Cerca de um em cada três membros da indústria cultural brasileira recorreu ao auxílio emergencial federal para garantir a subsistência durante a pandemia. O dado é reflexo da precarização e desigualdade que marcam o setor, reafirmadas durante a pandemia, e foi revelado pela pesquisa “Percepção dos impactos da Covid-19”, produzida pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em parceria com a FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas).
“Há predomínio de grupos com rendimentos modestos, com número não desprezível com ganhos médios, altos e até bem altos. Reflete a disparidade de renda no Brasil, revelada também na cultura”, explicou Marcelo Ridenti, sociólogo e professor da Unicamp, no encerramento do seminário virtual “Debates sobre Cultura e Impactos da Covid-19” realizado entre 16 e 18 de dezembro de 2020 e organizado pelo Núcleo de Sociologia da Cultura da FFLCH, em parceria com o Sesc (Serviço Social do Comércio) e a Unesco, para debater os resultados da pesquisa com especialistas da área.
O levantamento foi realizado entre junho e setembro de 2020 com cerca de 2600 respondentes e dividiu os agentes culturais do país em individuais (como autônomos, empregados CLT e servidores públicos) e coletivos (como pessoas jurídicas, empresas, associações e fundações). No primeiro grupo, predominam os criadores (36,4%) de cultura, como artistas; no segundo, entidades que atuam na produção cultural (43,8%).
Aproximadamente um terço dos membros do setor (26,5% e 28% dos coletivos e indivíduos, respectivamente), teve que recorrer ao auxílio emergencial entre maio e julho para garantir a subsistência durante a crise, bem como a outras estratégias de liquidez como doações (recebidas por cerca de 7%), editais em apoio ao setor (16%), além de empréstimos bancários, renegociação de dívidas e seguro-desemprego.
O perfil dos entrevistados reflete a informalidade e baixos rendimentos que compõem a realidade da maioria dos trabalhadores da cultura no país: 42,8% das organizações coletivas ouvidas são formadas por microempreendedores individuais e informaram rendimentos entre R$1 mil e R$6,9 mil (cerca de 51,8%). A prestação de serviços, em sua maioria interrompidas durante a crise sanitária, é a principal fonte de receita de 55,8% dos entrevistados, seguida por editais de fomento à cultura (15,3%) e receita da venda de produtos (12,9%).
Entre os produtores individuais, por sua vez, também predomina a informalidade (55,12%) e os rendimentos são ainda mais baixos: entre 1 a 3 salários mínimos para 45,5% destes e de até 1 salário mínimo para 20,06%. Cerca de 9% declararam-se sem renda.
A desigualdade de renda no setor é latente: cerca de 90% das entidades de cultura no Brasil têm faturamento mensal inferior a R$30 mil e mais de 92% dos profissionais individuais ganham no máximo 7 salários mínimos (cerca de R$7.300 mensais). Por outro lado, apenas 10,6% das organizações coletivas de cultura concentram os faturamentos mais altos declarados, que variam entre R$30 mil e R$120 mil mensais. Os produtores individuais mais bem remunerados, por sua vez, ganham acima de 7 salários mínimos e representam apenas 7,6% do grupo total.
A pesquisa mostra que a configuração desigual do setor manteve-se na pandemia: de um lado, um pequeno número de agentes institucionalizados, com grandes rendimentos — que conseguiram, por exemplo, viabilizar durante o isolamento as populares lives musicais, com apoio de grandes patrocinadores; de outro, centenas de criadores e produtores culturais dependentes de políticas governamentais inconstantes e incertas, o que os deixou à mercê das circunstâncias adversas.
O resultado, segundo a socióloga e professora da FFLCH Maria Arminda do Nascimento Arruda, é a persistente desigualdade entre produtores e setores diversos, acirrando disputas internas ao setor e incitando conflitos generalizados,que enfraquecem ainda mais a área e revelam a existência de hierarquias que se reproduzem.
— A área tem se movido em meio a uma tempestade, em que os agentes são impelidos a um jogo de alto risco, tanto interno à ela, dada sua diversidade e os interesses e conflitos que a caracterizam, quanto externo, dadas as políticas erráticas para o setor. — disse Arruda no evento de encerramento.
A falta de políticas e investimentos na área é velha conhecida dos trabalhadores do setor: dados do Sistema de Informações e Indicadores Culturais do IBGE divulgados em dezembro de 2019, antes da pandemia, mostraram que os gastos do setor público com cultura caíram de 0,28% em 2011 para 0,21% em 2018, e o valor era expressivamente menor que a proporção destinada no orçamento à educação (8,6%) e saúde (cerca de 8,5%).
E, se trabalhadores formais e institucionalizados — como profissionais do audiovisual e das exposições de arte que fazem sucesso com a audiência — foram menos afetados pela crise, mesmo eles enfrentam hoje grandes dificuldades para continuar existindo, alerta Arruda.
A pesquisa mostra ainda que o setor é composto por profissionais com alta escolaridade, com superior completo ou pós-graduação (54,6%), e maduros, entre 30 e 49 anos (61%). É também predominantemente feminino (53,2% dos respondentes) e branco (63,4%), com sub-representação de pardos (24,5%), pretos (9,69%), amarelos (1,5%) e indígenas (0,83%), em relação a proporção destes grupos na sociedade brasileira. A desigualdade racial, portanto, também reflete-se no setor.
O levantamento foi organizado pelos pesquisadores André Luis Gomes Lira, Pedro Affonso Ivo Franco e Rodrigo Correia do Amaral e teve apoio do Fórum de Secretários da Cultura, o que permitiu capilaridade na aplicação do questionário por todo o país.
Os estados com mais respondentes foram Bahia, São Paulo e Amazonas. A maior parte dos respondentes atua no setor das artes da cena (27,6%) — com destaque para o teatro (19,7%) — , da música (18%) e das artes visuais e artesanais (13,8%), com predomínio do subsetor de filmes, vídeos e demais obras cinematográficas (11,7%).
Faça um comentário