Disputa entre União e Município pelo Campo de Marte ameaça futebol de várzea

Reduto histórico da modalidade e de convívio da comunidade, complexo de campos resiste há décadas

Várzea articula práticas esportivas e sociabilidade da comunidade. Foto: Acervo Museu do Futebol

Uma disputa territorial travada entre a União e o município de São Paulo ameaça a permanência de clubes de várzea no Campo de Marte, um dos poucos redutos do esporte amador restantes na cidade. Ao mesmo tempo, a construção de um complexo de campos de futebol na região só foi possível graças a essa batalha judicial pelo terreno. “É um paradoxo”, afirma Raphael Piva, que se debruçou sobre a questão em sua dissertação de mestrado “A várzea é imortal”: abnegação, memória, disputas e sentidos em torno de uma prática esportiva urbana, desenvolvida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

A batalha pela posse do terreno se arrasta desde pelo menos a década de 1930. Aproveitando-se desse impasse na Justiça que impede ações mais contundentes das partes no espaço os clubes de várzea, em meados dos anos 1960, se articularam e, a partir de uma negociação com a Aeronáutica, conquistaram o direito de uso do local. Ali, então, construíram um complexo formado por seis campos de futebol, em uma área de aproximadamente 50 mil metros quadrados.

À articulação dos times, que garantiu o sucesso da negociação, se somou a preocupação da União de perder o controle sobre a região. Segundo Piva, temiam que a área virasse alvo de ocupações ou moradias irregulares. “Sinal disso são as contrapartidas as quais os times tiveram que se submeter para garantir a concessão de uso, como a construção de portões e cercas que controlassem a circulação de pessoas no local”, exemplifica o cientista social.     

O complexo está em funcionamento desde sua criação, com movimentação intensa principalmente aos finais de semana. Apesar das décadas de vigência do termo de concessão de uso, Piva lembra que o acordo é frágil. Não há garantias de permanência dos clubes no Campo de Marte, e, ao longo destes anos, não foram poucas as ameaças de retomada da área e as resoluções temporárias que ora favoreceram a várzea, ora prejudicaram-na. 

Localização privilegiada do complexo de campos de futebol motiva disputas. Foto: Reprodução/Google Maps

O Campo de Marte está situado na zona norte da capital paulista, no bairro da Casa Verde. Trata-se de uma região de localização privilegiada, próxima ao centro da cidade e potencialmente valiosa. Nisto reside parte importante do interesse da União e do Município no espaço. “Vários dos últimos prefeitos de São Paulo apresentaram projetos para fechar o Aeroporto do Campo de Marte ou reduzir operações aéreas no local, pondo fim, assim, à lei de zoneamento, que impede a construção de torres altas no entorno”, conta Piva. Ele lembra, também, que a região está dentro do projeto do Arco Tietê, que “tem por objetivo promover o ordenamento e a reestruturação urbana em áreas subutilizadas e com potencial de transformação”, segundo a Prefeitura.

Apesar das ameaças, a várzea resiste. Sua permanência no espaço só é possível graças a força dos clubes, organizados politicamente. A força política, por sua vez, vem do respaldo que encontram nas comunidades onde se originaram. Conforme conta Piva, o nascimento do futebol de várzea paulista data do final do século 19, início do século 20, concomitantemente ao processo de urbanização de São Paulo. Neste contexto, os bairros operários passaram a organizar times regionais e disputar amistosos e campeonatos, longe do controle das fábricas e dos patrões. “O laço que os times formaram com seus bairros originários se mostra pela forma como são conhecidos: Botafogo de Guaianases, Ajax de Vila Rica, XI Garotos do Piqueri, Cruz da Esperança da Casa Verde, Baruel da Casa Verde, 9 de julho da Casa Verde Alta”, afirma o pesquisador. O vínculo é visceral e há um sentimento de pertencimento da população aos campos de várzea, área de convívio e sociabilidade não só dos jogadores.

Piva defende a permanência do complexo de campos de futebol no Campo de Marte. Em tempos de explosão das “arenas multiuso” no futebol profissional, ele lembra que a várzea sempre articulou outras práticas além do futebol: nos campos a comunidade se reúne e realiza missas, festas, reuniões, churrascos, feiras, eventos políticos. O pesquisador destaca também o aspecto da autoconstrução do espaço: “As próprias comunidades se articularam para construir esses locais. Mesmo quando conseguiram autorização, ficava para elas a responsabilidade de edificar vestiários, bares, parquinhos, campos. O que era suprido de várias formas: mutirões, rateios, doações de alguns abnegados”. Por último, Piva avalia tratar-se de uma importante área de convívio e recreação, principalmente em uma cidade em que o lazer segue recebendo pouca atenção daqueles que pensam as políticas públicas.

Sobre a situação atual da várzea no Campo de Marte, Piva revela que, em 2015, os clubes receberam uma nova notificação, colocando prazo de um mês para que deixassem o local. Então, recorreram na Justiça e no início de 2017 conseguiram uma vitória: a garantia de que, enquanto o impasse entre Prefeitura e Aeronáutica não for resolvido, eles podem seguir no local. Em meados do mesmo ano, porém, um projeto inédito, de parceria do então prefeito João Doria com o presidente Michel Temer, foi apresentado aos times. O plano prevê a construção de um parque municipal e um museu da Aeronáutica na área hoje ocupada pelos campos de futebol. Desde a notificação, há uma intensa movimentação dos clubes para impedir a remoção do complexo. “Por enquanto, o projeto não saiu do papel”, comemora o pesquisador.

“Os clubes lutam hoje também pela construção e legalização de parte desse terreno como um Clube da Comunidade (CDC), legislação municipal de gerência de terrenos da prefeitura sobre equipamentos públicos, onde as comunidades administram esses locais em parceria com entidades civis e públicas, garantindo uma maior estabilidade a ocupação do terreno – é nos CDC que hoje estão grande parte dos campos de várzea existentes na cidade de São Paulo”, conclui Piva.

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