Inteligência Artificial: amiga ou inimiga?

Agência Universitária de Notícias discute os prós e os contras da IA

Cada vez mais ser humano e tecnologia se unem no cotidiano. Mas até que ponto isso é positivo? [Imagem: Freepik]

Por Felipe Velames, Guilherme Valle, Natália Milena, Osmar Neto e Ricardo Thomé

Escreva uma poesia sobre amor com a voz de Fernando Pessoa. Pinte uma tela sobre Paris com o estilo de Tarsila do Amaral. Faça uma receita com o que tem na minha geladeira. Esses foram apenas alguns dos pedidos que brasileiros fizeram ao chamado ChatGPT, uma inteligência artificial (IA) que interage com humanos e se popularizou no começo deste ano.

Brincadeiras à parte, o fenômeno do ChatGPT é uma das maneiras de perceber a introdução da IA na vida dos seres humanos, uma inserção de sistemas automatizados que simulam a inteligência humana no cotidiano. Mas tanta dependência tecnológica preocupa, afinal, até que ponto a humanidade está segura com essas máquinas e, sobretudo, quais as consequências dessa interação humano-máquina?

Era uma vez uma tecnologia

Para entender melhor a participação da inteligência artificial no cotidiano, deve-se voltar no tempo a fim de conhecer a história desta tecnologia. A IA surgiu em meados da década de 1940 e 1950, principalmente, com o auxílio do pai da computação Alan Turing.

A área avançou lentamente durante as décadas subsequentes, devido a limitações técnicas da época, como a escassez de memória dos computadores. O cenário mudou a partir da década de 2010, quando ocorreu um “boom” no desenvolvimento da IA. 

Para entender melhor, a Agência Universitária de Notícias (AUN) conversou com o professor da Escola Politécnica da USP, Fábio Cozman. Segundo ele, o salto tecnológico recente se deve a uma maior base de dados dos equipamentos atuais, que possibilitou mudanças significativas da IA na atualidade.

Fábio Cozman, presidente do Centro para Inteligência Artificial da USP (C4AI) [Imagem: Reprodução/Acervo Lattes]
“Nos últimos anos se viu o aparecimento de modelos baseados em dados que superam em muito o tamanho usual dos modelos mais tradicionais.” comenta Fábio. “Por exemplo, modelos que produzem palavras a partir de sequências de palavras são construídos usando bilhões de documentos; o ChatGPT é um serviço bastante popular baseado em um modelo gigantesco desse tipo.” De maneira geral, ele possui um olhar otimista sobre a tecnologia por conta da sua capacidade de aumentar a produtividade humana, possibilitando benefícios na vida cotidiana.

Inteligência artificial na medicina: caminho sem volta

Como a IA atua na saúde

Professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), Alexandre Chiavegatto Filho fundou, em 2017 o Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde (LABDAPS), um centro de pesquisa que desenvolve algoritmos de inteligência artificial para melhorar as tomadas de decisão na área da Saúde. No início da pandemia de Covid-19, quando os protocolos ainda não haviam sido definidos com precisão e os resultados dos exames demoravam para sair, o laboratório desenvolveu algoritmos que propiciavam diagnósticos e prognósticos mais rápidos. A análise se dava com base na coleta de dados de vários pacientes, que serviam como exemplo e indicavam para a inteligência artificial quais os casos prováveis de serem positivos ou negativos, graves ou brandos, por exemplo.

Alexandre Chiavegatto Filho (foto) é formado em Economia pela FEA, fez seu doutorado na FSP, seu pós-doutorado em Harvard e atua, hoje, no Departamento de Epidemiologia da FSP, como professor livre-docente [Imagem: Reprodução/LinkedIn]

Resistência e evolução

Embora o professor exalte a aplicação dos dados na medicina, ele ressalta que isso é um fato recente e que a inteligência artificial sofreu resistência de parte da comunidade científica. “Hoje, você vai em congressos médicos e vê uma grande quantidade de profissionais defendendo o uso de dados. Anos atrás, era um público hostil”. Chiavegatto também faz essa observação no que diz respeito ao papel da imprensa, ao comparar a quantidade de dados presentes na cobertura da pandemia de Covid-19 àquela dos surtos de zika vírus, anos antes: “Qualquer portal de notícias trazia dados como o número de casos, a taxa de letalidade, a média móvel de casos e de mortes, a proporção de vacinados… algo que não aconteceu em 2015 e 2016, por exemplo. Era difícil conseguir esses dados”, completa.

A principal alegação dos profissionais que não têm confiança na IA está no fato de que ela interferiria no “feeling” do médico ao tirar suas conclusões e tomar suas decisões. No que diz respeito a esse fator, o diretor do LABDAPS explica que o algoritmo não interfere na tomada de decisão; ao contrário, ele fornece mais subsídios para que o médico entenda a situação. “As tomadas de decisões incluem fatores que interagem de uma forma muito complexa e que às vezes passam despercebidas pelo cérebro humano, mas não passam pelos algoritmos de inteligência artificial”. 

Sobre o “feeling”, o professor explica que a atuação do algoritmo permite que o mecanismo crie, também, a sua “intuição”, pois reúne exemplos anteriores, assim como fazem os profissionais da saúde — com a diferença de que os algoritmos são menos falhos e conseguem aprender com uma amostra muito maior de pacientes.

Riscos

Indagado pela reportagem da AUN a respeito de eventuais riscos do uso da IA na medicina, Chiavegatto explica que eles existem, mas estão relacionados à qualidade da coleta de dados. “Se os dados estiverem errados, seja na coleta, seja na digitação, seja por haver preconceitos embutidos, há um problema. Se o algoritmo aprender com dados ruins, ele vai gerar um resultado ruim”. O desafio seria, portanto, na visão do professor, investir na coleta de dados para que a qualidade melhore e as IAs atuem com melhor embasamento.

Inteligência artificial no cotidiano

O diretor do LABDAPS destaca a presença da inteligência artificial em outras áreas da sociedade e lembra que, embora a discussão possa ser recente, “os algoritmos já dominam o nosso dia a dia, do momento em que acordamos até quando vamos dormir”. Ele descreve uma rotina na qual uma pessoa acessa uma rede social e vê conteúdos que a interessam, sai para trabalhar e utiliza o GPS para seguir um caminho mais rápido e, no trabalho, usa mecanismos de pesquisa para chegar às respostas de que precisa. Ao chegar em casa, acessa um serviço de streaming e assiste a um filme. Todo esse ciclo teve o filtro do machine learning.

“Os algoritmos estão permitindo uma melhor utilização dos nossos dois bens mais preciosos: o tempo e o dinheiro, para que sobre mais tempo e dinheiro para fazer o que o algoritmo não faz, que são as coisas que nos tornam verdadeiramente humanos, como abraçar as pessoas que amamos e praticar esportes”. 

O professor termina enfatizando que, com a chegada de mecanismos de IA como o ChatGPT, houve uma mudança na percepção geral a respeito da presença dos algoritmos no cotidiano, que já existia, mas não recebia tal associação com frequência. “Antes, as pessoas só usavam passiva e indiretamente os algoritmos. Agora, elas estão ativa e diretamente pedindo ajuda para a inteligência artificial. Mas elas muitas vezes não se davam conta de que já estavam pedindo ajuda para a inteligência artificial o dia inteiro”, completa.

Na contramão do entusiasmo

O avanço da inteligência artificial suscita uma série de implicações morais e éticas. Em artigo publicado na revista Contextura, Antônio Bahury Lanna demonstra que o melhor uso da inteligência artificial depende da compreensão da maneira como ela nos afeta: “Só assim podemos nos organizar, como sociedade, para potencializar os impactos positivos e minimizar ou suprimir os impactos negativos de suas aplicações.”

Na contramão do entusiasmo com o avanço da IA está o receio de que as novas tecnologias sejam capazes de tornar a humanidade obsoleta. Ou seja, “as máquinas seriam capazes de substituir os humanos em toda e qualquer tarefa e, junto com a substituição, se esvai o propósito da existência humana”, explica Antônio.

Na indústria, a inserção de novas tecnologias é responsável pela eliminação e criação de novos postos de trabalho. As novas tecnologias permitem o aumento da produtividade, ao mesmo tempo em que geram demanda por emprego em setores inéditos no mercado. 

As tecnologias advindas da inteligência artificial beneficiam trabalhadores de alta qualificação. Por outro lado, trabalhadores de baixa e média qualificação são prejudicados pela possibilidade de serem dispensados ou substituídos por máquinas responsáveis pela automatização de suas funções.

Para Marcelo Finger, do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP), “o pior que pode acontecer é deixarmos a inteligência artificial na mão de cinco grandes empresas, chamadas de Big Techs. Projetar um futuro pela inteligência artificial significa explorar os dados que temos para gerar soluções interessantes para problemas que ainda não sabemos enfrentar. Desenvolver uma metodologia que permita visualizar o potencial, planejar a coleta dos dados e efetivamente implementar a coleta, limpeza e processamento desses dados”.

Marcelo Finger (foto), do IME-USP, teme o monopólio da inteligência artificial pelas Big Techs [Imagem: Divulgação/Fapesp]

IA no mundo do trabalho

A discussão em torno dos impactos do emprego da inteligência artificial em tarefas antes realizadas por humanos não é nova, em 2013, os pesquisadores de Oxford: Carl Benedikt Frey e Michael Osbourne publicaram um artigo intitulado The Future of Employment: How Susceptible Are Jobs to Computerization em que analisam quais ocupações estariam mais ou menos suscetíveis à substituição por computadores.

Na ocasião, os pesquisadores chamaram atenção para os avanços tecnológicos que tornam possível a substituição do trabalho humano em tarefas intelectuais que não são necessariamente repetitivas e baseadas em regras fixas. Além disso, Carl Frey e Michael Osbourne também ressaltam as crescentes habilidades mecânicas dos robôs, o que leva ao avanço da automação também sobre tarefas manuais.

O artigo classifica um grande leque de ocupações em diferentes níveis de risco, que indicam a propensão que cada ocupação tem para ser substituída por automação – e a avaliação é bastante pessimista – segundo os pesquisadores, nos próximos vinte anos, 47% dos empregos nos Estados Unidos correm o risco de desaparecer.

O que torna a previsão ainda mais alarmante, é que boa parte das ocupações substituíveis estão no setor de serviços, responsável pela maior parte dos empregos gerados nos Estados Unidos nas últimas décadas. 

Existem outros aspectos que apontam para um horizonte menos sombrio: as novas tecnologias de inteligência artificial também devem ser capazes de criar novos empregos. O Future of Jobs Report, do Fórum Econômico Mundial traz um relatório baseado em uma pesquisa respondida pelos maiores empregadores do mundo sobre as tendências para o trabalho no futuro, os respondentes são responsáveis por 11,3 milhões de trabalhadores, em 27 indústrias, espalhadas por 45 economias de todas as regiões do planeta.

O relatório traz um olhar relativamente otimista acerca dos potenciais impactos da IA nos empregos ao redor do mundo, isso porque, apesar da tecnologia ter o potencial de fechar postos de trabalho, as empresas se mostraram mais focadas em treinar sua força de trabalho para utilizar a inteligência artificial em seu cotidiano profissional.

Além disso, nos próximos cinco anos, inteligência artificial e big data devem ser o tema de mais de 40% dos programas de treinamento em tecnologia das empresas sediadas nos Estados Unidos, China, Brasil e Indonésia.

Diferença líquida entre a proporção de organizações que esperam que a adoção da IA crie e destrua empregos nos próximos cinco anos. A parcela de organizações que prevê impacto neutro não foi utilizada no cálculo. Gráfico elaborado com dados do Future of Jobs Report – World Economic Forum

IA, mídia e regulação

Apesar da maior parte das organizações apostarem que a inteligência artificial deve trazer crescimento na oferta de empregos, há setores, como os de mídia, entretenimento, esportes e o imobiliário, em que a expectativa é que o número de vagas diminua.

Um desafio importante para esses setores está nas chamadas inteligências artificiais generativas – aquelas que são capazes de entregar ao usuário textos e imagens. Sobre isso, o professor Antonio Rodrigues de Freitas Júnior, da Faculdade de Direito da USP, chama atenção para as dificuldades criadas por essa nova modalidade de trabalho intelectual: “todo trabalho criativo, seja o trabalho da criação artística, trabalho da criação de marketing, de design, de criação gráfica, de criação de texto, tudo isso passa a ser posto em questão sobre o ponto de vista da sua autoria”.

O professor ressalta que o desafio é saber “em que medida o tomador desse trabalho estará remunerando um trabalho feito por alguém e em que medida está remunerando o trabalho feito pelo chat de inteligência artificial” [Imagem: Divulgação/Faculdade de Direito-USP]
Outro problema para o qual o professor e pesquisador chama atenção é o da disseminação de notícias falsas geradas através da IA – “como coibir a produção de textos, de construções de imagem, de áudios falsos com a finalidade de colocar em questão biografias, ações, condutas e manifestações”.

Contudo, a tecnologia parece ter avançado mais rápido do que o direito nessas questões. O professor explica que esses problemas poderiam ser enfrentados, no caso brasileiro, pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), mas ressalta que ela não foi pensada para isso e portanto essa não seria uma solução ideal.

O docente conclui que “a comunidade jurídica internacional está se ocupando disso, o que torna o assunto importante e atual”.

Perigos

Em entrevista à AgênciaBrasil, o professor de sociologia econômica, da Universidade Federal do Paraná, chamou a atenção para os riscos que o monopólio de dados por parte das Big Techs, por exemplo, pode ocasionar.

“Essa nova economia parece muito mais tendente à concentração e centralização. É muito mais difícil vencer barreiras monopolistas neste setor do que em outro. Essa monopolização dos dados significa uma monopolização da capacidade de monetizá-los e gerar novos avanços tecnológicos com base neles.  A disputa pelos dados é uma disputa central e parte considerável destes serviços está fazendo pelo mundo todo”.

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