Mapeamento de áreas de pesca artesanal pode ajudar na luta de comunidades caiçaras tradicionais

Pesquisa relaciona o sistema de pesca artesanal da vila Barra do Una, comunidade tradicional do litoral sul de São Paulo, com instrumentos de gestão ambiental.

Grupo de pescadores artesanais [Imagem: Reprodução / Flickr]

Você sabe o que caracteriza uma comunidade tradicional? De acordo com a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), além da autodeclaração, são consideradas tradicionais aquelas populações que se organizam de forma diversa e fazem uso do território e dos recursos naturais para manter sua cultura, organização social, religião, economia e ancestralidade, transmitindo oralmente seus conhecimentos, inovações e práticas. 

Dentre as populações tradicionais, existem aquelas que apresentam um forte vínculo simbólico e econômico com o oceano: as comunidades caiçaras e de pescadores artesanais. As primeiras ocupam o litoral do sudeste brasileiro, também protegido por unidades de conservação de proteção integral e de uso sustentável dos recursos naturais. 

Se ao mesmo tempo as comunidades caiçaras ancestrais e as políticas públicas de gestão ambiental buscam preservar os recursos naturais, em muitos momentos elas também entram em conflito. Por vezes, os pescadores artesanais são marginalizados, deslocados e têm que lutar pela permanência e pelo direito ao manejo da região pesqueira. 

Foi pensando nessa relação que a pesquisa de mestrado desenvolvida pela oceanógrafa Mariana Martins, no Instituto Oceanográfico (IO) da USP e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), mapeou as áreas e tradições de pesca de grupos caiçaras da vila Barra do Una, em Peruíbe, no litoral sul de São Paulo. 

Habitada há mais de 100 anos, a comunidade se organiza num sistema de pesca tradicional, extremamente complexo e heterogêneo. “Durante a pesquisa, foram descritas 14 artes de pesca, algumas muito particulares, que precisam de condições específicas para acontecer. Os pescadores têm um conhecimento muito detalhado do próprio ambiente”, diz Mariana, em entrevista à AUN

A oceanógrafa descreveu também as condições e características específicas de cada uma delas, além de localizar as regiões onde a captura do peixe é feita. Conta que o território pesqueiro da Barra do Una se estende por quatro unidades de conservação: “Eu investiguei como funciona a pesca artesanal dentro da própria comunidade e como ela se relaciona dentro da gestão do estado”. 

Em 2013, a região foi englobada pela Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) da Barra do Una, que integra o Mosaico de Unidades de Conservação Juréia-Itatins. A RDS garante a exploração sustentável dos recursos naturais por parte da população. Entretanto, o território pesqueiro é limitado pela Estação Ecológica Juréia-Itatins, Unidade de Conservação (UC) de proteção integral, onde a presença humana é permitida somente para a realização de pesquisas.

Mosaico Juréia-Itatins [Foto: Governo do Estado de São Paulo/Boletim]
“É como se fosse o limite entre estados com leis diferentes: em um a pesca é liberada e no outro não”, explica. O cruzamento entre a UC e o território pesqueiro restringiu a atividade dos caiçaras, que tradicionalmente utilizavam o local antes da Estação ser criada. “Não existe um manejo que leva em consideração o território de captura da comunidade”, complementa a pesquisadora. 

Mariana conta que, dentro da limitação, alguns tipos de pescaria foram proibidos sem que os caiçaras fossem consultados e considerados. Os períodos de defeso — em que a atividade pesqueira é proibida ou controlada — não foram pensados dentro da realidade local. A fiscalização também passou a ser mais rígida na região. “São restrições que valem para o Brasil inteiro, mas que não batem dentro de algumas realidades específicas”, argumenta. 

Outros conflitos identificados pela pesquisa estão relacionados à autodeclaração do que é ser tradicional — um direito garantido por lei, que acaba sendo desrespeitado. Famílias consideradas “não tradicionais” pelo órgão gestor são expulsas do território e passam a viver às margens de cidades vizinhas. Além disso, o acesso ao atendimento médico, ao saneamento básico e outros serviços de infraestrutura essenciais também é precário na região. 

Por que mapear o território pesqueiro? 

Embora os pescadores artesanais e os caiçaras sejam considerados populações tradicionais pela Constituição, não há uma lei específica que assegure seu direito ao território e modo de vida, como acontece com os indígenas e quilombolas. Desde 2012, o Movimento dos Pescadores e Pescadoras Tradicionais (MPP) busca construir instrumentos legais para garantir a permanência das comunidades em seus territórios. 

O mapeamento dessas áreas pode auxiliar neste processo. “No momento em que são estabelecidos empreendimentos ou unidades de conservação nos locais de pesca artesanal, fica muito mais fácil assegurar que o território já era usado pelas comunidades tradicionais quando ele está mapeado”, explica Mariana. 

Reunir o conhecimento dos pescadores também pode ser importante para a gestão do próprio ambiente, dado que eles têm uma grande percepção da natureza, onde realizam a atividade pesqueira de forma sustentável. “Essas pessoas conhecem onde elas moram e é nesse sentido que se defende a permanência delas dentro de uma Unidade de Conservação. A conservação não é só das espécies que estão lá, é também influência do aspecto social e político da população”. 

Durante o processo de pesquisa, a oceanógrafa entrevistou pescadores da Barra do Una e utilizou a técnica do mapeamento participativo, em que os próprios moradores assinalavam as áreas de pesca e contavam sobre a atividade. O trabalho compreendeu a organização social da comunidade, as artes de pesca, o ambiente da atividade (que pode ser costeiro ou estuarino) e o que é pescado em cada área. 

“Meu trabalho não foi feito dentro de uma linha clássica da Oceanografia. Ele vem dessa perspectiva da relação integrada entre o homem e a natureza. Eu e minha orientadora assumimos como premissa a questão de que essas populações não são necessariamente inimigas da conservação. Pelo contrário, muitas vezes elas são mais aliadas do que qualquer outro setor ou grupo. O conhecimento desses pescadores é importante para a gestão da pesca, para que esses recursos não se acabem”, conclui.

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