Pesquisa da USP estuda o papel dos sonhos na cultura Guarani Mbya

Para o povo indígena, os sonhos representam um momento de fortalecimento dos laços e de transmissão de sabedoria

Foto de capa: Mário Vilela/ Funai

Em uma certa manhã, Rivelino e Elza decidem abandonar a reserva indígena de Mangueirinha, no Paraná, onde viviam uma vida confortável, para se aventurar em uma longa viagem em busca de um lar incerto. Tudo por causa de um sonho. 

Durante a jornada pelo sul do país, Elza alega ter sido guiada e aconselhada por espíritos ancestrais que se manisfestavam durante o sono, até finalmente se estabelecer na Reserva Biológica Bom Jesus, onde, segundo ela, só havia mato e passarinhos. 

“Sonhei com todos esses passarinhos que tem aqui e falei que lá, nesse lugar que a gente ia, a primeira coisa que a gente iria ver seriam esses passarinho e, daí, a gente teria certeza que era lá mesmo.”, conta Elza, no relato transcrito por Marcelo Hotimsky. E assim foi fundada a aldeia Kuaray Haxa, no litoral do Paraná.

Intrigado pelos motivos que levam grupos a abandonarem o conforto material e partirem rumo ao desconhecido, Marcelo Caio Nussenzweig Hotimsky, já envolvido politicamente com as causas dos guarani desde 2014, escreveu a dissertação Sonhos compartilhados: dos encontros oníricos às práticas de aconselhamento entre os Guarani Mbya

“Vi que várias lideranças e famílias abandonavam terras demarcadas, em que já tinham casas e família, em busca de uma outra terra, justificando que faziam isso seguindo um sonho”, conta o pesquisador. “Isso me deixou muito curioso”.

Os Guarani Mbya e seus sonhos

Assim como Elza e Rivelino, a maioria dos Mbya está situada na região da mata atlântica, em estados do sul e sudeste do país. Além do Brasil, também podem ser encontradas aldeias no Uruguai, Argentina e Paraguai. 

Para a dissertação, Hotimsky conversou com indígenas Mbya de diversas regiões do país e vivenciou o cotidiano de algumas aldeias. A partir dessas experiências, o pesquisador percebeu que, para os Guarani Mbya, os sonhos são compreendidos como experiências reais vividas pelo sujeito durante o sono e que o compartilhamento dessas experiências é parte central do cotidiano e das relações pessoais na aldeia.

O ato de sonhar possui tamanha relevância para a cultura Mbya que, por vezes, determina o cotidiano da população — desde ações pequenas, como deixar de ir à caça determinado dia, até decisões estruturais, como a tomada por Elza e Rivelino. Isso porque muitos sonhos são entendidos como previsões, oferecendo alertas acerca de eventos futuros, ou mesmo manifestações — de espíritos, divindades ou falecidos — que transmitem seus conselhos durante o sono.

Enquanto buscava o novo lar, Elza sonhou com os sairá-sete-cores, passarinhos que podem ser encontrados na Reserva Biológica Bom Jesus. [Imagem: Marcelo Hotimsky/ Acervo Pessoal]
Mas nem todo sonho é uma visão do futuro ou um conselho espiritual, explica Hotimsky: “A atividade de sonhar é diversa e abarca diferentes tipos de sonhos e formas de sonhar”. Mesmo entre os guarani, existem sonhos que não carregam simbolismos fortes. “O sonhar à toa, como é chamado pelos guarani, tem a ver com preocupações do cotidiano, são sonhos dos quais não se pode depreender conselhos, previsões”, complementa o pesquisador.

Hotimsky acompanhou — à distância — diversas comunidades Mbya durante a pandemia de covid-19 e percebeu que a doença passou a dominar também o inconsciente daquelas populações, das mais diversas formas. Alguns indígenas começaram a sonhar com cenários apocalípticos em que toda a aldeia contraía o vírus; outros, com curas milagrosas, plantas e raízes capazes de conter os efeitos da doença. Também há relatos de pessoas que receberam, anos antes, sonhos preditivos que alertavam sobre uma doença ou tragédia que assolaria o mundo.

Além de predizer catástrofes, o sonho tornou-se um mecanismo de enfrentamento da crise. “Eram os sonhos que ajudavam os guarani a entender como orientar a vida deles e das aldeias nesse período de pandemia”, conta Hotimsky. “Orientavam para cuidar uns dos outros, manter-se longe das cidades, buscar a sabedoria dos conhecimentos tradicionais.”

Compartilhamento dos sonhos

As mensagens codificadas nos sonhos — como bem se sabe — não costumam ser claras ou literais e a diferença entre um sonho à toa e uma previsão pode recair em linhas muito tênues. Por isso, os guarani têm o hábito de se reunirem em sessões de compartilhamento, nas quais os sonhos são interpretados de forma coletiva. 

Essa interpretação coletiva, segundo relatos expostos da dissertação de Hotimsky, possui um caráter pragmático: como os sonhos preditivos por vezes contém informações e avisos que afetam aldeias inteiras, o compartilhamento torna-se necessário para que, em conjunto, se possa chegar a uma interpretação mais precisa para preservar a comunidade. Além de auxiliar na preservação do bem estar na aldeia, o ato de compartilhar os sonhos tem como efeito o fortalecimento dos laços entre os Mbya, constituindo um momento diário de troca e de aproximação.

O chimarrão é frequentemente consumido durante as rodas de compartilhamento de sonhos [Imagem: Pixabay]
Ao longo da dissertação, o pesquisador utiliza relatos transcritos e se apoia no repertório guarani para pensar os sonhos indígenas. Palavras guarani como  nhe’ẽ e jurua, cujas traduções para o português são imprecisas, são frequentemente utilizadas no trabalho, em um movimento de compreender aqueles fenômenos noturnos a partir da percepção de quem os vivencia. “Uma coisa que me incomodava é que parte da etnopsiquiatria tentava psicanalisar os sonhos indígenas.”, explica Hotimsky. “É um movimento bastante etnocêntrico e perigoso, por isso me propus a pensar os sonhos a partir dos termos que os próprios índios colocam, mas ainda reconhecendo traços em comum com a psicanálise”.

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