Figuras do malandro e do bandido ajudam na compreensão da sociedade e da evolução da violência urbana

Pesquisa enxerga, por meio da análise de sambas e raps, a longa duração de processos e práticas de marginalização social

“A violência da polícia se revela como elemento central na construção da delinquência, e não, como se costuma justificar, uma resposta ao aumento da violência.” (Imagem: Marco Allasio/Reprodução)

“Senhor delegado,

Seu auxiliar está equivocado comigo

Eu já fui malandro,

Hoje estou regenerado (…)”

Foi ouvindo atentamente a sambas de malandro como esse – “Senhor Delegado”, de Ernani Silva e Antoninho Lopes, gravado por Germano Mathias em 1957 – que Rachel Sciré começou a pensar sobre figuras de marginalidade da sociedade brasileira, o que culminou na dissertação “Ginga no asfalto: figuras de marginalidade nos sambas de Germano Mathias e nos raps do Racionais MC’s”, apresentada em 2019 no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. 

“Também sempre admirei o trabalho do Racionais MC’s e, a partir dos raps sobre o ‘mundo do crime’ presentes na obra do grupo, percebi que se tratava de outra abordagem do tema da marginalidade”. Assim, na pesquisa, ela se propôs a realizar uma comparação entre as narrativas dos sambas de Germano Mathias e os raps do grupo Racionais MC’s a fim de estudar semelhanças e diferenças em figuras de marginalidade na sociedade brasileira: o malandro e o bandido. 

A primeira semelhança entre essas duas representações que se salta é o fato de tanto malandro quanto bandido estarem inseridos precariamente na estrutura produtiva. Ou seja, pertencem às camadas mais pobres da população e encontram alternativas de sobrevivência em mercados informais, ilegais e ilícitos. “Por isso também eles possuem noções específicas de ética, além de formas de expressão particulares, como o uso de gírias”, complementa Sciré. 

Além disso, tanto malandros quanto bandidos se apresentam, nas letras das canções, envolvidos em situações de conflito social marcadas por violências, racismo, delinquência e opressão policial. É dessa opressão, inclusive, que se identificam as diferenças entre os personagens, como o grau de violência empregado aos malandros e aos bandidos. “A crítica social também é diversa: enquanto o samba de Germano explora o humor, a ironia, o rap do Racionais prefere o chamado ‘papo reto’, o revide agressivo”.

  

Germano Mathias e Racionais MC’s  (Imagens: Divulgação)

Análise formal das obras configura-se como análise da sociedade

A pesquisadora se fundamenta, para a análise das letras e comparação entre as figuras emblemáticas, na crítica cultural materialista, que enxerga nas obras de arte a formalização de processos sociais. “Assim, ao analisar a forma de uma determinada obra, é possível analisar também a sociedade, por meio de um movimento dialético”, explica ela, retomando as palavras do crítico Roberto Schwarz, segundo o qual a forma artística é “princípio mediador que organiza em profundidade os dados da ficção e do real, sendo parte dos dois planos”. 

Para a escolha das letras, Sciré identificou termos de comparação entre o samba-malandro e o rap sobre o crime, chegando a três eixos temáticos: violência institucional, violência urbana e marginalidade socioeconômica. “Para pensar na questão da violência institucional, aquela cometida pelo Estado, por meio da polícia, comparei o samba ‘Senhor Delegado’, gravado por Germano em 1957, em que um malandro é preso de forma arbitrária ‘para averiguação’, com o rap “Homem na Estrada’, de 1993, composto pelo Mano Brown, em que um ex-presidiário é acusado injustamente de roubo e executado pela polícia”, exemplifica. 

Experiências de marginalização nas narrativas cantadas e na realidade brasileira

Segundo Sciré, a principal questão depreendida das narrativas analisadas na pesquisa diz respeito à longa duração de processos e práticas de marginalização social. “Apesar de o campo da marginalidade sofrer mudanças ao longo dos anos, nota-se, ao analisar as letras, a persistência histórica de dilemas sociais, tais quais as condições precárias de vida do grupo de negros e pobres, o racismo, a repressão policial, o emprego da violência no cotidiano e a forma de se inserir na estrutura produtiva – já que as economias criminais acompanham as transformações do mercado de trabalho”, aponta. 

Dentre os processos de marginalização social observados nas obras, a pesquisadora aponta a violência de Estado, por meio de práticas de controle e de gestão da população, como sendo estruturante. “A violência da polícia se revela como elemento central na construção da delinquência, e não, como se costuma justificar, uma resposta ao aumento da violência.”

Como exemplo, no caso dos sambas, ela cita a canção “Lata de Graxa”, gravada por Germano em 1957, na qual engraxates e outros trabalhadores informais que praticavam o samba em rodas na Praça da Sé são expulsos em razão do processo de reurbanização higienista. 

Já nos raps, a violência policial ganha escala. Em “Homem da Estrada”, é narrada a invasão da polícia na favela e o assassinato de um inocente em sua própria casa. “O ápice dessa violência talvez seja a ocorrência de um massacre como o do Carandiru, narrado em ‘Diário de um detento’, de 1997”.

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