Por Jonas Santana, Kaique Canalle e Matheus Oliveira,
A Cultura no Brasil raramente esteve na lista de prioridade de qualquer governo. O incêndio no Museu Nacional, ocorrido no início de setembro deste ano, deixou à mostra a negligência das políticas públicas para esse setor. Historicamente, a condição de país em desenvolvimento colocou a nação brasileira em um patamar no qual não há margem para se falar sobre incentivos culturais ou mesmo acerca da importância transformadora da cultura. Questões práticas como a miséria e a fome sempre se fizeram mais sonoras.
Nos últimos anos, leis de fomento à área assim como exposições e performances artísticas vêm sendo duramente criticadas pelo público mais conservador. Em 2017, a exposição QueerMuseu foi cancelada em Porto Alegre após uma série de críticas e protestos através das redes sociais e no próprio espaço Santander Cultural, que sediaria o evento. Outro episódio recente que gerou polêmica foi a performance do artista fluminense Wagner Schwartz. Intitulada “La bête”, a obra, que basicamente consistia na interação do público com o artista nu, foi acusada de ter cunhos de pedofilia após a imagem de uma criança tocando Schwartz percorrer a internet.
Em vista desses casos e na tentativa de justificar o notório desinteresse governamental para a manutenção dos nossos aparelhos culturais, políticos e personalidades públicas passaram a criticar os já rasos investimentos no setor, e também tecem ameaças. Durante a campanha presidencial, por exemplo, o então candidato à presidência Jair Bolsonaro (PSL) declarou que, caso vencesse, acabaria com o Ministério da Cultura. Venceu.
Essas e outras declarações levam a refletir sobre as perspectivas para a área da cultura nos próximos anos. Para Waldenyr Caldas, professor de Cultura Brasileira na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, o que estamos vivenciando hoje não se trata propriamente de um ataque por parte do governo aos nossos aparelhos culturais, mas sim a um desinteresse em fomentar o incentivo financeiro aos mesmos. “As políticas públicas nem sempre se procuram contemplar todas as áreas da cultura. Em um país como o nosso, extremamente carente em saúde, educação e saneamento básico, é recorrente esse desinteresse pelo incentivo à cultura”, enfatiza Caldas.
O professor explica que, na história do Brasil, há registros de incentivos à cultura desde o período imperial, entretanto esses incrementos nunca puderam ser utilizados de forma efetiva porque outras áreas, como a do bem-estar social, foram e ainda são negligenciadas. “Registros históricos atestam a trajetória da família Real em nosso país e, com ela, o início dos incentivos à cultura brasileira”, comentou Caldas. “O fato mais concreto para se observar é que, apesar do Estado estar investindo em cultura, ainda assim, continuamos muito defasados em relação a outras necessidades”.
Segundo o especialista, não será possível haver um real desenvolvimento na área cultural enquanto o Estado não criar mecanismos de promoção para um bem-estar social, ou seja, para melhores condições de vida da população. Ele pontua que uma nação constrói suas próprias práticas culturais a partir da convivência de seu povo com o espaço que ocupa. “O que o Estado precisa fazer é destinar muito bem a verba para que a sociedade possa viver com qualidade de vida”. E continua: “O ideal é que as autoridades responsáveis pelo orçamento e distribuição de verbas para os ministérios e agências públicas, o façam de tal modo que melhore a vida da população em todos os seus segmentos, entre eles, o da cultura”.
Caldas explica que, atualmente, embora o incentivo a ações culturais por parte do governo seja insuficiente, empresas de capital privado vêm investindo no setor, o que, segundo ele, pode diminuir os danos ao nosso patrimônio: “O que tem ocorrido em nosso país é que o incentivo à cultura por parte do Estado tem sido diminuto. No entanto, há uma política do Estado com as empresas de capital privado para que esse incentivo seja feito também por elas. Os resultados têm sido apenas razoáveis. O que significa, em outros termos, um prejuízo minimizado”.
Lei de incentivo à cultura em risco
É nesse contexto que se insere a Lei Rouanet, criada em 1991 pelo então secretário Nacional da Cultura, Sérgio Paulo Rouanet. Instituindo o Programa Nacional de Apoio à Cultura, a medida tem caráter federal e abarca todo o território brasileiro. Com isso, foram estabelecidos alguns critérios para disponibilização de recursos com a finalidade de realizar projetos artístico-culturais.
Para tanto, a lei se baseia em três pilares fundamentais: o Fundo Nacional da Cultura (FNC), o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart) e o Incentivo Fiscal. Este último é um mecanismo mais democrático, uma vez que as pessoas físicas e jurídicas têm a opção de destinar parte de seu imposto de renda ao investimento na cultura. Desse modo, há uma maior diversificação da origem dos recursos, pois tanto o cidadão comum quanto a iniciativa privada podem escolher contribuir.
Tendo como base esses incentivos, a Lei Rouanet estabelece alguns critérios para aprovação de um projeto cultural. Primeiramente, tal projeto deve estar de acordo com as seguintes normas: ter apresentação do objetivo e da justificativa, bem como orçamento, etapas de execução, cronograma, plano de divulgação e plano de distribuição, que deve garantir a democratização dos produtos gerados.
Em seguida, é necessário a apresentação dos documentos requeridos na Instrução Normativa, de novembro de 2017. Para pessoas físicas, basta apresentar o currículo ou portfólio com ênfase em ações culturais, além de documentos de identificação como RG e CPF. Por fim, deve ser feita a inscrição no Sistema de Apoio às Leis de Incentivo (Salic), que determinará a aceitação ou não do projeto artístico-cultural.
Tal seleção é pautada por alguns critérios essenciais. Em seu Artigo 22, a Lei Rouanet estabelece que os projetos “não poderão ser objeto de apreciação subjetiva quanto ao seu valor artístico ou cultural”. Desse modo, ações culturais que se baseiam em premissas de cunho partidário-político ou religioso não poderão receber incentivo dessa medida.
Com efeito, a capitalização do dinheiro público e privado deve ser, conforme o Artigo 18 da Lei Rouanet, aplicada às seguintes produções culturais: artes cênicas, livros, música erudita ou instrumental, exposições, bibliotecas públicas, museus, obras cinematográficas e salas de cinema e teatro.
Assim, o possível fim do Ministério da Cultura colocaria à margem ações culturais de grande peso para o desenvolvimento social. Embora alguns estados tenham medidas de incentivo cultural ― como São Paulo com o ProAc ICMS, programa que incentiva o investimento privado em ações de artistas ―, o corte de gastos com a Lei Rouanet pode ter um impacto nacional.
Segundo Débora Ramos Cavaleri, gestora de projetos culturais no Sesc SP e na Pinã, a redução dos incentivos culturais podem afetar diretamente diversas regiões brasileiras. “Como a Lei Rouanet favorece projetos de cunho federal, ou seja, em todo o Brasil, os estados e municípios que não possuem incentivos fiscais à cultura sofrerão perdas”.
A especialista ainda pontua que, embora algumas instituições privadas não sejam diretamente afetadas pelo possível fim desta legislação, haverá impactos no âmbito social: “O Sesc não será afetado pelo suposto fim da Lei Rouanet pois não usufrui do incentivo fiscal cultural para realização de suas atividades. Já a sociedade será afetada na medida em que não poderá mais usufruir de projetos realizados via este mecanismo”.
Extinção do Ministério da Cultura
O Ministério da Cultura (MinC) foi criado por decreto presidencial, em 1985, a partir do desmembramento do Ministério da Educação e Cultura. Assim, começaram a ser desenvolvidas ações específicas no reconhecimento da importância da cultura para a construção da identidade nacional. Atualmente, este Ministério desenvolve políticas de fomento e incentivo nas áreas de letras, artes, folclore e nas diversas formas de expressão da cultura brasileira, bem como preserva o patrimônio histórico, arqueológico, artístico e nacional.
Em 2016, o recém-empossado presidente da República, Michel Temer (MDB), anunciou o fim do MinC para fazer dele uma secretaria que se uniria com a pasta da Educação. No entanto, após a repercussão negativa do caso, houve um recuo por parte do governo vigente.
Já em março deste ano, o até então candidato à presidência Jair Bolsonaro, com a justificativa de corte de gastos, também acenou positivamente acerca dessas posições. Agora como presidente eleito, Bolsonaro já está tirando o projeto do papel e realmente extinguirá o Ministério da Cultura.
A princípio, foi divulgado que a intenção era que esse setor se juntasse à Educação, como Temer propôs dois anos antes. Porém, o atual ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, se pronunciou por meio de uma nota que até comparou o modelo proposto com o do também país lusófono Guiné-Bissau.
Leitão afirmou que, se realmente o MinC fosse deixar de existir, a melhor opção é que se unificasse esta pasta com a do Esporte e do Turismo em vez da Educação. Para ele, cultura, esporte e turismo possuem o mesmo peso, além de abranger áreas que compõem o campo da economia criativa (ou economia do tempo livre, ou economia do entretenimento).
No texto, o ministro produziu uma lista de países onde tal política foi adotada, como Reino Unido e Coreia do Sul. Sérgio Sá Leitão ressaltou, ainda, que com exceção da França, que para ele tem um governo de centro, a ideologia dos governos apresentados por ele, como exemplos a serem seguidos, são de direita ou centro-direita, similares às ideologias de Bolsonaro.
Assim, no final de novembro, Bolsonaro aparentemente seguiu em parte as recomendações do atual ministro e divulgou a criação de uma pasta que abriga os ministérios da Cultura, do Esporte e do Desenvolvimento Social. O nome que chefiará o que será chamado de Ministério da Cidadania é Osmar Terra (MDB), ex-ministro de Desenvolvimento Social do governo Temer. Porém, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, Terra afirmou que não é familiar com esporte e cultura, áreas que vai compor esse novo ministério. “Só toco berimbau”, afirmou, rindo.
Segundo o professor do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP, Otávio Luiz Rodrigues Junior, não é possível dizer se a proposta de tirar a autonomia do Ministério da Cultura é negativa ou positiva devido ao fato dessa ser uma questão ligada a uma política de governo. Para ele, o que interessa fundamentalmente é que haja políticas de proteção à cultura, sejam elas vinculadas a uma pasta autônoma ou compartilhada.
Ele lembra que um ministério autônomo para a área da cultura é uma tradição francesa que foi introduzida no Brasil. Porém existem países que não possuem pastas individuais para esse setor, e nem por isso eles têm uma proteção deficiente das iniciativas culturais. “Isso tem a ver com uma política, uma visão e uma estrutura de governo que cada gestão tem a prerrogativa de escolher. O que não pode acontecer é uma restrição ou um empobrecimento das políticas de proteção, difusão e incentivo à cultura”, comentou o professor.
Para Otávio Rodrigues, o principal entrave de qualquer atividade cultural é a questão financeira e, por isso, a preservação dos recursos para área é um fator imprescindível. Ainda hesitante sobre como a cultura será afetada com o novo governo, o professor acredita que precisa existir uma separação do que é falado e exposto durante a campanha eleitoral e do que realmente é possível fazer em uma nova gestão.
Ele recorda que há um marco legislativo consolidado que remonta os anos de 1980 e por isso é difícil afirmar qual política será adotada a partir de 1º de janeiro pelo futuro presidente Jair Bolsonaro. “Espero que seja respeitado o marco legal que existe sobre o tema da cultura e evidencialmente seja figurado os recursos necessários para manutenção desses projetos”, concluiu Otávio Rodrigues.
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