Resistência bacteriana é um dos grandes desafios contemporâneos da ciência

Pesquisadores discutem atual quadro epidemiológico das superbactérias e como enfrentá-lo

A resistência bacteriana poderá causar mais de 39 milhões de mortes até 2050. (Imagem: Reprodução / Pexels)

Por Jean Matheus, Isabel Briskievicz Teixeira, Marina Galesso e Matheus Bomfim

A resistência bacteriana é um dos principais desafios da saúde global, e quando a observamos a um nível nacional, encontramos uma série de barreiras técnicas e científicas que dificultam o diagnóstico e controle sobre a resistência bacteriana. Causada pelo descarte inadequado de antibióticos, uso compulsório na indústria alimentícia, além de falhas do sistema de saneamento básico, a urgência de combater esses problemas é destacada pela previsão de mais de 39 milhões de mortes até 2050 decorrentes dessas bactérias. 

Superbactérias se desenvolvem através de mutações genéticas espontâneas ou pela transferência de genes entre bactérias, o que lhes confere resistência a antibióticos. Essas mutações podem modificar alvos moleculares dos medicamentos, produzir enzimas que os destroem ou alterar a permeabilidade da membrana celular, impedindo a entrada do antibiótico. A pressão seletiva, causada pelo uso excessivo ou inadequado de antibióticos, favorece a sobrevivência e multiplicação das bactérias resistentes, permitindo que essas características sejam transmitidas para futuras gerações. 

Uma das principais barreiras atuais para enfrentar esse quadro de resistências bacterianas é a falta de dados sobre o tema. “Precisamos de formas de conseguir juntar dados, sequenciar genomas, identificar o fenótipo e genótipo dessas bactérias para criar um banco de dados e ajudar a identificar o perfil de resistência e quais genes que o sustentam”, explica Karine Dantas, química ambiental e doutoranda em farmácia na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.

“Precisamos de uma abordagem integrada para combater a resistência bacteriana, considerando a saúde humana, animal e ambiental”, conta Karine Dantas

Investimento em combate

Uma conduta que vem sendo tomada a fim de ‘driblar’ a resistência bacteriana é realização da terapia medicamentosa que, ao observar uma bactéria que oferece muita resistência à determinado antibiótico, ao invés de fazer a substituição do antibiótico por outro, opta pelos inibidores que foram criados para a enzima que a bactéria produz que leva à resistência ao antibiótico. “Às vezes não é só pensar no outro antibiótico, mas pensar em uma outra combinação”, esclarece Karine.

Um problema na tentativa de estudar melhor sobre a resistência bacteriana, numa ótica que vai até além dos fármacos, está na própria legislação brasileira, “a gente tem legislação que fala de quantidade, por exemplo, para E. coli, coliformes e salmonella, mas não olha para bactérias resistentes nos alimentos também”, completa a farmacêutica.

Segundo Nilton Lincopan, biólogo e professor no Instituto de Biologia da USP, esse problema é agravado pela falta de interesse da indústria farmacêutica em investir no desenvolvimento de novos antibacterianos. “A indústria farmacêutica não tem muito estímulo para tentar pesquisar novos antibióticos. Para uma pesquisa desse nível, você precisa de muito recurso, e a pesquisa é longa, demora 10, 15 anos”, detalha.

 “Muitas vezes, quando você está na última fase, percebe que existe algum problema, como o grau de solubilidade do antibiótico ou que o micro-organismo desenvolve resistência muito rápido ao antibiótico que foi criado”, continua. Esses fatores tornam o investimento em antibióticos arriscado e pouco lucrativo. O pesquisador avalia que a indústria prioriza medicamentos mais rentáveis e com retorno garantido.  

Um problema antropogênico

Embora antibióticos tópicos ou bacteriófagos possam ter utilidade em tratamentos localizados, como infecções, Lincopan critica o uso banalizado dessas tecnologias fora do âmbito terapêutico. O ponto levantado é o uso antropogênico de antibióticos, especialmente na produção de animais para consumo humano. Lincopan alerta para o uso exagerado na criação de frango, na qual criadores recorrem ao uso preventivo desses medicamentos para compensar as condições insalubres de criação intensiva. 

“Na criação de frangos, os antibióticos são amplamente utilizados não para tratar infecções, mas para prevenir doenças que surgem por causa da superlotação”, explica Nilton Lincopan. 

Para ele, a banalização do uso desses compostos é um risco à saúde por estimular um futuro de epidemias de superbactérias. Ele também alerta para os impactos no consumo humano destes animais que foram criados com doses altas de medicamentos. “Se você come carne ou frango com resíduos de antibióticos, isso pode afetar sua microbiota. Não são grandes quantidades, são concentrações sub-inibitórias, mas é acumulativo. Com isso, você pode criar resistência na sua própria microbiota,” detalha.   

De acordo com Maria Tereza Pepe Razzolini, médica professora na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, o uso extensivo de antibióticos em animais, como frangos e bovinos, gera um risco significativo. “Os dejetos dessas criações nem sempre são tratados adequadamente, o que permite que antibióticos e bactérias resistentes atinjam corpos d’água. Esse problema se estende ao escoamento superficial em áreas de pasto, especialmente durante chuvas intensas”, elucida.

O saneamento básico

Lincopan chamou atenção, por meio de uma anedota cotidiana, para produtos que prometem eliminar bactérias que não precisam ser eliminadas. O pesquisador conta que, ao procurar um talco desodorante para os pés, notou que todos os produtos disponíveis prometiam “matar 99,9% das bactérias”. Ele destacou que, em muitos casos, produtos com essa característica não são necessários, a eliminação constante dessas bactérias benéficas enfraquece nossas defesas naturais e reflete uma obsessão cultural em eliminar qualquer micro-organismo, mesmo sem necessidade.

Compostos como os quaternários de amônia, amplamente utilizados em produtos de limpeza e higiene pessoal, inevitavelmente escorrem pelo ralo durante o banho ou a lavagem de objetos, chegando a corpos d’água como rios urbanos. Isso pode destruir microbiotas essenciais de outros ecossistemas, prejudicando a sobrevivência de organismos locais e alterando o equilíbrio ambiental. Segundo Nilton, além de estimular a resistência bacteriana, o uso indiscriminado desses compostos representa um problema ecológico profundo, amplamente ignorado.

A relação entre saneamento precário e resistência bacteriana é destacada por Maria Tereza, que alerta: “Hoje, vivemos em um país onde a cobertura de coleta e tratamento de esgotos é muito baixa. Os nossos mananciais estão altamente impactados por águas residuais, que são o reflexo do status epidemiológico da população. Se uma população consome muito antibiótico, esses resíduos chegam aos recursos hídricos”

“Vemos investimentos pontuais, como na universalização do esgotamento sanitário, mas faltam planos de segurança hídrica e continuidade nas ações.  Nosso sistema é frágil, e isso se torna evidente em momentos de crise”, critica Lincopan.

Esse ciclo se repete novamente na agricultura, com a irrigação de alimentos consumidos crus, como verduras e legumes. “Encontramos resíduos de antibióticos em corpos d’água e até bactérias resistentes, inclusive em águas costeiras e praias”, acrescenta. Isso revela um ciclo complexo em que contaminantes se dispersam.

A importância do monitoramento

O monitoramento é essencial para controlar a resistência bacteriana, especialmente no ambiente hospitalar, onde o problema atinge níveis alarmantes. Segundo Milena Dropa, farmacêutica e bioquímica professora na FSP-USP, “a Organização Mundial da Saúde atualizou em 2024 as bactérias mais perigosas, como a KPC, que é praticamente resistente a todos os antibióticos”. A presença dessas bactérias em ambientes hospitalares aumenta os riscos para pacientes e eleva significativamente os custos de internação.

Gregory Melocco, biólogo e doutorando no IB que trabalha com monitoramento genômico de Staphylococcus aureus, ressalta a importância de entenderem as variações genéticas para combatê-las. “Os dados obtidos com o sequenciamento do genoma podem ser cruzados com as características fenotípicas e com as informações epidemiológicas desses patógenos, permitindo a investigação de surtos, padrões de disseminação dessas bactérias”, conta. 

“Apesar das vantagens, o sequenciamento ainda é caro e exige profissionais treinados para realizar os processos, o que impõem barreiras pro seu uso na vigilância e na rotina hospitalar”, alerta Gregory Melocco.

A pesquisadora Milena também enfatiza a necessidade de maior divulgação sobre a gravidade da resistência bacteriana. “Muitas pessoas, mesmo as mais esclarecidas, não têm noção do problema. Essas infecções podem ser fatais, mas há pouco destaque para essa questão na grande mídia”, afirma

A educação como via

Apesar de novos fármacos serem essenciais, o futuro não depende somente deles. “A conscientização e a correta gestão do uso dos antibióticos na clínica humana e animal, e de outros antimicrobianos em diferentes setores da atividade humana (indústrias, agropecuária, etc.) serão fundamentais para combater o desenvolvimento da resistência”, pontua Melocco.

“Falta muito educação para a população. O médico prescreve o medicamento, mas o paciente às vezes não entende a prescrição e usa de maneira errada, não respeitando os horários para tomar a medicação”, reforça Milena para esclarecer que o problema também tem escala individual. 

“Além disso, muitas vezes o antibiótico é tomado de forma inadequada. Algumas pessoas tomam antibióticos para infecções virais, o que não tem efeito, e isso só contribui para o aumento da resistência”, esclarece Melocco. 

Apesar do tema ser urgente e os dados alarmantes, a farmacêutica crítica que “o problema da resistência bacteriana deveria ser mais divulgado. A resistência aos antibióticos é algo sério, mas não adianta querer educar as pessoas se isso não é amplamente divulgado”. 

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