Coronavírus e pandemias na história: o que aprendemos no caminho até aqui

Apesar da evolução em aspectos como tecnologia e medicamentos, humanidade falhou em melhorar sistemas de saúde e cuidados com meio ambiente

Foto: Michel Corvello/ Fotos Públicas

Por Gabriela Caputo, Gabriella Sales, Isabel Teles, Júlia Carvalho, Karina Tarasiuk e Vanessa Evelyn

Pouco mais de um ano após o surgimento da doença, o mundo já se organiza para vacinar a população contra a covid-19. A rapidez com a qual vacinas foram desenvolvidas reflete a intensidade dos estudos e a dedicação dos pesquisadores, mas também evidencia a importância e evolução da ciência. A humanidade já enfrentou uma série de pandemias ao longo da história, que possibilitaram inúmeros aprendizados e avanços estruturais e tecnológicos. Por outro lado, seguimos reféns de certas medidas tradicionais, como a quarentena, e também não demonstramos muita evolução na maneira como interagimos uns com os outros e com o meio ambiente.

Os conceitos de pandemia e epidemia podem muitas vezes ser confundidos e utilizados erroneamente. Segundo a Organização Mundial da Saúde, pandemia é a classificação que uma doença recebe quando se espalha por vários continentes, transmitida de pessoa para pessoa. Já a epidemia trata-se de um surto em uma região mais específica do globo. 

Segundo Gildo Magalhães, professor da FFLCH e diretor do Centro de História da Ciência da USP, essas situações “se caracterizaram por seu aparecimento mais ou menos repentino e sua disseminação de forma muito rápida, causando muitas mortes”, como é o caso do coronavírus.

O histórico das pandemias

Uma das maiores pandemias de que se tem conhecimento é a Peste Bubônica, também nomeada Peste Negra. A doença afetou a Europa e regiões da África e da Ásia no século 14, no período da Idade Média, matando de 75 a 200 milhões de pessoas. A peste é causada pela bactéria Yersinia pestis e sua transmissão ocorre através de pulgas que vivem em animais, como os roedores. Outra forma de contrair a doença é pelo contato com saliva de pessoas infectadas. Apesar dessa pandemia ter acabado há séculos, a Peste Bubônica é uma doença que nunca deixou de existir, ressurgindo em alguns lugares ao longo do tempo.

Outra doença que marcou a humanidade por muitos anos foi a varíola. O vírus Orthopoxvírus variolae ocasionou epidemias e pandemias de tempos em tempos. A transmissão acontecia de pessoa para pessoa, pelas vias respiratórias. A varíola foi erradicada em 1980, devido a uma campanha de vacinação em massa. A estimativa é que tenham ocorrido entre 300 e 500 milhões de mortes em decorrência da doença ao longo do século 20. Além dela, a cólera também foi responsável por pandemias no século 19 e ainda ocorrem surtos da doença. 

A Gripe Espanhola é, dentre as mais recentes, uma das maiores pandemias da humanidade. Inclusive, muitas comparações são feitas entre a pandemia da covid-19 e a que ocorreu cerca de 100 anos antes, pelos sintomas e pela alta velocidade de transmissão. Iniciada em 1918 e causada por um tipo de vírus influenza, a doença atingiu todos os continentes, infectou mais de um quarto da população mundial e matou cerca de 50 milhões de pessoas — no Brasil, foram 35 mil óbitos.

A primeira pandemia do século 21 foi a da Gripe Suína, que aconteceu em 2009, causada pelo vírus H1N1. As semelhanças são marcantes: o contágio ocorre a partir de gotículas respiratórias e os sintomas são os de uma gripe comum. No entanto, a velocidade de disseminação, as perdas — cerca de 18 mil mortes — e as consequências foram mais brandas do que as observadas atualmente.

Outros exemplos são as pandemias da Aids, em curso desde 1980, da Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave), entre 2002 e 2004, e da Ebola, entre 2013 e 2016.

As pandemias, em sua maioria, são causadas por agentes patógenos advindos de animais. Cleide de Lima, professora de história, explicou em entrevista à Revista da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) que a agricultura e a domesticação de animais salvaram a humanidade da fome, mas também nos aproximaram das doenças infecciosas. “Isso porque os agentes patogênicos que eram antes exclusivos dos animais passaram para outras espécies e tornaram-se doenças humanas”, indica a professora, ponderando ainda que nem sempre essas causas foram conhecidas. 

Segundo Gildo Magalhães, como as pessoas não sabiam os motivos que levavam à doença, muitas vezes acabavam atribuindo suas causas a fenômenos extraordinários, como cometas, ou a grupos minoritários, como os judeus. Muitas vezes, interpretavam esses acontecimentos como castigos divinos. Ele cita a Gripe Espanhola para ilustrar: “Foi típico, porque não há evidência de que surgiu na Espanha ou sequer foi trazido por marinheiros espanhóis”. Na realidade, a doença recebeu esse nome por conta da imprensa espanhola que, na época, divulgou diversas notícias a respeito dessa pandemia.

Ainda sobre a proliferação das doenças, Gildo explica que é possível notar que em locais onde as condições sanitárias são mais precárias, a situação se torna ainda mais devastadora. A Peste Negra, por exemplo, chegou à Europa durante uma crise econômica desencadeada principalmente pela prática da usura, ato de cobrar taxas altíssimas de juros em empréstimos. Isso levou ao empobrecimento da população e, consequentemente, a uma piora nas condições sanitárias.

Diferenças entre covid-19 e pandemias anteriores

Comparações entre a situação da covid-19 e pandemias anteriores são feitas a todo momento — afinal, a humanidade sempre olhou para o passado em busca de respostas e, por vezes, de certo consolo. Segundo Gildo, a atual pandemia se difere das anteriores pela rapidez muito maior na disseminação global da doença. Em relação à Gripe Espanhola, a letalidade da covid-19 é bem menor. “A prática do confinamento foi certamente diferente, embora tenha variado conforme o país. Em muitos casos, repetiu-se o padrão de serem mais atingidos os mais pobres e menos assistidos pelo Estado”, acrescenta. 

Quanto às semelhanças, “notamos o medo da população ante o desconhecido e o sentimento de impotência frente às mortes e à inexistência de remédios e vacinas eficazes”, diz o professor. 

O conhecimento sobre pandemias passadas apresenta-se como um importante mecanismo para a humanidade. “A história da medicina e da ciência em geral nos leva a aprender sobre os comportamentos humanos do passado, bem como a eventualidade de que novos conhecimentos foram temporariamente esquecidos antes de poderem se mostrar eficazes para o bem-estar humano”, afirma Gildo. Para ele, a análise desse passado também pode “despertar para a necessidade de se combater a pobreza e desigualdade na sociedade e investir mais em ciência, tecnologia e educação”.

Os sistemas de saúde

Da mesma maneira que a pandemia do coronavírus contribuiu para a evolução de tecnologias relacionadas à saúde – como os testes rápidos, produtos de higienização e tecidos capazes de eliminar o vírus – diversos avanços surgiram por conta de outras epidemias e doenças.

Foi o caso da produção de antibióticos a partir da descoberta da penicilina por Alexander Fleming, em 1928. O achado permitiu o tratamento para infecções que costumavam ser mortais, como sífilis e tuberculose. Já as vacinas foram criadas de maneira experimental por Edward Jenner a partir do contato com o vírus da varíola.

Recentemente, a robótica passou a ser uma aliada de cirurgias de alto risco, com operações minuciosas realizadas por robôs-cirurgiões, que têm a vantagem de serem menos invasivos e mais precisos do que os humanos que as operam. 

Segundo Fernando Aith, professor do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP, apesar de outras evoluções terem sido muito importantes para evitar certas doenças, “os sistemas públicos de saúde são os principais responsáveis pela prevenção e contenção de pandemias.”

Ele afirma que tais sistemas promovem ações de prevenção na área da saúde, dentre os quais destacam-se a vigilância sanitária e os programas de imunização. “Sem sistemas públicos de saúde robustos não há qualquer possibilidade de uma ação coletiva coordenada visando conter epidemias com alto potencial de disseminação”, reforça Aith.

Apesar do desenvolvimento científico adquirido a partir de muitas experiências com doenças epidêmicas, o especialista afirma que a pandemia do coronavírus evidenciou que ainda é preciso avançar. 

“Não me parece que evoluímos muito em áreas estratégicas, como organização de políticas públicas coordenadas, federalismo cooperativo, programa nacional de imunização, estratégia de saúde da família, reforço do sistema de saúde ou ainda inovação industrial em saúde, ao menos no Brasil”, critica.

Ele comenta que o Sistema Único de Saúde, o SUS, tem papel fundamental no preparo do país para cuidar da saúde de sua população. “Deveríamos estar investindo em inovação científica, educação, fortalecimento do SUS e cooperação federativa, mas não estamos. As próximas epidemias pegarão o Brasil tão despreparado ou mais, e muito por conta da omissão voluntária do Poder Executivo Federal, que tem o papel constitucional de coordenação do SUS”, alerta.

Quem reforça o cumprimento desse papel constitucional pelos países, juridicamente, são tribunais internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Durante a pandemia do coronavírus, medidas para assegurar o direito à saúde têm ganhado destaque. 

Segundo editorial de boletim publicado em novembro de 2020, que integra pesquisa coordenada por Aith no Centro de Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA), o SUS funciona como um obstáculo à rápida propagação da pandemia no país. Por essa razão, a notícia de que o governo planejava reunir estudos para reformar esta política pública durante a pandemia foi criticada por profissionais da saúde.  

Outra edição, publicada em agosto de 2020, afirma que foi oferecida denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no Tribunal Penal Internacional pela forma como ele tem conduzido a resposta à pandemia no país, contrariando a legislação nacional e internacional. Segundo o documento, o comportamento de Bolsonaro “contraria recomendações da OMS e minimiza os efeitos da pandemia, provocando consequências diretas e incalculáveis à propagação ou à incidência de contaminação da doença”.

O caminho para controle de epidemias é, segundo Fernando Aith, o fortalecimento de sistemas como o SUS. “Somente com promoção da saúde é que podemos evitar ou reduzir os danos de futuras epidemias, e isso só é possível com sistemas de saúde robustos e bem organizados, com forte financiamento público”, conclui.

Surgimento do coronavírus e meio ambiente

A pandemia do coronavírus, assim como as anteriores, foi uma consequência da interferência humana no meio ambiente: provavelmente surgiu da comercialização de morcegos para consumo humano no mercado de Wuhan, sendo caracterizada como uma zoonose. 

Ainda em janeiro, a China e a OMS finalizaram negociações para que uma equipe da organização mundial visitasse Wuhan em prol de investigar as origens do vírus. Entender como ocorreu o surgimento da doença é de grande importância para o desenvolvimento de maior conhecimento científico e preparação para outras possíveis pandemias.

Helena Ribeiro, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, conta que a forma de armazenamento dos animais silvestres no mercado – dentro de gaiolas, em situação de estresse e com mistura de espécies – pode ter influenciado na mutação do vírus. Malária, febre amarela e dengue também surgiram a partir da destruição de matas e florestas, atingindo sobretudo a população rural. 

Nelson Gouveia, professor da Faculdade de Medicina da USP, complementa: “A invasão de habitats e nichos ecológicos naturais nos aproxima desses vírus. Essa pandemia é um exemplo de como a gente tem que se preocupar com a destruição do meio ambiente”.

Meio ambiente e saúde global

Uma das maiores ameaças ambientais à saúde humana é a das mudanças climáticas. Gouveia conta que, além de afetarem nossa saúde, elas também estão ligadas a possíveis novas epidemias. “Quando falo em mudanças climáticas, estou falando também em destruição de florestas”. Ao desmatar, há avanços em nichos ecológicos aos quais o ser humano não pertence, fazendo-o entrar em contato com vírus desconhecidos. Ele também aponta o derretimento de geleiras, gerado pela alteração nos climas. “Nessas geleiras pode haver vírus depositados há milhões de anos que podem voltar a circular e ter contato com o ser humano”.

Helena Ribeiro discute sobre outro aspecto das mudanças climáticas: “Houve um convencimento dos profissionais de saúde que se não batalhassem para combater as mudanças climáticas, os serviços de saúde iriam receber cada vez mais doentes e teriam que fazer face a desastres que poderiam ter sido prevenidos a custo mais baixo, tanto financeiro quanto em termos de saúde”. Ela ressalta a importância de aliar o movimento ambiental ao movimento de saúde, sobretudo o sanitarista. 

A professora conta um fenômeno recente que aumentou o problema: “As pessoas, às vezes, com medo de pegar o vírus no transporte público, acabam usando mais seu carro. Esse é o pior cenário que poderia ocorrer. A ideia era que as prefeituras e os governos incentivassem a ter mais parques e mais transporte público de qualidade para reduzir a poluição do ar”.

Helena também reflete sobre a efemeridade da preocupação com a saúde pública em crises como essa: “Depois que melhora a epidemia, o governo não fez mais nada para o saneamento. Essas epidemias têm um caráter de emergência. O governo faz uma ação emergencial e depois que melhora parece que deixa de lado. Foi assim com a febre amarela, com o zika e agora com a covid”. Profissionais de saúde pedem aos governantes atitudes mais preventivas e a longo prazo, mas isso não ocorre.

Impactos desiguais

Os pesquisadores lembram ainda que os impactos das mudanças climáticas afetam os países de formas diferentes, gerando maiores vulnerabilidade e problemas não só em questões relacionadas à saúde. “Normalmente as populações mais pobres sofrem mais os efeitos do meio ambiente degradado”, frisa Ribeiro. 

Segundo um estudo elaborado pela Universidade de Stanford em 2019, em anos com temperaturas mais altas, o crescimento econômico acelerou nos países mais frios e reduziu nos mais quentes. O impacto do aquecimento global é mais grave em países da África, Ásia e América Latina. Os Produtos Internos Brutos (PIBs) da Mauritânia e do Níger, por exemplo, estão 40% menores do que estariam se as temperaturas não estivessem aumentando.

Em nível local, populações de maior renda podem morar em bairros com mais infraestrutura e fugir do risco de enchentes e de deslizamentos. “Quem vive em bairros mais aglomerados e sem saneamento básico tem maior risco de adoecimento e mortalidade. Estudos mostram também um viés por cor da pele, não porque populações pardas ou negras tenham vulnerabilidade, mas porque normalmente predominam em bairros de moradia subnormal”, explica Ribeiro.

A disseminação de doenças é agravada pela dificuldade de acesso ao atendimento de saúde. Segundo Ribeiro, essa situação foi evidenciada pelo que aconteceu em Manaus (AM) e Natal (RN) com o coronavírus: “Até as pessoas chegarem em um serviço de saúde e serem atendidas é tarde demais, e para reverter a situação é mais difícil. Tem a ver com questões urbanas”.

Mudanças possíveis e urgentes

A destruição ambiental tem impacto direto na saúde humana há anos. Ribeiro foi parte de um estudo que analisou a diminuição da poluição em grandes metrópoles ao redor do mundo (Paris, São Paulo, Nova York e Los Angeles) durante os períodos de confinamento devido ao coronavírus. Os pesquisadores concluíram que a melhoria da qualidade do ar pode ter diminuído o número de vítimas fatais da doença, já que as partículas em suspensão dão suporte para a sobrevivência do vírus. “Em cidades muito poluídas, tivemos uma mortalidade maior por covid-19, já que doenças respiratórias pré-existentes relacionadas à poluição deixaram as populações mais vulneráveis”, comenta a professora.

A situação evidencia a necessidade de buscarmos um estilo de vida mais sustentável. Diante da pandemia, algumas cidades passaram a incentivar a população a se locomover a pé ou com bicicletas, movimento que, de acordo com Ribeiro, deveria ser mantido.

Gouveia também ressalta a necessidade de buscar caminhos mais sustentáveis, citando a chamada por uma “recuperação saudável” após a pandemia e o movimento dos “hospitais saudáveis”. “É um movimento grande na Inglaterra, onde o Serviço Nacional de Saúde (NHS) anunciou que pretende zerar sua pegada de carbono até 2040”, cita o professor. Gouveia lembra que, no dia a dia, estamos sempre destruindo o meio ambiente, e é essencial buscarmos reduzir isso. “Mostrar a conexão entre meio ambiente e saúde é importante para a gente sair disso com uma consciência ambiental maior”.

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