Desastres ambientais para muitos e lucro para poucos: a mineração no Brasil

Empresas mineradoras aproveitam a falta de uma política nacional efetiva para o setor, o que gera impactos econômicos, sociais e ambientais negativos para o País

Imagem: Colagem/Jorge Fofano Junior.

Por Ivan Moraes Conterno, Jorge Fofano Júnior, Juliana Alves, Luiz Attié, Patrick Fuentes e Sebastião Moura

No último dia 6 de dezembro, o município de Barcarena (PA) sofreu um novo desastre ambiental, após um incêndio de largas proporções atingir um depósito de produtos químicos industriais que pertence à mineradora francesa Imerys. Em um vídeo gravado na noite do incêndio, moradores do bairro industrial, onde está situada a planta da Imerys, e da Vila do Conde, bairro contíguo, relataram o avanço de uma fumaça espessa e fétida pelas ruas, enquanto se queixavam que nenhuma medida emergencial havia sido tomada pela empresa. 

Após uma semana do incidente, a prefeitura de Barcarena estima que 72 pessoas intoxicadas procuraram atendimento, apresentando sintomas leves a moderados. Mas a preocupação dos moradores ainda não terminou: novos registros em vídeos postados nas redes mostram uma água de cor branca saindo das torneiras; córregos amazônicos da região, chamados de igarapés, também foram contaminados com a mesma coloração. 

A Imerys, por sua vez, emitiu nota apontando que o incêndio atingiu somente uma pequena parte do estoque de hidrosulfito de sódio, substância usada no tratamento do caulim, matéria-prima amplamente utilizada na construção civil e cuja comercialização a Imerys é líder mundial. A multinacional se limitou a mencionar efeitos imediatos da inalação da substância, sem prestar informações sobre possíveis efeitos de longo prazo para a saúde humana.

Procurada por esta reportagem para comentar sobre as potenciais consequências ambientais do incêndio, a professora Pérola de Castro Vasconcellos, do Instituto de Química da USP infere: “Do ponto de vista ecológico, o hidrossulfito pode formar chuvas ácidas, através da reação com a água presente na atmosfera, e gerar diversos problemas à fauna e à flora”.

Não foi a primeira vez que a multinacional com sede em Paris esteve associada a ocorrências dessa natureza no município portuário. Segundo compilação feita pelo movimento socioambiental Barcarena Livre, a empresa foi responsável por, pelo menos, 14 desastres ambientais anteriores, como o rompimento de barragens de rejeitos da mineração de caulim (cinco vezes), vazamento de dutos (quatro vezes); contaminação de poços e lençóis freáticos (duas vezes), tombamento de um caminhão com caulim (uma vez) e lançamento de fuligem (duas vezes).

Além da francesa Imerys, também marca a memória da população de Barcarena a mineradora de bauxita Hydro Alunorte, braço da norueguesa Norsk Hydro mineradora que possui o governo da Noruega como sócio majoritário. Em fevereiro de 2018, conforme noticiou a grande imprensa brasileira e internacional à época, a Alunorte foi responsável por um desastre ambiental com repercussões globais: efluentes contendo níveis altos de alumínio, chumbo e sódio foram despejados, sem tratamento, em córregos que desembocam no Rio Pará e seus tributários. 

À época, o portal Brasil de Fato teve acesso ao Termo de Ajuste de Conduta (TAC), contrato de obrigações celebrado entre a Hydro Alunorte, o Ministério Público Federal do Pará (MPF-PA) e o governo do Estado. O TAC impunha a redução de 50% da capacidade de produção de minério, investimento de R$ 65 milhões em medidas emergenciais e pagamento de R$670 às famílias atingidas por cinco meses. No entanto, o acordo recebeu críticas por parte de representantes populares que participam do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), porque delegou a uma empresa contratada pela Alunorte o cadastramento das famílias afetadas, permitindo o pagamento do auxílio a apenas 1.500 famílias, número que representa somente as vítimas diretas do rompimento da barragem de rejeitos. 

Segundo o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), instaurada naquele mesmo ano para investigar a conduta da Hydro Alunorte no incidente de março, cerca de 15.000 a 20.000 famílias foram potencialmente atingidas pela contaminação da água da bacia hidrográfica do Rio Pará. Três anos após, moradores de Barcarena continuam em guerra contra a Hydro Alunorte. Como mostra reportagem do Financial Times, de março de 2021, 40.000 pessoas entraram com uma ação contra a Norsk Hydro em tribunal na Holanda, país onde estão as matrizes das subsidiárias acusadas. 

A ação coletiva, capitaneada pelo advogado Pedro Martins, do escritório PGMBM, pretende responsabilizar a Norsk Hydro por danos à saúde, retratados através do nascimento de bebês com malformações congênitas, além da destruição de oportunidades econômicas e degradação do meio ambiente causado pelo descarte incorreto de rejeitos da mineração.

Rejeitos da mineração já levaram à condenação de países-membros da UE na Corte Europeia de Direitos Humanos

A posição de destaque hoje creditada à União Europeia (UE) no esforço por um desenvolvimento mais sustentável está amparada na criação de um corpo de leis e regulações ambientais de alta complexidade. Através de Diretivas, um tipo de legislação supranacional com efeito vinculante à legislação de cada país, o Parlamento Europeu e o Conselho de Ministros Europeus conseguem estruturar a política ambiental a ser seguida pelos 26 Estados. Nas últimas duas décadas, mais de 700 Diretivas foram promulgadas sobre diversos temas ambientais.

De acordo com a professora Yvonne Scannell, reconhecida advogada e pesquisadora do Direito Ambiental, em artigo denominado ‘The Regulation of Mining and Mining Waste in European Union’, o distanciamento da elaboração de leis ambientais da arena nacional tornam os legisladores menos suscetíveis aos interesses de empresas e agentes econômicos locais contrários à aprovação de determinada diretiva. Desta maneira, há uma maior “qualidade” da legislação ambiental.

Com relação à atividade mineradora e gerenciamento de rejeitos nos Estados-Membros, o conteúdo da legislação europeia sobre este tema vai no sentido de assegurar que a atividade econômica não se sobreponha à violação do direito à saúde, à segurança e aos direitos humanos. Seis dos últimos 18 julgamentos concluídos na Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) tinham como cerne o descarte incorreto de rejeitos minerais.

Por ocasião de não cumprirem com suas premissas regulatórias e fiscalizatórias, Estados-Membros como Itália, Espanha e Romênia foram penalizados pelo órgão judicial e arcaram com consequências políticas e financeiras.

No caso italiano, uma planta industrial depreciou o valor da propriedade de uma cidadã, cerceando seu “direito à luz e à visão”, como indica a sentença baseada no Artigo 1 da Convenção Européia de Direitos Humanos. Em outras decisões do colegiado, foram evocados os Artigos 2 (direito à vida) e o Artigo 8 (direito à privacidade e à vida familiar) para assegurar que os cidadãos europeus não tivessem sua saúde exposta às áreas de risco ambiental, como aquelas que tratam de rejeitos de mineração. 

Desde 2006, é a Diretiva 2006/21/CE que determina os pilares do controle e descarte de rejeitos da indústria mineradora dentro dos territórios dos países-membros da União Europeia. Entre outros pontos, o texto é fortemente regulador no âmbito da concessão de licenças ambientais para operadores de minas e determina, com clareza, que todo o processo de licenciamento precisa ser conduzido sob o escrutínio público.       

A legislação e a jurisprudência europeia sobre o tema de rejeitos da mineração não se compatibiliza com as ações de companhias como a francesa Imerys – que opera há 10 anos no Brasil com licença sob regime de análise, algo que seria inimaginável sob a lei da UE – e a norueguesa Norsk Hydro – que, segundo  o professor e geólogo Luiz Jardim Wanderley, da Universidade Federal Fluminense (UFF), já admitiu não operar suas instalações no exterior pelos moldes da lei ambiental do país nórdico, pois assim “perderia competitividade no mercado”. 

A disparidade do aparato regulatório e fiscalizador entre países do Norte e Sul global tem gerado uma miragem onde governos e transnacionais apelam e endossam o discurso ético e ambiental ao mesmo tempo que são partícipes em desastres ecológicos e violação dos direitos humanos, ocorridos a milhares de quilômetros de suas fronteiras. 

Procuradas, as mineradoras Imerys e Norks Hydro não se pronunciaram sobre as estatísticas. Enquanto isso, Barcarena e sua população seguem à espera da nova tragédia que está sempre à espreita.

Impactos ambientais

O Brasil é um país conhecido internacionalmente por suas riquezas naturais e, desde a chegada dos portugueses, é explorado por isso. Por causa da sua extensão que abrange diferentes climas, vegetações, relevos e biomas, existe uma gama considerável de produtos de valor que podem ser extraídos daqui. Somando isso com uma política que incentiva a entrada do capital estrangeiro e uma baixa fiscalização das leis ambientais, é possível perceber a origem do interesse de grandes empresas em se alocarem no Brasil.

As leis ambientais são de extrema importância para um país com centenas de espécies endêmicas tanto na fauna quanto na flora. Por outro lado, é impossível realizar qualquer atividade mineradora sem impacto na natureza. A função das leis é justamente minimizar esses impactos, balanceando o quão lucrativa pode ser a atividade no país e a quantidade de vida da biosfera que pode ser afetada por isso sem impactos diretos na população.

O diretor do Instituto de Geociências da USP (IGc), Caetano Juliani, conta que “por muito tempo, as leis sobre o modo de mineração, o uso dos recursos e o descarte de subprodutos foram muito fracas ou inexistentes, mas atualmente, é exigido uma série de pesquisas para avaliar se a área será o mais proveitosa possível com o menor impacto”. Ele complementa que, atualmente, existe uma pressão maior para o cuidado com o ambiente ao mesmo tempo que, de maneira em geral, os minerais de interesse estão ficando mais escassos e com uma maior demanda.

Então, por mais que, em tese, exista um esforço para conter os danos ambientais, não é possível que eles acabem enquanto a sociedade depender da mineração, afirma Juliani. O principal e mais comum impacto é a mudança da paisagem. Para conseguir acessar as minas e jazidas é necessário que uma área grande seja despida da vegetação original e perfurada. E a terra e pedra retirada de lá terá que ser transportada para outra área próxima, uma vez que o transporte dela não seria proveitoso e a recuperação desses lugares pode demorar séculos para acontecer. Mesmo assim, não ficará igual fora, dada a modificação na rocha do solo. Montanhas que forem removidas para a mineração de ferro, por exemplo, nunca serão recuperadas. Buracos que não forem tapados depois do fim da exploração também dificilmente vão se recuperar.

Outro ponto relevante é o descarte na mineração. Ao lavrar, busca-se um minério específico, mas a composição da litosfera (parte rochosa do planeta) é muito mais complexa e tem muitos outros produtos que são menos proveitosos ou rentáveis para as empresas. E são eles que, conforme são descartados, podem contaminar o solo, a água ou as formas de vida da região. Um exemplo, conta Juliani, acontece ao lavrar algumas regiões em busca de minério de ferro ou carvão mineral, onde os restos de rocha perfurados eram acumulados em uma pilha próxima à mina. Esses dejetos continham sulfetos que, quando em contato com a água e o oxigênio, geram ácido sulfúrico. O resultado pode ser a degradação do ambiente e a contribuição para a chuva ácida. Embora, segundo ele, essa prática não seja mais comum, justamente pelos danos ao ambiente, ainda existe reflexo dessa contaminação em cidades de Santa Catarina, principalmente, onde há uma concentração de mineração de carvão .

Esses são os principais exemplos de impactos que acontecem devido à mineração, a contaminação por dejetos e a necessidade de modificar a paisagem. O desleixo de empresas com o ambiente faz com que acidentes que poderiam ser evitados aconteçam. O diretor comenta que é obrigação das empresas ter o cuidado de evitar quaisquer problemas para a natureza e para as populações próximas da região e obrigação do Estado garantir que esse cuidado esteja sendo tomado.

Sobre a contaminação de solo, formação de lama tóxica e outros, já existem tecnologias para evitar esses acontecimentos. Métodos de descarte correto dos minerais ou até de retorno para o solo já existem, mas é vital que eles sejam usados, uma vez que eles evitam danos para futuras gerações como os que já foram deixados.

É inevitável que haja mineração sem desmatamento. É necessário chegar na rocha bruta para poder lavrá-la e isso significa destruir a natureza local. Nesse ponto volta-se a frisar a importância da legislação e fiscalização ambiental, uma vez que elas podem garantir um ambiente de mineração mais produtivo. Elas também vão ser as responsáveis por garantir que o impacto da retirada da vegetação de determinado local não afete por completo as dinâmicas ambientais e da própria biosfera.

Comunicação é arma dos ativistas

No dia 29 de maio de 2013, em Brasília, 48 organizações da sociedade civil lançaram o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração para enfrentar os impactos sociais e ambientais causados pelas empresas mineradoras. O comitê reúne, entre outras organizações, o Instituto Socioambiental, a Confederação Nacional do Bispos do Brasil (CNBB), o Movimento pela Soberania Popular na Mineração, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), a Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Rede Justiça nos Trilhos (JNT) e o Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS).

A comunicação se tornou uma ferramenta essencial na atuação dos ativistas que, anteriormente, faziam articulações locais contra as imposições das grandes empresas que exploravam o minério brasileiro. Na sétima plenária da organização, ocorrida em 2017, Luiz Jardim, do grupo PoEMAS, ressaltou que o modelo tributário aplicado à mineração favorece a exportação de minério do Brasil, com isenção de impostos e outros mecanismos fiscais sem transparência. Em 2020, o comitê disponibilizou o Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil, ferramenta que permite observar continuadamente os embates que envolvem essa atividade econômica no País.

O levantamento do grupo apontou que empresas estrangeiras – a maioria de países ricos com rígidas regras ambientais e trabalhistas – estiveram envolvidas em 48,7% dos conflitos com populações vulneráveis ocorridos em território nacional ano passado, enquanto empresas nacionais responderam por 23,8% e o garimpo ilegal, por 19,4%.

[Imagem: Mapa dos conflitos com mineradoras internacionais. Fonte: http://conflitosdamineracao.org/]

Para Bruno Milanez, professor do Departamento de Engenharia de Produção e Mecânica da Universidade Federal de Juiz de Fora e pesquisador do grupo PoEMAS, a legislação dos países periféricos até tendem a ser mais avançadas do ponto de vista ambiental, porém a fiscalização nos países ricos é mais rigorosa. Existiria, segundo ele, portanto, uma menor preocupação das mineradoras de cumprir a legislação nos países pobres, onde a impunidade é maior.

Milanez explica que havia uma evolução dos acidentes com barragens no mundo todo, com um pico no período de 1988 a 1997. E, depois, uma redução no início do século. Mas, a partir de 2008, começou uma nova tendência de crescimento. Das falhas de barragens ocorridas entre 2000 e 2019, 61% ocorreram no sul global, que compreende os países em desenvolvimento, em oposição aos países ricos europeus e norte-americanos, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia. O que chama a atenção, no entanto, é que quase todas as mortes decorrentes desses acidentes, 99,75%, aconteceram nos países mais pobres.

“As minas de melhor teor de metal já se esgotaram, então hoje são usadas barragens de menor concentração e, com isso, gera-se mais rejeitos e a maioria das barragens também vão ser maiores. Quanto maiores são as barragens, maiores são as chances de, se ocorrer uma falha, que elas sejam em áreas maiores”, explica Milanez.

Segundo Maurício Ângelo, fundador e repórter do Observatório da Mineração, o Canadá é “o centro financeiro da mineração no mundo”. Ângelo é responsável por diversas matérias investigativas sobre o assunto e apontou três regiões com casos inquietantes envolvendo mineradoras canadenses no Brasil: Paracatu (MG), Godofredo Viana (MA) e Senador José Porfírio (PA).

Paracatu abriga as duas maiores barragens do Brasil, que pertencem à canadense Kinross. Juntas, as duas somam 1,2 trilhão de litros de capacidade, sendo 43% utilizado hoje. O medo de que um rompimento ocorra aumentou desde os acidentes em Brumadinho e em Mariana, como ficou evidente no dia 20 de maio de 2021, quando as sirenes de uma das barragens de Paracatu dispararam de forma acidental. Além disso, a água consumida pela população próxima é extraída de poços artesanais, o que gera alerta para os riscos de contaminação pelo arsênio liberado pelas rochas locais.

De acordo com o que a mineradora informa em seu site, o monitoramento dos níveis de arsênio nas águas subterrâneas da região é feito de maneira regular tanto pela empresa quanto pelo Centro de Tecnologia Mineral (Cetem), do Governo Federal, não tendo sido registrado nível significativo da substância. Em 2015, no entanto, uma reportagem do El País Brasil teve acesso a um estudo do Cetem que revela trechos de um rio próximo com concentração 50 vezes maior que a permitida pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).

No dia 14 de maio de 2019, a empresa canadense Equinox iniciou a maior produção de ouro do país, no município de Godofredo Viana, no Maranhão. Pouco depois de completar dois anos de atividade, no dia 25 de março de 2021, um vazamento atingiu a comunidade local, contaminando a água de mais de 4 mil pessoas. Os moradores da região ficaram isolados e sem acesso à água potável.

Um mês após o ocorrido, Maria Aldineia e Maria Valdiene foram presas pela Polícia Militar do estado ao protestarem exigindo que a mineradora restabelecesse o abastecimento de água. Além delas, Daiane Lima, Dalila Alves Calisto e Jonias Pinheiro também foram alvo de ações judiciais por participarem dos protestos.

No Pará, a Belo Sun Mining, outra gigante canadense, pretende criar o maior projeto de exploração de ouro a céu aberto do Brasil, no município Senador José Porfírio, no local onde vivem hoje populações indígenas e ribeirinhas. A empresa tenta instalar o empreendimento há 10 anos e recentemente tem obtido acordos favoráveis com órgãos do Governo Federal.

Segundo reportagem de André Borges para o jornal o Estado de S. Paulo, o Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra) teria cedido para a empresa canadense 24,2 milhões de metros quadrados da área de um assentamento criado em 1999. A decisão, que não foi discutida com a comunidade, surpreendeu os moradores, que aguardavam o documento definitivo de posse. Uma semana depois, o mesmo repórter revelou que já se somam 83 pedidos ativos da empresa junto à Agência Nacional de Mineração (ANM) para pesquisa e lavra de ouro em municípios próximos ao Rio Xingu. 

De acordo com o geólogo Andrés Ángel, consultor científico da Associação Interamericana de Defesa do Meio Ambiente (Aida), as informações apresentadas pela empresa durante o processo de licenciamento ambiental junto às autoridades competentes apresentam inconsistências e colocar o projeto em prática acarretaria sérios riscos de contaminação ao meio ambiente e às comunidades ribeirinhas e indígenas locais. Um dos maiores problemas está no uso de grandes quantidades de cianeto (que pode ser letal mesmo em doses pequenas) para a extração do ouro, pondo em perigo tanto as pessoas como a fauna aquática. 

A Rede Xingu+, que participa da articulação contra o empreendimento, revela, ainda, em relatório detalhado sobre as obras, que os estudos do licenciamento ambiental previam a remoção de apenas 2,78 megatoneladas, contra as 39,767 megatoneladas de rocha anunciadas pela mineradora em seu projeto de 11 anos de atividade, ou seja, uma quantidade 13 vezes maior.

Uma série de reportagens sobre a mineração em territórios indígenas escrita por Maurício Ângelo para o Instituto Socioambiental, entretanto, aponta que essa atividade também apresenta problemas semelhantes no país sede dessas empresas. A legislação ambiental, além de ser descentralizada, muitas vezes sequer existe no Canadá e os povos originários, que representam cerca de 1,6 milhão de habitantes, acabam sendo duramente afetados ou forçados a aceitar acordos desvantajosos. Em 2014, o reservatório da mina de cobre Mount Polley rompeu, liberando cerca de 25 bilhões de litros de rejeitos que comprometeram as fontes de água potável dos indígenas locais. A proprietária da barragem, Imperial Metals, nunca foi penalizada pelo incidente.

Outro projeto particularmente sensível no momento é um empreendimento de extração de minério de ferro da SAM (Sul Americana de Metais), subsidiária da companhia chinesa Honbridge Holdings, na região do Vale das Cancelas, no norte de Minas Gerais.

O professor Bruno Milanez explica que o minério em questão é de baixo teor, o que significa que sua extração consome uma grande quantidade de água, algo especialmente preocupante em uma região do semiárido. Além disso, a estratégia da empresa envolve o transporte do material por mineroduto até o porto de Ilhéus, no sul da Bahia.

Por se estabelecer nos territórios de dois estados diferentes, a legislação define que ele deveria ser licenciado pelo órgão federal competente, o Ibama, que declarou o projeto ambientalmente inviável. 

Para o professor, não há uma grande diferença entre as mineradoras com sede no Brasil e as com sede no exterior. “A natureza da atividade natural se mantém: os principais conflitos giram em torno de deslocamentos compulsórios, contaminação e escassez da água e questões de direitos trabalhistas.”

Ele também comenta que fatores culturais fazem com que empresas nacionais acabem por atuar com menos resistência, pois é mais difícil construir uma relação antagônica no imaginário público, o que é mais natural no caso de empresas estrangeiras. “Pelo histórico que a Vale tem com as comunidades, as pessoas tendem a ser menos críticas com ela. Quando vem uma mineradora estrangeira, é mais forte a ideia de que são estrangeiros pegando o minério e indo embora”.

Impactos econômicos

A maioria das empresas multinacionais que atuam no Brasil tem a participação de acionistas estrangeiros. A maior empresa brasileira (com R$ 471 bilhões na Bolsa brasileira), a Vale, tem 55% de suas ações na mão de estrangeiros, a partir da negociação em Bolsa. Na extração de ouro são quase todas multinacionais – Kinross, Anglo Gold Ashanti, entre outras. Na cadeia do alumínio, com exceção da CBA, todas são multinacionais (Alcoa, MRN, Hydro). O cenário se repete na extração do cobre, do níquel, entre outros. 

Ariaster Chimeli, professor de economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP (FEA), explica que países como o Brasil podem se tornar atrativos para investimentos com menor custo relacionado à proteção ambiental e prevenção de danos. Ele conta que o país tem instituições de proteção ambiental relativamente fracas e com um monitoramento e punição deficientes. Sendo assim, as mineradoras estrangeiras, bem como as nacionais, têm o incentivo de maximizar seus lucros com atenção relativamente baixa na prevenção de danos ambientais. 

O aumento da produção mineral brasileira foi de 15% no 1º trimestre de 2021, em comparação a igual período de 2020. No mesmo período, o setor recolheu o dobro de tributos e criou mais de 11 mil novos empregos diretos. Mesmo assim, Maria Amélia Enriquéz, professora da Faculdade de Economia da Universidade Federal do Pará (UFPA), afirma que o peso relevante da mineração no Brasil é para as contas externas nacionais e pouco em termos de PIB (3,2%), de emprego e de tributos. “Essa matéria prima enviada para o exterior vai gerar emprego de qualidade, imposto e renda lá fora”, relata a professora.

A professora ilustra as diferenças entre as empresas que atuam no mercado doméstico, geralmente as menores e nacionais, e as que exportam, geralmente grandes e multinacionais nesta tabela:

Itens Empresas nacionais – pequenas e médias

Mercado doméstico

Empresas multinacionais grandes

Mercado externo

Impostos (1) Carga tributária completa (por volta de 36%): ICMS, PIS Cofins¹, CFEM², IRPJ³ Isenções de ICMS, PIS e Cofins, se estiver na Amazônia (quase 50% do valor da produção mineral) tem isenção de 75% de Imposto de Renda  (IR) e ainda pode reinvestir o que iria recolher

A carga fica inferior a 10%

Participação nas exportações (2) Participação bem reduzida menos 1% para alguns bens pontuais A grande mineração representa 25% das exportações do País. Em 2019 e em 2021 já ultrapassa os 29%. Só o minério de ferro pesa 16,5% (mais de US$ 44 bilhões nos 11 meses de 2021) (inclui o setor de petróleo)
Emprego (3) O setor mineral como um todo é extremamente poupador de mão de obra. Segundo a Relação Anual de Informações Sociais, em 2020, o total de empregos gerado pelo setor mineral no Brasil foi 227.666, para um total de emprego gerado de 46.236.176, o que equivale a menos de 0,5%, ou seja, o número de emprego gerado é insignificante quando comparado ao peso das exportações. E mesmo se considerando os empregos indiretos e induzidos o percentual é ainda inferior considerando-se a População Economicamente Ativa (PEA) brasileira. 
Participação no PIB (4) De acordo com o IBGE, a participação do setor extrativo mineral no Valor Adicionado Bruto (VAB) está em torno de 2,5%, incluindo o setor de petróleo e gás.

¹ Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social, tributo sobre a receita bruta das empresas, destinada a financiar a seguridade social, a qual abrange a previdência social, a saúde e a assistência social.

² Compensação Financeira pela Exploração Mineral, contraprestação paga pelo minerador à União, aos Estados, Distrito Federal e Municípios.

³ Imposto de Renda Pessoa Jurídica, tributo federal que deve ser pago por todas as empresas com CNPJ ativo.

Fonte: (1) Enríquez (2021); (2) http://comexstat.mdic.gov.br/pt/comex-vis (3) RAIS https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiYTJlODQ5MWYtYzgyMi00NDA3LWJjNjAtYjI2NTI1MzViYTdlIiwidCI6IjNlYzkyOTY5LTVhNTEtNGYxOC04YWM5LWVmOThmYmFmYTk3OCJ9     (4) : IBGE – Sistema de Contas Regionais (SCR) 

O mundo está atento para as mudanças climáticas e com a pauta ESG (abreviação de Enviroment, Social e Governance). Porém a professora aponta que é preciso diferenciar aquilo que é denominado greenwashing, isto é, quando a empresa mostra que se importa com pautas ambientais com ações superficiais e, na verdade, prejudica muito o meio ambiente, de um autêntico compromisso socioambiental expresso em métricas e metas claras. “Mas, em tese, quanto mais financeirizada, menos recursos sobra para pautas ESG autênticas, daí os desastres em Mariana e Brumadinho, frutos dos descasos com investimentos preventivos, na ânsia de pagar dividendos a acionistas e bônus aos dirigentes”, analisa a professora.

Já Chimeli comenta que a agenda ambiental vem ganhando importância e há alguns fundos de investimento que montam carteiras com ativos associados a investimentos com predominância de ações ASG (Ambientais, Sociais e de Governança). Mas ele faz uma comparação: no exterior, as pressões para boa performance ASG são maiores, o que pode ter maior influência sobre a tomada de decisões das empresas estrangeiras. Além disso, algumas dessas empresas estão sujeitas a responder na justiça de países desenvolvidos por danos ambientais no Brasil (ou em outros países em desenvolvimento). Este foi o caso, por exemplo, da BHP, processada na Inglaterra pelo rompimento da barragem de Fundão da Samarco. Neste contexto, danos ambientais e sociais causados por essas empresas podem se converter em altos custos de compensação e reparação, contribuindo para uma queda nos lucros. “Isto, em tese, daria o incentivo às empresas estrangeiras agirem de forma cautelosa com relação a danos ambientais. No entanto, minha percepção é que os investidores, via de regra, dão peso ainda relativamente pequeno para a pauta ambiental no momento de investir”, comenta o professor.

O Brasil tem um histórico de aplicar várias multas por danos ambientais, mas apenas uma fração irrisória dessas multas é paga, de acordo com Chimeli. Ele acredita que isso reforça a fragilidade das instituições brasileiras de proteção ambiental. Recentemente, o governo federal tem sinalizado uma maior tolerância a infrações ambientais. Para o professor, independente do nível de monitoramento que efetivamente ocorra, esta sinalização por si só incentiva o aumento da degradação na expectativa de maior impunidade. A professora Maria Amélia complementa mencionando a lentidão da justiça e as dificuldades de se implementar as multas, pois as empresas recorrem com um arsenal de advogados para defender a impunidade, segundo ela.

Segundo Chimeli, uma das principais alternativas para evitar desastres ambientais pelas empresas internacionais é dissociar a geração de royalties e impostos gerados pela extração de recursos naturais não renováveis de gastos correntes. Ele explica que a ideia é que, ao extrair um recurso natural, diminui um estoque de riqueza ou tipo de capital do País. Para garantir um padrão de desenvolvimento continuado mesmo após a extração total destes recursos naturais não renováveis, deve garantir a remuneração competitiva do capital e do trabalho e investir todo o excedente em algum outro tipo de capital. Este outro tipo de capital pode ser saúde, educação, infraestrutura ou fundos soberanos. Esta é a motivação para o fundo soberano da Noruega e muitos outros países e regiões dependentes de recursos naturais não renováveis. O Brasil conta com certas regras de investimento dos recursos públicos gerados pela mineração. No entanto, a maioria destes recursos é gasto no mesmo período que eles foram arrecadados. “Isso dá o incentivo para que políticos e reguladores maximizem seus ganhos (econômicos e políticos) em detrimento de ações que possam reduzir esses ganhos (como proteção ambiental), mesmo que elas defendam o interesse da sociedade por gerações”, destaca o professor.

Muitas cidades que são prejudicadas pelos desastres ambientais são “mínero-dependentes”, isto é, toda a vida econômica e social da cidade gira em torno da mineração. Maria Amélia Enriquéz expõe as dificuldades desses municípios em promover sua diversificação econômica. Assim, qualquer evento adverso que ocorre com a mineração afeta fortemente a dinâmica dessas cidades. Por exemplo, a queda da arrecadação, da oferta de serviços público, do emprego, da renda. Enfim, resulta-se em uma crise local. A economia regional também é afetada de forma indireta. “A contaminação do ar e da água, por exemplo, pode causar danos à saúde e perda de produtividade do trabalho”, explica Chimeli. “A interrupção de atividades econômicas gera danos econômicos e psicológicos com efeitos duradouros”, afirma. “Além disso, uma forma de exercer a atividade de mineração sem preocupação ambiental pode gerar danos sistêmicos que comprometem a própria atividade e outras existentes nas regiões afetadas”.

As implicações da mineração no cenário diplomático

Apesar do aumento de denúncias e conflitos no Brasil causados por mineradoras estrangeiras, as consequências diplomáticas sobre elas continuam sendo nulas. Mesmo com o envolvimento de mineradoras transnacionais em desastres ambientais no Brasil, as repercussões legais restringem-se a reparações financeiras aos afetados, sem sanções e, em alguns casos, com investigações não concluídas sobre outras atividades realizadas por essas empresas em solo nacional.

Esses desdobramentos são comuns nessas situações que envolvem mineração, por se tratar de um setor estratégico da economia do país, explicou Giovana Valentim, mestranda em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

A pesquisadora, que trabalha com o mapeamento das colisões de defesa em torno da legalização da mineração em terras indígenas, conta que as próprias políticas de Estado são pró-extrativismo. Assim, as repercussões diplomáticas negativas envolvendo empresas transnacionais da área de mineração são indesejadas, tanto para as mineradoras quanto para o Governo.

Dessa forma, o Governo Federal busca mitigar os impactos que denúncias e conflitos desencadeados que a extração de minério causa, justificando que a exploração desses recursos é um ponto estratégico para o desenvolvimento do Brasil. De acordo com a pesquisadora, esse comportamento por parte do poder executivo é uma herança da Ditadura Militar, que se utilizava do argumento de estar garantindo a soberania nacional para defender contra invasões às terras indígenas e de quilombolas.

“Observa-se um discurso que mobiliza esse afeto da soberania, do patriotismo, mas que, na prática, está permitindo que corporações transnacionais, que empresas que são vinculadas a estados que são criticados, por exemplo, pelo Bolsonaro publicamente, acessem esses minérios”, afirma Valentim.

Para a mestranda, é possível notar desde o governo Temer um desmanche das políticas de preservação e fiscalização ambiental e a falta de punição pelo descumprimento delas, permitindo a exploração de reservas ambientais protegidas. 

O Projeto de Lei 191/2020 exemplifica uma dessas políticas, pois, se aprovada permitirá a realização da pesquisa e lavra de recursos minerais em terras indígenas, retirando o poder de veto à exploração dos povos locais. 

Essa junção de fatores faz com que o Brasil se torne um país atrativo para empresas transnacionais de mineração que buscam locais com legislações flexíveis quanto à responsabilidade ambiental para manter sua competitividade no mercado. Porém, como destaca Valentim, os danos ambientais causados por elas irão impactar uma parcela da população por anos.

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