Ensino público padece com a pandemia

Na cidade de São Paulo, professores da educação básica tiveram que improvisar para que as aulas continuassem; perdas na aprendizagem, contudo, são grandes

Arte: Iasmin Rodrigues

Por David Willian Ferrari, Emylly de Oliveira Alves, Guilherme Pimentel Pereira Bolzan, Iasmin Rodrigues e Rafael Sampaio Berto

Com o fechamento das escolas, alunos, professores e pais tiveram que lidar com uma nova realidade no ensino. Para aqueles que dependem das escolas públicas e para os profissionais que nelas trabalham as dificuldades foram maiores. Muitas crianças e jovens não conseguiram acompanhar as aulas por não possuírem equipamentos adequados ou por falta de internet. Professores, também, tiveram embaraços no manejo de tecnologias; consequência da falta de uma política de treinamento periódica. Se há muito a lamentar; merece destaque, por outro lado, a revalorização dos docentes pelos pais. Consequência dos apuros em auxiliar seus filhos na aprendizagem doméstica.

Essa reportagem busca retratar um pouco da trajetória do ensino público no ano de 2020 na cidade de São Paulo.

Prefeitura de São Paulo aposta no aplicativo Google Classroom

Nas escolas administradas pela prefeitura de São Paulo, houve duas recomendações principais: o uso da plataforma Google Classroom e a criação de uma página no Facebook para cada escola para fins de comunicação. Pela plataforma, os professores disponibilizaram as atividades, quase todas baseadas no conteúdo de livros didáticos fornecidos pela prefeitura em meados de 2020. 

Professora da rede municipal e estadual de ensino, Carla Fábia da Silva relata a dinâmica das aulas para os alunos da prefeitura de São Paulo. “Todas as escolas da prefeitura foram orientadas a criar uma conta no Facebook e salas no Classroom. Foi criada uma conta de e-mail para cada aluno. Com essa conta, ele pode acessar o Classroom.”

Os desafios de adaptação foram grandes, intensificados pela imediaticidade. Especialista em ensino da Faculdade de Educação da USP, o professor Ocimar Avelarse esclarece: “Como encaixar esses conteúdos trabalhados presencialmente? Usando um livro no computador? Houve muita improvisação. Muitos professores nunca haviam utilizado esses recursos. Esse passado pesa, era feito de uma certa maneira e, de repente, tudo teve que mudar.”

Colocar atividades na plataforma não foi o suficiente, alguns professores tiveram a iniciativa de fazer mais. Na escola que a professora Carla leciona, o corpo docente resolveu gravar e disponibilizar vídeos, “tínhamos liberdade de tirar vídeos ou materiais da internet mas achamos melhor fazer para que as crianças nos vissem”. Carla diz que era importante manter “o contato”; ressalta, também, que “não foi algo orientado ou pedido”.

Centro de Mídias de Educação de São Paulo (CMSP)

Se a prefeitura de São Paulo apostou no aplicativo Classroom, o governo do estado centrou seus esforços no Centro de Mídias da Educação de São Paulo (CMSP). 

O CMSP funciona como uma interface entre os conteúdos educacionais produzidos pelos especialistas da Secretaria de Educação de São Paulo e os estudantes. As aulas, gravadas ou ao vivo, são transmitidas por meio de três plataformas: um aplicativo do CMSP, a TV Educação e a TV UNIVESP. A docente Carla explica: “Essencialmente, as aulas são ministradas no CMSP. Todo dia, cada série (ano) tem uma hora e meia de aula. São três disciplinas com meia hora de duração cada uma. Cada série (ano) tem três aulas disponíveis por dia. Do 1º ano do fundamental até o 3º ano do ensino médio.”

As aulas também ficam disponíveis, após transmissão, em um repositório no site do CMSP bem como em seu canal do YouTube. Acessar o aplicativo do CMSP não demanda gastos de dados de internet; exige, entretanto, um aparelho com acesso à rede.

Não há controle sobre o efetivo acesso dos estudantes do estado em relação aos conteúdos disponibilizados no CMSP. A aferição apenas seria possível pelas visualizações feitas por meio do aplicativo; não basta, já que as aulas podem ser assistidas por canais de televisão. Professores ouvidos para essa matéria relatam que o acesso às aulas e a realização de atividades é baixo. Professora do ensino médio da rede estadual de ensino, Wanessa Rocha Alves, diz que “muitos alunos não fazem as atividades, a grande maioria”. A professora Carla complementa, “conversando com meus alunos percebo que eles não acessam o CMSP”. Wanessa opina sobre o Centro de Mídias: “Particularmente, não gosto. Acho que eles subentendem que os alunos têm uma bagagem. Eles consideram que os estudantes possuem os pré-requisitos para entender os conteúdos que são transmitidos na aula. Não funciona. Falta o contato com o público para aferir se aquele conteúdo transmitido está sendo capturado. Por exemplo, quando explico um conteúdo da minha área (Química) e essa tarefa exige o conhecimento de regra de três, tenho que saber se meus alunos dominam esse conhecimento. Caso não dominem, tenho que rever esse conhecimento antes de transmitir o meu conteúdo de Química.”

Diante da falta de treinamento, professores improvisam

O novo momento exigiu adaptação dos professores. A suspensão das aulas presenciais exigiu novos métodos de ensino e o domínio de novas tecnologias. Tarefa difícil em razão da rapidez da transição e da ausência de treinamento fornecido pelo poder público.  Muitos professores não tinham conhecimentos básicos de informática. Ocimar Avelarse explica as dificuldades: “Temos conteúdos que há cem anos foram sendo organizados para serem transmitidos presencialmente com o professor usando uma lousa, às vezes abusando dela. Ao migrar para a transmissão pelo computador apareceram os problemas de ordem metodológica. Como que eu organizo determinado conteúdo para apresentar para alguém que eu não vejo?”

Diante de tamanhas dificuldades, desprovidos de apoio, merece destaque o esforço individual de professores da rede pública no desenvolvimento de ações para reduzir os enormes prejuízos dos estudantes. A professora Wanessa Rocha Alves formou grupos no whatsapp com seus alunos do ensino médio na tentativa de manter contato e incentivá-los a não desistir. Ela conta que usa o whatsapp para “mandar exercícios e conversar” não apenas sobre coisas da escola.

“Digo a eles que podem entrar em contato comigo a qualquer hora, já conversei com alunos de madrugada pelo WhatsApp.”

Wanessa Rocha Alves, professora da rede estadual de ensino de São Paulo.

A docente Carla Fábia, mesmo sem nenhuma experiência prévia, criou um canal no YouTube nos qual disponibiliza vídeos com explicações para seus alunos. “Eu, por conta própria, resolvi gravar vídeos. Percebi que apostar tudo no Centro de Mídias de São Paulo não funcionava. Resolvi pegar o material didático do estado com conteúdo de Português e Matemática e fiz os vídeos. Fiz um canal no YouTube. Comprei programas e equipamentos com meus próprios recursos para gravar e editar os vídeos. Elogiam minha suposta habilidade em falar mas não existe facilidade, existe necessidade. No começo foi difícil. Aprendi pela repetição e assistindo muitos tutoriais mas reconheço que as limitações de cada professor são distintas.”

O problema da exclusão digital

A desigualdade do acesso à internet e a equipamentos adequados para acompanhar as aulas reflete a desigualdade social do país. Ao não garantir, em primeiro lugar, a inclusão digital; qualquer tentativa de ensino remoto será precária e ineficiente. Veja no gráfico abaixo algumas estatísticas sobre a acessibilidade digital no país.

Arte: Iasmin Rodrigues

De acordo com pesquisa do Datafolha, cerca de 41% dos alunos matriculados em escolas públicas brasileiras não possuem internet banda larga em suas casas, forçando-os a deixar de acompanhar ou acompanhar de forma precária as aulas, por conta da internet lenta e de curta duração. Para muitas famílias, o acesso à internet depende de chips pré-pagos, que se esgotam rapidamente e colocam ainda mais pressão no orçamento familiar.

A pesquisa mostra que 42% dos estudantes de escolas públicas possuem computadores ou notebooks, enquanto 96% possuem celulares em suas casas. Assim, o celular é o único meio que milhões de alunos dispõem para realizar as atividades escolares. Os celulares, entretanto, nem sempre estão disponíveis aos estudantes. De acordo com a professora Carla Fábia:  “O celular pertence aos pais; as crianças só podem usá-lo quando eles estão em casa e o aparelho está ocioso”. Carla completa. “Minhas aulas ao vivo são de dia, e os pais só chegam de noite.”

“Acho que a prefeitura deveria disponibilizar celular para as crianças que não tem ou alguma outra forma para elas poderem ver as aulas. Ia facilitar bastante porque cada criança teria seu aparelho para fazer as atividades não precisaria pegar o celular dos pais.”

Maria Eduarda, 11 anos, aluna da rede municipal de ensino de São Paulo.

Sem poder acompanhar as aulas síncronas, a comunicação fica prejudicada. Tirar dúvidas, por exemplo, se torna quase impossível, levando os alunos a ficarem progressivamente mais confusos. Aluna do 5º ano da rede municipal de ensino, Maria Eduarda (11 anos) relata suas dificuldades: “Nas aulas presenciais a professora passava a matéria e a gente terminava no mesmo dia, nas aulas remotas ela deixa as lições lá. Acontece que a gente não consegue fazer e vai deixando pra outro dia. Só que no outro dia vem mais lições, então vai acumulando e a gente vai perdendo a esperança de conseguir fazer tudo.”

Estudantes aprenderam menos com o ensino remoto

Mesmo entre aqueles que possuem aparelhos e internet adequados, houve queda de aproveitamento. A ausência de um ambiente adequado para os estudos nas residências prejudica os alunos. Sem o tempo exclusivo da escola, o momento doméstico e de aprendizado se misturaram, tornando necessário conciliar os estudos com a dinâmica da casa. 

Para o pesquisador da Faculdade de Educação da USP, Ocimar Avelarse, o ensino remoto reforça a desigualdade de aprendizados. “As novas condições criadas pela pandemia geraram um ensino diferenciado em função do nível socioeconômico dos alunos e das famílias em que eles vivem”. Ocimar conclui. “A pandemia não criou essa desigualdade, ela atualizou e atualizou intensificando.”

Nas aulas presenciais os alunos possuíam estrutura (ainda que precária) de alimentação, prática de esportes e locais específicos para estudo, atenuando um pouco das disparidades que se revelam no regime remoto. O sentimento de fracasso é reconhecido pelos estudantes, conforme pesquisa do Datafolha, apenas 50% consideram que evoluíram no aprendizado. “Eu gosto muito de matemática, mas acho que poderia ter aprendido mais”, relata Maria Eduarda.

Arte: Iasmin Rodrigues

A falta de convivência e de socialização durante as atividades remotas também impacta na aprendizagem. Segundo o professor Ocimar, esta é uma parte importante da rotina escolar. “Sem o ambiente escolar, as crianças deixam de aprender umas com as outras e com as dificuldades da classe”. Sem essa convivência, os alunos reportam se sentir mais solitários e entediados, distraindo-se com os próprios aparelhos nos quais têm aula. Maria Eduarda, aluna do 5º ano, confessa que “ é chato ficar em casa porque não tem muita coisa para fazer e acaba que fico muito tempo no celular”. 

Educação especial

As dificuldades de concentração e no uso dos aparelhos são ampliadas ainda mais no caso da educação especial. Juelí Nascimento é mãe de Miguel, de 9 anos, aluno com autismo que está no 4º ano em uma escola da rede estadual de ensino de São Paulo. “Meu filho não aceita a aula pelo computador”, diz ela, que completa. “Não funciona, ele só fica olhando, sem falar nada.” 

Carla Fábia, professora de Miguel, tenta incluir o aluno nas suas aulas síncronas mas os esforços não vêm sendo satisfatórios. “Ele se distrai muito fácil”, conta Juelí. “Se um irmão passa perto dele, já se desconcentra”. A professora Carla lamenta a falta de um professor especialista para auxiliar Miguel. Carla conta: “Na escola tem uma sala de recursos destinada aos alunos com necessidades educativas especiais em que fica um professor especialista. Miguel frequentava essa sala dois dias por semana. Era importantíssimo, mas ela foi fechada em razão da pandemia.”

Professores passaram a ser mais valorizados

Entre as muitas dificuldades relatadas até aqui, tornam-se claras algumas tendências gerais do ensino durante a pandemia. A participação dos pais tornou-se tão importante quanto a dos professores no processo de ensino. Como destaca a professora Carla Fábia, “educação infantil e fundamental precisam de mediação” porque “o trabalho é feito em parceria”. Nessas condições, “não é possível simplesmente mandar a criança assistir aos vídeos e fazer as tarefas, os pais são indispensáveis para o sucesso do ensino remoto.”

É nesse momento de falta, talvez, que a importância do professor fica cada vez mais evidente. “Do que eu sinto mais falta é o contato com os colegas e a professora”, afirma Maria Eduarda. Mesmo com as inovações tecnológicas, plataformas virtuais e todo tipo de material didático, o trabalho de educar continua ocorrendo entre o professor e o aluno. Mas, infelizmente, esta visão nem sempre é compartilhada pelos governantes.

A docente Carla Fábia critica as escolhas da Secretaria Estadual de Educação. “Concluíram que os professores não eram necessários. Bastava que os alunos acessassem o Centro de Mídias e fizessem as atividades do livro. O tempo mostrou que essa aposta foi inadequada”. Com o foco centrado cada vez mais em plataformas e sistemas, ignora-se onde realmente ocorre a educação. A exclusão digital, as dificuldades domésticas que dificultam o aprendizado, bem como o tempo escasso disponível pelos pais e seu despreparo para auxiliar seus filhos no ensino; são questões que não podem ser colocadas em segundo plano.

A ausência dos professores provocou o resgate do seu valor pelos pais que tiveram que ocupar parte das suas funções. Falta agora os gestores públicos reconhecerem tal importância. 

Milhões de estudantes do mundo foram afetados pelo fechamento de escolas. Arte: Iasmin Rodrigues

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*