Quando se fala em arqueologia brasileira, algumas regiões são lembradas com facilidade, em especial a Amazônia e os estados do sul. São Paulo, apesar de ser o estado mais populoso e ocupar local de destaque na economia e cultura do país, desperta pouca curiosidade neste sentido. Com a tese de doutorado “Arqueologia Paulista e o marcador cerâmico como delimitador de fronteira étnica: um estudo das regiões sul e oeste do estado de São Paulo”, o pesquisador Glauco Constantino Perez, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, procedeu contra essa corrente, abrindo perspectivas e trazendo novas informações a respeito da arqueologia local e de grupos ceramistas que habitaram o território no nosso período pré-histórico – ou seja, antes do ano 1500.
A pesquisa, que teve início em 2013, estudou sítios arqueológicos da região entre os rios Tietê e Paranapanema. Após cinco anos, foi possível apontar padrões de ocupação para os grupos indígenas das tradições cerâmicas Tupiguarani e Itararé-Taquara, que permitem concluir que certas características geográficas e de clima tiveram papel determinante na escolha dos assentamentos. A partir do doutorado, Glauco produziu ainda um banco de dados sobre os sítios estudados, que pode ser útil para futuras pesquisas na área.
Os grupos indígenas para além do Paranapanema
Como explica Glauco, a bibliografia utilizada para a pesquisa revelou que o estado de São Paulo costuma ser deixado de lado nos estudos sobre tradições arqueológicas de grupos que produziam cerâmica. “Todo mundo usa o rio Paranapanema como limite norte das tradições. Existem hipóteses de chegada dos grupos ceramistas vindos da Amazônia para a região Sul-Sudeste, e o estado de São Paulo é sempre colocado à parte”. Este foi o primeiro problema que o trabalho buscou resolver, a escassez de informação sobre estudos de grupos ceramistas na região.
Para isso, o pesquisador foi até os principais locais que reúnem dados sobre os sítios arqueológicos paulistas: o Arquivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a Biblioteca do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP). Tendo em mente o recorte geográfico escolhido para estudo, selecionou 291 municípios e procurou informações sobre cada um. Desta forma, chegou a um total de 783 sítios de grupos cerâmicos cadastrados.
O objetivo principal da pesquisa era investigar onde e como ocorria a formação de fronteira entre grupos Tupiguarani e Itararé-Taquara. Os dados levantados permitiram mapear as áreas ocupadas por cada um, e assim ficou evidente que o limite da fronteira ficava ao norte do rio Paranapanema, contrariando o que afirmavam a maioria dos estudos anteriores.
As informações reunidas levaram a descobertas inicialmente não planejadas. Ao comparar os locais em que se encontravam os sítios arqueológicos, foi possível perceber certas coincidências entre eles. Por exemplo, os grupos da tradição Itararé-Taquara eram encontrados principalmente em áreas mais altas e frias, enquanto os da tradição Tupiguarani apareciam com maior frequência em áreas quentes e mais próximas do nível do mar. “A partir disso, a tese começou a ir pra um caminho que eu também não esperava. Nós estávamos procurando fronteira e encontramos padrão de assentamento”, conta Glauco. Daí em diante, outras características foram exploradas, como o tipo de vegetação em cada área, o clima, e a proximidade de rios ou do mar.
De modo geral, quando procura-se entender a formação de fronteiras entre grupos indígenas pré-históricos, a questão beligerante, ou seja, de guerra, é bastante considerada. Glauco escolheu propositalmente não trabalhar esse fator, partindo do pressuposto de que ele nem sempre é o mais relevante ‒ e é justamente neste sentido que sua pesquisa aponta, indicando que fatores geográficos e climáticos também tiveram sua importância na compreensão dos territórios.
O Sistema de Informação Geográfica
Ao trabalhar com uma enorme quantidade de dados, Glauco precisou percorrer um longo caminho antes de chegar à conclusão da pesquisa, o que só foi possível com a ajuda da tecnologia. Para poder cruzar as informações sobre os sítios, elaborou um Sistema de Informação Geográfica (SIG), software que permite reunir e representar visualmente características como clima, vegetação, tipos de solo e formações rochosas de um determinado local. Tudo isso foi feito graças ao aprendizado de aulas sobre geoinformação e análise de bancos de dados que o pesquisador buscou na Escola Politécnica (POLI), na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) e no Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Todos os sítios arqueológicos pesquisados foram incluídos no SIG. “Foi um avanço muito grande para a arqueologia paulista, porque não conhecíamos o que tinha nessa região do estado”, revela. “A conclusão a que cheguei é de que são quase 800 sítios só nessa região. E isso apenas de grupos ceramistas, não estamos falando de grupos pré-ceramistas, que são os produtores de pedra lascada, nem de sítios históricos, desde a colonização, 1500, até 2018”.
Com o SIG, existe ainda a possibilidade de trabalhar com modelos preditivos, como o mostrado na imagem abaixo. Ao estudar padrões geográficos nos assentamentos de cada grupo ceramista, é possível estimar em quais outras áreas existe maior probabilidade de encontrar novos sítios arqueológicos ainda não descobertos.
Os dados que Glauco sistematizou para sua pesquisa foram cedidos à Biblioteca do MAE e ao IPHAN, de modo que outras pessoas também possam se aproveitar deles em novos trabalhos.
De acordo com Rafael de Araújo Oliveira, da Superintendência do IPHAN-SP, os dados de Glauco foram somados aos de outros pesquisadores que realizaram levantamentos semelhantes, como parte de um projeto para revisar o cadastro das fichas de sítios arqueológicos no estado de São Paulo. Por enquanto, o projeto ainda não foi executado, mas continua nos planos do Instituto.
Sou o autor da pesquisa, agradeço pela divulgação do trabalho.