tona a discussão do sistema prisional brasileiro. Em 2022, completar-se-ão 30 anos do Massacre do Carandiru. “Há, no momento, a questão do superencarceramento no Brasil. Somos agora o terceiro país que mais encarcera no mundo e, cada vez mais, você vê esse debate do encarceramento ganhando corpo na sociedade”, afirma a pesquisadora.

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