Crianças desenham durante a pandemia

Pesquisadores da USP analisam desenhos de crianças do distrito de Jaguaré, São Paulo, feitos durante a Covid-19

Vista aérea de parte do distrito de Jaguaré. [Jorge Maruta/Jornal da USP/USP Imagens]

Em 2020, algumas famílias do Jaguaré se depararam com objetos inusitados nas cestas básicas que receberam: caixas de giz de cera, pacotes de folhas sulfite e uma carta. Esta última convidava as crianças a desenharem suas famílias e escolas em tempos de pandemia, e a descreverem, no verso da folha, seus desenhos. As artes infantis, posteriormente, foram recolhidas por Rosa Iavelberg, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), e Leandro de Oliva Costa Penha, pesquisador e doutorando em Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da mesma universidade. As análises dos desenhos deram origem ao artigo Desenhos e narrativas de crianças na pandemia, publicado originalmente no periódico Convenit Internacional em 2021, e republicado em 2022 na coletânea Scripta Varia do Centro de Estudos Medievais – Oriente & Ocidente (Cemoroc) da FEUSP.

O ímpeto inicial veio do movimento Mobiliza Jaguaré, capitaneado por Uridéia Andrade, do buffet Flor de Mandacaru, e pelo mesmo Leandro Oliva, diretor do Projeto Palco. A ideia inicial, posta em prática a partir de 30 de março de 2020, era fornecer cestas básicas e marmitas a moradores e famílias de Jaguaré durante a pandemia de Covid-19. Os kits de desenho passaram a fazer parte das cestas assim que a professora Rosa se inteirou do movimento: a entrega de cestas básicas podia ser acompanhada de um pouco de arte.

Os desenhos, entretanto, não deveriam ser imposição, mas um convite à arte. “Primeiro ouvimos, conversamos com as lideranças [do Jaguaré para saber] se isso era possível, se era interessante, se ia somar àquele momento”, lembra Leandro. A partir de uma campanha de crowdfunding, conseguiram angariar fundos suficientes para os 310 kits entregues. Leandro e Rosa receberam 280 desenhos, feitos por crianças de 4 a 12 anos – e que puderam surpreender os pesquisadores.

Rosa salienta que a ideia não era dar voz às crianças, mas partir do princípio que elas tinham voz — daí a importância também da narrativa elaborada pelas crianças nos versos das folhas. “A gente considerou a gênese do desenvolvimento da arte da criança, que é uma área que a gente domina por ser arte-educador, e associou a narrativa da criança, que é uma outra linguagem, à linguagem visual”, explica a professora. “Acho que isso que trouxe essa riqueza que a gente encontrou”.

Riqueza que tomou muitas formas. Os pesquisadores observaram, por exemplo, que, quanto menores as crianças, mais o desenho se voltava ao sonho, a “uma realidade fantástica, onde tudo poderia se realizar conforme a necessidade das crianças”, nas palavras de Rosa. Mas, “quando elas narravam, vinha a realidade — não pesada, mas o que estava acontecendo com elas: que estava tendo cuidados, que não podiam sair”. Já crianças maiores pensavam sobre o futuro da pandemia, com esperança ou não; através das narrativas, relatavam as faltas que sentiam “da escola, dos passeios, da cidade, dos equipamentos urbanos, dos professores, dos amigos — quer dizer, [viam] a escola e a cidade como um espaço de socialização”.

Os pesquisadores não creem que se possa generalizar todos os achados e aplicá-los a outros lugares: as crianças do Jaguaré têm as suas formas de se expressar, de ver a pandemia e de viver suas infâncias. Para Rosa, se tem algo a ser generalizado, isso é “o princípio de interação da criança em relação à sua arte; esse respeito que a gente tem que ter por aquilo que ela cria e por aquilo que ela diz sobre o que ela fez.”

Rosa e Leandro planejavam fazer uma exposição dos desenhos nas escolas; como a pandemia continua, esse plano ainda não seguiu em frente, mas continua vivo. Por ora, ficam os desenhos e a pesquisa como marcas desse passado recente e da importância da arte na vida das crianças —, ou, como resume Leandro, “a gente tem fome do estômago, mas tem fome da mente, tem fome da alma. E a gente não pode deixar isso separado”.

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