Saúde mental da família pode interferir no diagnóstico do idoso com Alzheimer

Convivência com paciente vítima da doença de Alzheimer pode tornar família mais sensível na percepção do mundo

Coco, que sofre de Alzheimer, e o bisneto Miguel, da animação Viva - A vida é uma festa. Imagem: Disney Pixar

“Recuérdame, si en tu mente vivo estoy. Te llevo en mi corazón y te acompañaré” (Lembre-se de mim, se eu estiver vivo em sua mente. Te levo em meu coração e te acompanharei). Foi na voz doce e nos poucos acordes de violão como arranjo, que ouvir essas palavras levaram adultos às lágrimas no cinema com a animação Viva – A vida é uma festa (2017). O longa da Disney que se passa no Dia dos Mortos, o conhecido feriado mexicano, e traz entre figuras de esqueletos e uma explosão de cores, temas como perda de familiares, envelhecimento e o mal de Alzheimer. A terapeuta ocupacional, Janaína Harder, desenvolveu a dissertação de mestrado A percepção do informante frente à funcionalidade do idoso com doença de Alzheimer (DA), sobre a doença que acomete tantos idosos dentro e fora das telas.

A cena final da animação comove por ser algo de fácil identificação. Segundo a Alzheimer’s Association Brasil, só no País cerca de 1 milhão de pessoas vivem com a demência, enquanto o número mundial pula para a casa dos 44 milhões de pacientes. A medicina ainda não consegue impedir o avanço da doença, e a medicação disponível tenta melhorar a qualidade de vida dos pacientes e, por consequência, das pessoas em volta dela que lidarão com o Alzheimer.

O diagnóstico correto ainda na fase inicial da doença pode ser um fator decisivo nos anos que virão para o idoso debilitado. Diante dessa necessidade, a pesquisa de Janaína avaliou o paciente e as pessoas ao seu entorno para um diagnóstico melhor. “Eu quis analisar a funcionalidade do idoso com doença de Alzheimer, tanto do ponto de vista do cuidador, como ele vê o doente, como do ponto de vista do profissional que aplica uma avaliação direta.”

Envelhecimento bem-sucedido

“A terceira idade vem crescendo muito, e faz parte da minha profissão de terapia ocupacional a funcionalidade, olhar esse idoso em ação, agindo e sendo independente no dia a dia”, começa a terapeuta. Para muitos, a saúde íntegra não é fator decisivo para avaliar o sucesso. De fato, manter a qualidade de vida, funcionalidade, cognição e outros aspectos, preservando a independência enquanto lida com uma doença pode ser um envelhecimento satisfatório também.

A funcionalidade, de acordo com a definição presente na tese baseada na Classificação Internacional de Funcionalidade, publicada em 2004 pela Organização Mundial da Saúde, a descreve como “a interação dinâmica entre as funções e estruturas do corpo (olhos: visão, ouvidos: audição, cérebro: memória, etc), as atividades (execução de uma tarefa, ação de um indivíduo), a participação (envolvimento numa situação de vida real) e fatores ambientais e sociais (ambiente físico e social em que a pessoa conduz a vida)” .

O aspecto é avaliado a partir das atividades de vida diária, conhecidas como AVD. As AVDs são categorizadas em 3 níveis de acordo com a complexidade cognitiva: as mais simples, denominadas atividades básicas de vida diária (ABVD), como se alimentar sozinho, comunicação e autocuidado básico; as atividades instrumentais de vida diária (AIVD) possuem nível moderado, como planejar uma refeição em família e participar da vida na comunidade; e mais difíceis, como organizar uma viagem, fazer um trabalho voluntário ou de lazer mais elaborado, chamadas de atividades avançadas de vida diária (AAVD).

Doença de Alzheimer e as AVDS

A doença de Alzheimer (DA) afeta o funcionamento integral do cérebro. A Associação Brasileira de Alzheimer, descreve duas maneiras principais de ação da DA no cérebro: pela diminuição da quantidade de neurônios e consequentemente de sinapses, que são as ligações entre essas células nervosas; e pela deposição de proteína beta-amiloide, formando placas neuríticas. Essas lesões cerebrais afetam regiões específicas do cérebro que causa a perda de funções cognitivas.

À vista disso, conseguimos estabelecer a ligação entre a DA e a funcionalidade, em que a demência torna, de forma gradativa, mais dificultoso o idoso conseguir realizar os níveis de AVDs.  Por evoluir nos pacientes, ela é dividida em três fases: leve, moderada e grave.

Esquema que relaciona as atividades diárias, básicas, instrumentais e avançadas com os níveis leve e moderado da doença de Alzheimer. Infográfico: Janaína Harder

No inicio, na fase leve, o idoso começa a esquecer as memórias mais recentes do cotidiano, e tem dificuldade em realizar atividades instrumentais. Quando a DA progride, o paciente passa a precisar de auxílio para autocuidado, esquecer pessoas e até o lugar onde vive. O idoso começa a esquecer se já tomou banho, o que ele fez no dia, dar recados, que são as memórias recentes. Depois ele começa a perder as memórias mais tardias. Quando ele esquece quem é o filho, o cuidador, ou neto, é porque o grau aumentou. Então, essas memórias têm um declínio e vão ficando cada vez mais comprometidas”.

Avaliação direta e indireta

Para que um paciente seja diagnosticado com a doença de Alzheimer, ele faz exames físicos, como sangue, tireóide e urina, buscando deficiências como anemia e vitaminas que podem interferir no comportamento dos pacientes e demonstrar a perda das AVDs. Também são feitas uma série de avaliações psicológicas que testam a cognição em vários aspectos da vida, através de escalas em que se tem uma pontuação de corte para o resultado.

As avaliações podem ser feitas de forma direta e indireta. Janaína explica: “A direta é aquela que o profissional realiza dentro de um set terapêutico atividades que são mensuradas e elas dão um resultado. Essas atividades são as AVDs instrumentais e básicas. O próprio profissional olhando o idoso fazer aquela tarefa. A avaliação indireta é aquela que você pergunta para o familiar ‘sua mãe sabe fazer tal coisa?’ Você pergunta para ele como está a funcionalidade do idoso comparando a dez anos atrás. Essa maneira de fazer a pergunta diminui o viés e se aproxima da avaliação direta”.

Porque avaliar o cuidador?

“A avaliação direta é mais fidedigna na informação, porém ela é mais demorada. Não é em qualquer ambiente, principalmente serviços públicos, que você consegue. Precisa de um profissional treinado para aplicar. A indireta já não, ela é mais rápida. O cuidador que responde, você não precisa de treinamento muito grande, então ela é muito mais utilizada. Mas se você avalia de forma errada, ela pode sim trazer um erro de diagnóstico”, explica Janaína. “Um bom diagnóstico é a porta de entrada para os consultórios e para o tratamento da doença mesmo. Então saber se este cuidador, familiar estava vendo de fato como o idoso está, é um dos critérios para diagnosticar Alzheimer”.

Na maioria das vezes, a família é a primeira a perceber se o idoso está perdendo pouco a pouco a cognição. Essa visão precoce, que é a avaliação indireta, não é totalmente neutra, sendo influenciada pelo emocional dos que estão em torno do paciente. Janaína quis estudar quanto o psicológico do cuidador interfere no seu olhar sobre o idoso, e como isso pode atrasar ou adiantar o começo do tratamento.

“Ele não perceber que a funcionalidade do idoso tá ruim, implica não só no erro de diagnóstico mas na segurança dele em casa. ‘A meu pai tá bem, imagina não tem nada’.  E deixa esse idoso ficar sozinho, que pode esquecer o fogo ligado, pode deixar a porta aberta e entrar alguém, esquecer a chave ou a carteira e ter problemas. Essa segurança é um dos fatores que me preocupava. A visão do cuidador é muito importante”.

Em “Diário de uma Paixão”, Allie sofre de um estágio avançado de Alzheimer em que já esqueceu de seu passado e do seu cuidador e marido, Noah. Foto: Metropolitan FilmExport

Na metodologia do mestrado, primeiro os pacientes eram diagnosticados novamente, então passaram por uma avaliação com uma terapeuta ocupacional para analisar a funcionalidade. Dias depois, o cuidador, que em sua maioria eram mulheres, esposas e filhas, na faixa dos 59 anos, passavam por um ‘rastreio cognitivo’, para testar sua própria cognição, além de exames para medir estresse, depressão e ansiedade. Por fim, esses familiares respondiam quatro questionários indiretos, para responder sobre a funcionalidade do idoso.

As avaliações diretas dos pacientes com as indiretas dos cuidadores eram comparadas para descobrir se havia alguma distorção de percepção pelos familiares, enquanto o diagnóstico para outros doenças psicológicas e sobrecarga buscavam entender como estava sua saúde mental.

“As duas avaliações, direta e indireta, tiveram bons resultados e foram muito próximos. Mas acreditamos que na DA Leve poderia ter uma interferência deste cuidador. Já na DA Moderada, onde a dificuldade do idoso na funcionalidade é maior, fica mais evidente, então o cuidador consegue observar tal como ela realmente é”, explica Janaína.  “DA leve é melhor fazer a avaliação direta para que não haja interferência da depressão, ansiedade e sobrecarga do cuidador”.

Convivendo com a doença de Alzheimer

As pesquisas no campo da doença de Alzheimer ainda não chegaram em uma solução para doença. Alguns remédios melhoram inicialmente os sintomas da demência, tornando a evolução mais lenta, mas esses benefícios vão se perdendo conforme a DA progride. Por enquanto, os profissionais se esforçam para manter o paciente tendo qualidade de vida por mais tempo possível.

O acompanhamento psicológico é essencial junto com a medicação. “Os tratamentos são na linha de fazer um treino cognitivo ou uma reabilitação cognitiva, para atenuar essa queda. Porque o declínio vai acontecer de qualquer forma, mas se pudermos diminuir ele, mantendo mais funcional, por mais tempo possível, quem ganha é o idoso e a família. Porque ele consegue ter mais qualidade de vida e a família junto, então a terapia ocupacional faz isso. Além de fazer orientação para o cuidador”.

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