Pandemia não impediu remoções de milhares de famílias paulistas em 2020

Pesquisador da FFLCH discute situação de pessoas removidas de suas moradias e ação do Estado durante pandemia em São Paulo

Foto: Jorge Ferreira

Em meio à pandemia de coronavírus, pelo menos 2.000 famílias foram removidas de ocupações de moradia na Região Metropolitana de São Paulo entre abril e dezembro de 2020, de acordo com dados do Observatório de Remoções

A derrubada, no dia 21 de agosto, do veto do presidente Jair Bolsonaro ao Artigo 9º da Lei 14.010, que proibiu, até 30 de outubro, despejos de inquilinos por falta de pagamento do aluguel foi a única decisão em âmbito nacional contra despejos até o momento — mas não protegeu quem reside em ocupações de moradia. 

No estado de São Paulo, também não existe legislação ou recomendação formal do Tribunal de Justiça para suspender remoções, nem lei municipal na capital. Enquanto cientistas, especialistas em saúde e gestores políticos recomendam o isolamento social para proteção da vida contra a covid-19, milhares de pessoas têm perdido sua moradia na cidade de São Paulo. 

Sobre a situação das ocupações, a Agência Universitária de Notícias da USP entrevistou o pesquisador Renato Abramowicz Santos, doutorando pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e integrante do Observatório de Remoções, que tem acompanhado casos de reintegrações de posse, despejos e remoções em São Paulo.

“Acreditávamos que, em um momento como esse, as pessoas não perderiam sua moradia, mas foi exatamente o que aconteceu. Não teve política alguma de proteção para quem mora em ocupações, nem em instância federal, nem estadual, nem municipal. Aliás, políticas eficazes de proteção do direito à moradia como um todo (aluguéis, população em situação de rua, etc.) não foram implementadas”, aponta o pesquisador.

Abramowicz explica que proprietários do setor privado e público continuaram promovendo reintegrações de posse durante a crise sanitária, e o Judiciário continuou a concedê-las. “Não se aprovou suspensão das remoções, tampouco se articulou atendimento às famílias afetadas. A nível municipal, o que nós temos de política pública, hoje, é um auxílio aluguel de R$ 400 para quem é removido. Mas na grande maioria dos casos de remoção que acompanhamos em São Paulo, as famílias saíram sem receber nenhum tipo de atendimento.”

O pesquisador lembra que as ocupações, que existem historicamente por todo o Brasil, são sintoma da crise de moradia que existe no país, e consequência da ausência de políticas públicas habitacionais eficientes. Na cidade de São Paulo, muitas delas se localizam no Centro, mas também em regiões periféricas.

“Na cidade de São Paulo, as ocupações de imóveis e terrenos acontecem há muito tempo. A partir dos anos 90, podemos observar uma mudança, que é o surgimento de movimentos de moradia politicamente organizados no Centro. Eles passaram a protagonizar ocupações de prédios, demandando políticas como construção e subsídio de habitações, locação social e posse e melhoria das condições de habitabilidade das próprias ocupações. Isso se multiplicou e apareceram muitos outros grupos, que nem sempre são ligados a essa tradição politizada. Temos diversos tipos de ocupações, e não existe alinhamento político entre todas.” 

Multifamiliares, as ocupações de moradia são compostas por pessoas de baixa renda, que não conseguiram pagar aluguel ou propriedade com os preços de mercado. Podem ser urbanas ou rurais, e costumam se organizar em terrenos baldios (públicos ou privados) a partir da autoconstrução de habitações precárias de baixíssimo orçamento, e também em prédios inutilizados, como é comum na região central de São Paulo. 

“Há um estoque de imóveis abandonados há décadas que acumulam dívidas muito grandes no Centro, em razão de um processo histórico de deslocamento das elites para o vetor sudoeste da cidade. Mas a região ainda é servida de infraestrutura de transporte, empregos, equipamentos de saúde e culturais, e por isso, na ausência de políticas habitacionais, as pessoas ocupam esses imóveis abandonados”, frisa Abramowicz.

Outro ponto importante é que enquanto faixas mais baixas de renda são deslocadas para periferias e áreas precarizadas, esses imóveis abandonados desperdiçam espaço em um solo urbano com oferta de infraestrutura e serviços públicos essenciais à moradia adequada, mantidos por impostos do contribuinte. 

Renato Abramowicz explica que, para além da exposição ao coronavírus, uma pessoa removida é vulnerabilizada de diversas maneiras. “A remoção é sempre uma violência. Envolve vários níveis, além da frequente violência policial. O processo de retirada das casas, da demolição dos imóveis e destruição de ítens pessoais é bastante traumático psicologicamente, porque tem todo um rompimento de vínculos, da ideia de casa, de redes que se estruturam, tudo isso contra a vontade das pessoas, tudo isso com crianças envolvidas.” 

Ele também aponta a grande invisibilização das remoções e reintegrações de posse, e da carência de dados e informações oficiais. “O objetivo do Observatório de Remoções com o mapeamento trimestral é justamente monitorar e produzir informação onde não existe, identificar os impactos gerados pelas remoções e ameaças de remoção. Também está em curso uma mobilização nacional importante, a Campanha Despejo Zero, que reúne mais de 100 movimentos sociais e entidades da sociedade civil, pedindo o fim dos despejos e remoções nesse contexto do coronavírus.” 

No momento, existem pelo menos 20 projetos de lei tramitando no Congresso com proposta de suspender remoções durante a pandemia, como o PL 1975, apresentado em 16 de abril de 2020. A Organização das Nações Unidas apoiou o PL e se posicionou contra os despejos no Brasil. 

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