Sem poder de mobilizar a população, o governo de Moçambique entrega grandes eventos comemorativos nas mãos da Igreja Universal do Reino de Deus. Do outro lado do oceano, a popularidade da maior neopentecostal brasileira impressiona. Na inauguração de um templo em Maputo, capital do país, em 2011, dois fiéis morreram por asfixia tamanho era o caos da multidão. O comportamento que tornou a igreja tão influente foi investigado pelo pesquisador Silas André Fiorotti, do Departamento de Antropologia da USP. As descobertas estão presentes na tese de doutorado A Igreja Universal e o espírito da palhota: análise dos discursos ‘religiosos’ e ‘políticos’ da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) no sul de Moçambique.
A Universal se estabeleceu no país em 1992, logo após o fim da Guerra Civil Moçambicana, que durou 15 anos. Foi a primeira igreja evangélica de Moçambique. Na mesma década, outras neopentecostais de origem brasileira asseguraram seu lugar, como a Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD) e a Igreja Pentecostal Deus é Amor (IPDA). Isso se deu graças ao reconhecimento da liberdade de culto por parte do governo e evidencia a ascensão missionária protestante. Segundo a Constituição de Moçambique, o país é um Estado secular onde existe uma absoluta separação entre o Estado e as instituições religiosas.
A liberdade religiosa parece ser respeitada. Já a separação entre Estado e instituições religiosas, nem tanto. No poder desde 1974, a Frente de Libertação de Moçambique, mais conhecida como Frelimo, não é tão bem vista e reconhecida como legítima pela população. “Um evento da independência no estádio, o presidente falando, é algo que não mobiliza tanto”, ressalta Silas. Por isso, em datas cívicas, a Universal é convocada. “Eles enchem o estádio. O presidente da igreja, que é moçambicano, e o bispo também dão uma palavra. Então ela [a igreja] tem um palanque garantido. Até pede para o pessoal votar no partido do governo”.
Eis o porquê das aspas contornando os discursos “religiosos” e “políticos” no título da pesquisa de Silas. Não há uma fronteira entre esses discursos. O religioso tem implicação política, o político é utilizado dentro do templo. “Hoje a gente vê essa contaminação no Brasil. O presidente é eleito e invoca Deus, invoca a bíblia”, compara, relembrando a primeiro pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro em rede nacional, que se iniciou com uma oração ministrada pelo líder evangélico Magno Malta.
Embora a IURD esteja junto do governo, sua postura em relação à oposição não é agressiva. Pelo contrário, se mantém em uma relação amigável. O antropólogo faz novamente uma analogia à situação brasileira. “Quando o governo Lula tinha grandes chances de ser eleito, a Universal se aproximou e se aliou ao Partido dos Trabalhadores. Quando a Dilma perdeu a base de apoio, começou o processo de impeachment, a Universal também passou para o outro lado. É a mesma estratégia em Moçambique”.
Espíritos e demônios
A questão cultural foi parte crucial da pesquisa. Segundo Silas, a abordagem da igreja em relação aos costumes moçambicanos foi mudando ao longo dos anos. “Ela cometeu alguns erros de uma insensibilidade cultural, mas foi aprendendo. Por exemplo, em 2006, um pastor fez um culto e colocou caixões em que as pessoas depositavam os problemas. Ele falou que ia enterrar os problemas das pessoas. O pessoal do bairro começou a protestar contra, porque achou que ele estava fazendo bruxaria dentro da igreja”.
Se no começo seu comportamento se assemelhava à Universal brasileira, em que entidades religiosas afro-brasileiras são demonizadas em cultos, o que se tem hoje é um cristianismo mais “inculturado”. Majoritariamente composta por líderes moçambicanos, a Igreja Universal sabe quais espíritos podem ser combatidos abertamente. “Ela tem uma maleabilidade e se adapta ao contexto. Existe um universo simbólico e espiritual com o qual vai dialogando”.
Em Moçambique, são cultuados os chamados “espíritos ancestrais”. Esses espíritos são familiares de gerações anteriores. Pais, avôs, bisavôs. “Eu carrego meu espírito ancestral. Para onde vou, o carrego. Mudo de casa e ele vai junto, na visão deles”, exemplifica. A demonização destes espíritos não é aceita pela população e, portanto, a Universal não o faz. Somente atacam os espíritos estrangeiros, que podem “fazer mal” a uma pessoa e que já são combatidos por outras igrejas e por curandeiros.
Se a Universal combatesse os espíritos familiares, estaria combatendo a própria formação familiar, estrutura da sociedade moçambicana. “O padrão de família é o sobrinho, com o tio, com o irmão, com a avó. Mesmo na cidade, as famílias são estendidas, moram todos juntos. E tem as responsabilidades por conta dos ancestrais. Ou seja, a família seria o mal. Ali estaria um demônio a ser combatido”, explica. “Mesmo que esteja propondo outros padrões familiares, mesmo que incentive autonomia da mulher para empreender, qualquer coisa nesse sentido, a igreja não está necessariamente demonizando o padrão familiar”.
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