Pesquisa da EACH investiga ideais de mudança social difundidos nas escolas

Imagem: Reprodução

Uma dissertação de mestrado da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH-USP) tomou recentemente o conceito de mudança social como objeto de estudo. Desenvolvida em 2016 pela pesquisadora Helena Morita, também professora de Geografia formada pela USP, o estudo foi motivado pela visão nebulosa que costuma-se ter do assunto. “As pessoas têm diferentes ideias do que seria uma mudança social. A gente fala de uma forma super genérica, como se tivesse algo já pré-definido”, pontua. “Todos imaginam algo, mas eu ficava com a sensação de que cada um estava pensando em uma mudança social diferente.”

De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a educação básica visa ao desenvolvimento do educando, pensando o exercício da cidadania e a preparação para o mundo do trabalho. Nessa perspectiva, procura-se formar indivíduos que sejam capazes de interferir em seu meio social e, desse modo, transformá-lo. A pesquisa, intitulada Mudança social, cidadania e educação: conversas com professoras e professores do ensino básico em São Paulo, buscou tentar compreender o que a escola entende por esse impacto, estudando os discursos de professores do ensino básico sobre o assunto e ligando-os à ideia de ensino para a cidadania.

Para chegar a essas informações, Helena optou pela realização de duas rodas de conversa com professores da Rede Estadual de Ensino de São Paulo. “Achei que seria mais rico se os professores interagissem entre si durante as conversas”, diz. “As interações vão fazendo as pessoas repensarem, e o debate propicia que as pessoas mudem suas posições, demonstrem coisas que elas não estavam dispostas a demonstrar”. Todos os participantes eram professores do ensino básico – ou seja, do ensino fundamental e ensino médio. A análise de suas falas se baseou na utilização de mapas dialógicos, que auxiliam na identificação do que é mais recorrente nos discursos. A partir disso, por exemplo, o grupo de pesquisa pode notar que a mudança social estava bastante vinculada à noção de modificação na estrutura política.

Principais vertentes de pensamento

De acordo com o levantamento bibliográfico realizado pela dissertação de Helena, há duas grandes vertentes de compreensão da mudança social: o evolucionismo e o materialismo dialético. A primeira enxerga a sociedade como um organismo, que funciona segundo regras estabelecidas. “Assim como um organismo nasce, cresce, se desenvolve e chega a um determinado ponto, os evolucionistas acreditam que a sociedade também faria isso, em um melhoramento contínuo”, diz a pesquisadora.

Ainda que também entenda que a sociedade passa por diferentes estágios mais ou menos fixos, a segunda vertente se distancia do evolucionismo no que se refere ao fim desse processo. Enquanto a última defende que a sociedade evolui até atingir ao capitalismo industrial, tornando-se uma sociedade moderna e industrializada, o materialismo dialético defende que depois dessa fase, há ainda o comunismo.

Helena cita também outro modo de entender a mudança social que é menos difundido: o pensamento cíclico. Para esses pensadores, a sociedade não sai de um início e chega a um fim – ela se modifica constantemente, compreendendo que há também retrocessos e não apenas formas de aperfeiçoamento que rumam a um ponto de maior complexidade.

No estudo de Helena, no entanto, a maioria dos professores pensam que a mudança social seria atingida a partir do momento em que a sociedade se aperfeiçoasse. “Eles acreditam que é natural que todas as sociedades se desenvolvam até atingir um final. Esse final é uma coisa bem nebulosa para a maioria das pessoas. O que significa atingir essa sociedade ideal que é a sociedade modificada?”, questiona. Assim, esses profissionais demonstraram estar ligados às duas principais vertentes, mesclando as duas concepções, mesmo que indiretamente. “Eles se colocam dessa maneira: a gente tem que ajudar o aluno a se tornar um trabalhador, um cidadão que respeita as regras, que sabe jogar o papel no lixo”, afirma. “Em alguns momentos, eles também falam que esse aluno deve ser alguém que saiba que existe desigualdade e tal.”

Problematização das vertentes

A dissertação procurou, entretanto, problematizar esses conceitos mais amplamente difundidos. Ela utilizou a filosofia pós-estruturalista para pensar o que seria esse cidadão, em uma tentativa de desnaturalizar uma figura engessada e refletir sobre a multiplicidade de formas de exercer a cidadania. Helena questiona se é realmente possível dizer que existe um modelo único de sociedade, que abrace a diversidade de pessoas que a compõe. “É tentar tornar esse debate um pouco mais plural, não tão preso a categorias tão rígidas como ‘a mudança social é atingir o capitalismo industrial’. Eu não sei se isso vai ser bom para todos, mas também não quer dizer que não possa ser bom para algumas pessoas”, diz, completando que o estudo defende que não se deve buscar esses padrões fixos para os indivíduos, buscando uma maior pluralidade de formas de existência.

Os estudos pós-críticos em educação também foram importantes nas reflexões que a pesquisa se propõe a fazer. Durante o desenvolvimento da dissertação, foi possível notar que cada vertente que pensa a mudança social está atrelada a um ideal de cidadão e de sua formação. Os evolucionistas viam o cidadão modelo como uma pessoa racional, obediente e que acredita no Estado, nutrindo um amor a sua pátria. Para isso, estruturou-se o ensino tradicional, no qual, segundo Helena, há pouco espaço para a participação do aluno, além de eleger o conhecimento científico como inquestionável. Por outro lado, os materialistas dialéticos desenvolvem a educação crítica, em uma tentativa de formar indivíduos questionadores da ordem social.

Porém, a pesquisadora conta que nas últimas décadas, principalmente após os anos 70, começou-se a pensar que o currículo crítico talvez não seja suficiente para formar pessoas que consigam interagir na sociedade atual, principalmente por seu foco majoritário nas questões de desigualdade de classes. A ideia de desenvolver um currículo pós-crítico, por isso, é agregar outros assuntos à educação, como discussões de gênero, relacionadas à diversidade étnica, racial, geracional – sem deixar de lado questões ligadas à disparidade social.

“E a gente percebeu que, questionando esses modelos de mudança social e de cidadania, conseguimos nos libertar um pouco dessa angústia de atingir um objetivo que não é muito palpável”, afirma Helena. A angústia da qual fala é um dos resultados de sua pesquisa: os professores se veem responsáveis por formar pessoas que mudem a sociedade, mas não percebem transformações de fato ocorrendo. Muitos entendem a mudança social como possível quando a escola atua na formação de pessoas que possam eleger bons representantes, participar da política e entender o que está acontecendo nela. A pesquisa, porém, questiona essas ideias de certo modo. “A gente tentou demonstrar durante a pesquisa que, embora tenhamos nos acostumado a pensar que a sociedade vai evoluir e atingir o mundo melhor de que sempre falamos, talvez isso não possa ser alcançado da maneira como foi previsto nas teorias sociológicas que pensam a mudança social.”

Perante tal cenário, os professores apontaram que suas principais queixas estão ligadas à Academia e ao Estado. De um lado, por não receberem o suporte necessário para que os professores se formem enquanto profissionais preparados para atuar nessa realidade e, de outro, por não terem os meios e a estrutura necessários à concretização desses objetivos. “Então eles ficam em uma situação bem complicada, porque não têm apoio de nenhum dos lados e, ao mesmo tempo, são cobrados por toda a sociedade.”

Porém, para Helena, acaba-se sempre tentando buscar diferentes maneiras de melhorar e aperfeiçoar a educação para atingir esses objetivos, sem questionar se é de fato possível chegar a essa sociedade idealizada. O trabalho, nesse sentido, busca contornar a ideia de que a sociedade vai mudar em uma escala macro, defendendo o que chama de micropolítica – isto é, pensar mais nas ações que podem ser feitas no cotidiano, nas respectivas comunidades, mesmo que pareçam atos pequenos perante os problemas amplamente diagnosticados. Assim, há a possibilidade de notar mais resultados, motivando o engajamento das pessoas que ocupam esses espaços.

“Isso não quer dizer que estamos esquecendo a ideia de que a sociedade vai melhorar e vai mudar. Mas quer dizer que talvez a gente tenha que pensar também em mudanças mais pontuais, e não apenas naquelas que contemplem o país ou o mundo inteiro”, diz, defendendo a escola como um agente muito importante nesse sentido, mas reconhecendo que não há condições para que ela realize essa tarefa sozinha. “Talvez a gente não consiga fazer todo mundo se respeitar, mas a gente consiga fazer pessoas que convivem em uma escola se respeitarem. Isso já é uma mudança . E isso tende a ser desprezado.”

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