
O estudo sobre a composição e evolução do veneno das serpentes da tribo Hydropsini, um grupo pertencente à família Dipsadidae, trouxe novas perspectivas para a ciência. Conforme Gabriel Sonoda, pesquisador e mestre pelo Instituto de Biociências (IB) da USP, o veneno dessa família é muito menos estudado que de Viperidae e Elapidae, principalmente por questões antropocêntricas — incidência e desfechos de acidentes. “Estudar esses grupos é algo interessantíssimo, porque comumente tem algo novo, o que abre margem para pensar em hipóteses sobre a evolução de várias perspectivas, usando o veneno, um fenótipo fascinante, como modelo”, comenta.
Mas, entre tantos grupos de serpentes pouco conhecidos, por que estudar os Hydropsini? O especialista explica que esse grupo tem uma biologia bem única: são um dos poucos grupos de serpentes do Brasil verdadeiramente aquáticas. “Outras cobras d’água dentro dos Dipsadidae são classificadas como semi-aquáticas, com uma dieta generalista, também se alimentando de peixes, mas em menor quantidade. Já os Hydropsini são classificados como aquáticas, sendo muito dependentes da água e com uma dieta muito rica em peixes.”
Segundo Sonoda, muitos estudos contam que a dieta das cobras costuma estar muito associada a seu veneno. Isso indica que, com uma dieta diferente de grupos próximos, o veneno de Hydropsini também teria uma diferenciação.
Veneno e evolução
Os vários estudos com veneno de Viperidae e Elapidae mostraram que existem algumas toxinas predominantes nos venenos das cobras. Sonoda afirma que esses componentes, quando começaram os estudos com Colubridae, Dipsadidae, Natricidae e outras espécies, também estavam no veneno dessas serpentes — são toxinas codificadas por genes homólogos aos presentes em Viperidae e Elapidae. Por outro lado, existem algumas toxinas que são únicas no veneno de Dipsadidae.
“Esse ‘únicas’, na verdade, se refere ao produto de vários processos evolutivos diferentes. Tivemos convergências evolutivas: toxinas que surgiram em Dipsadidae e agem de forma semelhante às toxinas de Viperidae, mas têm origens bem distintas. Esses casos de convergências vão mostrando padrões recorrentes sobre a origem dos genes de toxinas, mas também resultam em componentes únicos, com funções semelhantes”, informa.
O pesquisador afirma que o veneno de Hydropsini segue um processo distinto, cujas principais toxinas apresentam grandes mudanças com relação às de Viperidae. “Esse exemplo mostra como uma toxina pode mudar bastante. As lectinas do tipo C (CTL) de Hydropsini apresentam modificações importantes, principalmente na parte da toxina que está relacionada com sua função. Por isso, hipotetizamos que essa toxina tenha passado a ter uma função nova, sendo um ‘componente único’ dentro de Hydropsini, como uma resposta evolutiva ao ambiente aquático e a uma dieta focada em peixes.”
A presença desta toxina “específica” — grupo específico de CTL (as Snaclec), que originou as CTLs abundantes em Hydropsini e são conhecidas por terem um papel coagulopático (atrapalha a coagulação das presas) — é algo único, mas os processos evolutivos, de acordo com Sonoda, não parecem únicos. “Tudo indica que essa toxina surgiu a partir de uma duplicação gênica de uma CTL, que devia ser semelhante àquelas presentes nas demais cobras. A nova cópia do gene de toxina deve ter acumulado mutações que a tornaram diferente do gene original”, comenta. A hipótese, válida para a origem de novas características, não apenas toxinas, é de que as serpentes com a cópia de algumas dessas mutações vantajosas sobreviveram, enquanto as que tinham apenas o gene original ou a cópia sem mutações vantajosas devem ter morrido sem deixar descendentes.
Sonoda entende que um impacto da observação de Dipsadidae e Hydropsini é direcionar uma maior atenção aos grupos que não necessariamente provocam acidentes com humanos, o que causa, muitas vezes, a negligência de diversas toxinas, o que limita as percepções sobre os mecanismos de toxicidade. “Os estudos de Dipsadidae mostram quantas formas diferentes a natureza encontrou de conseguir efeitos bioquímicos semelhantes. Isso impacta não só a toxicologia, que busca entender a toxicidade destes componentes, mas também áreas como fisiologia, farmacologia e biologia evolutiva. No futuro, esses achados podem inspirar o desenvolvimento de novos fármacos, por exemplo.”
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