Pesquisadores indígenas divulgam suas descobertas nas aldeias

Estudantes da pós-graduação quebram barreiras entre o mundo branco e o mundo indígena

Lennon Corezomaé, primeiro ingressante indígena no mestrado da UFSCar, em 2015. Foto: Lidiane Volpi/UFSCar

De povos que têm em suas culturas a transmissão de conhecimento por meio da boca, nascem dissertações de mestrado, pedaços de papel congelados. Três estudantes indígenas da pós-graduação da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) escreveram suas pesquisas não só em português, como também em suas línguas nativas, e apresentaram os resultados dentro de suas comunidades. Quem acompanhou a jornada foi Talita Lazarin, do Departamento de Antropologia da USP. A experiência faz parte de sua tese de doutorado A presença de estudantes indígenas nas universidades: entre ações afirmativas e composições de modos de conhecer.

Parte mais relevante da pesquisa, o trabalho de campo realizado em Manaus teve como objetivo entender a articulação entre regimes de conhecimento indígenas e o universo acadêmico. Os procedimentos destes povos se pautam, muitas vezes, em esferas que não têm espaço na universidade, vinculada rigorosamente a métodos científicos. As práticas indígenas agrupadas dentro do xamanismo, por exemplo, estão enraizadas no modo de pensar e ser desses povos.

O que se observa, contudo, não é o apagamento destes regimes. Pelo contrário, eles se apropriam de ferramentas da universidade e incorporam suas próprias metodologias para construir suas narrativas. “É justamente essa a palavra: incorporação. É importante porque é uma questão de corpo. A alimentação, o jeito de falar, de ouvir, de pensar. Isso gera outra estética, outra performance de aprendizado”.

Justamente por conta das diferenças notáveis entre os cientistas não indígenas e os indígenas, estes ocupam outra dimensão de pesquisa. João Paulo Barreto, Dagoberto Azevedo e Gabriel Maia, os três mestrandos observados por Talita, escolheram temas relacionados a suas culturas. Uma condição importante os aproximou: todos são Yepamahsã (Tukano), povo indígena do Alto Rio Negro.

Mesmo por meio de técnicas antropológicas, os estudantes aprenderam com os kumuã, velhos conhecedores do povo Tukano. “Antropólogos não indígenas que trabalharam com essa população também estabeleceram uma relação bem forte e próxima a esses conhecedores. Só que, em específico, esses antropólogos indígenas são filhos dessas pessoas. A relação de pesquisa é outra”, relata. “Esses velhos já tinham a intenção de formar seus filhos, mas uma vez que existem escolas, que os filhos vão para a cidade, esses jovens seguem outros caminhos. No entanto, os pais nunca perderam a vontade de transmitir esses saberes”.

João Paulo, Dagoberto e Gabriel com suas famílias na defesa de seus mestrados. Foto: Talita Lazarin

Além disso, João Paulo, Dagoberto e Gabriel optaram por estudar juntos, agregando semelhanças e contrastes. “Eles insistiam muito nessa pesquisa coletiva, já que cada um aprende à sua própria maneira, por serem de subgrupos diferentes. Eles debatiam isso coletivamente para tentar chegar a consensos”.

Essas pesquisas têm efeitos neles mesmos. Em um episódio relatado na tese, Gabriel contou a Talita que sua filha tinha nascido e que ele havia realizado o heriporã nela. O heriporã é um ritual de benzimento do coração feito logo que uma criança vem ao mundo e, tradicionalmente, somente um kumuã pode fazê-lo, por dominar a prática.

O ritual demanda uma série de processos de formação que envolvem jejuns, regimes e dias de isolamento, o que é difícil de se fazer estando na cidade. Todavia, Gabriel sabia de sua existência. Descreveu passo a passo em sua dissertação. Viu seus pais fazendo. Segundo ele, seu pai enviou os procedimentos por Skype e disse que ele “estava pronto”. Esse é um exemplo de como esses costumes se transformam a partir de novas realidades.  

Segundo velhos indígenas, no entanto, certas coisas se perdem. “Os jovens estão menos interessados, ficam mais doentes, comem muita comida que não é ideal”, revela a socióloga. Daí uma possível consequência positiva destes trabalhos: recuperar o interesse dos jovens indígenas pelos seus próprios saberes. “A universidade reconhece esse conhecimento como legítimo, então se transforma em uma tese, em uma dissertação, e ganha um status diferente, e começa a circular nas comunidades”.

Para fortalecer

Talita investigou também políticas afirmativas. Quando finalizava o curso de ciências sociais na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em 2005, o debate em torno de um programa de cotas se fortaleceu no espaço. Ela, que tinha como tema de Trabalho de Conclusão de Curso a educação escolar indígena, passou a fazer parte de comissões e assistiu à criação do vestibular indígena em 2007. Quando ingressou na USP em 2013, auxiliou na formação de um Programa de Ações Afirmativas dentro da Antropologia, que somente se efetivou em 2017, ainda que sem posicionamento da reitoria.   

Para este âmbito da pesquisa, acompanhou, de longe, mobilizações coletivas de estudantes da graduação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). De longe, porque o movimento indígena busca, hoje, ampliar seu protagonismo frente a suas próprias reivindicações. “É claro que parto de um outro lugar. Estamos em posições diferentes. É preciso se colocar mais de lado para que eles fiquem mais evidentes, ainda que seja um diálogo, uma interlocução”.

Desde 1970, o movimento indígena discute políticas de escolarização dentro de seus territórios que respeitem seus próprios modos de organização social e de ensino-aprendizagem. A consolidação se deu com a Constituição de 1988. Uma vez que o direito é assegurado e o debate, legitimado, a demanda por continuidade no ensino superior cresce. “É o que eles lutam para ter cada vez mais, porque percebem a importância de ocupar esses espaços”.

Primeiro Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas, em setembro de 2013. Foto: CCS/UFSCar

Quando os primeiros alunos indígenas ingressaram na UFSCar em 2008, a universidade os colocou em blocos separados do alojamento estudantil. Do ponto de vista da gestão, essa era uma maneira de investir na integração. Os estudantes, entretanto, não aprovaram a ideia. “Estavam indo para um espaço completamente diferente, distante de suas famílias, e preferiam ficar juntos”.

Eles perceberam a necessidade de estarem juntos, organizados, e criaram seu coletivo. Em 2013, construíram o Centro de Culturas Indígenas (CCI) e ganharam uma sala de convivência e discussão de pautas. Foi dentro do CCI que conceberam o Encontro Nacional de Estudantes Indígenas, que em sua primeira edição reuniu mais de 400 pessoas, especialmente estudantes e lideranças indígenas, de mais de 50 universidades.

Segundo Luciano, um dos representantes da organização, esses momentos coletivos, não só de fala, mas também de danças, de comemoração, são de fortalecimento, porque a distância de casa, a saudade, a tristeza é muito difícil, e os enfraquece. Para ele, fazer as coisas coletivamente deixa, inclusive, seus corpos mais fortes.

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