Funk é um importante meio de expressão de jovens da periferia

Pesquisador da FFLCH produz etnografia do estilo e fala da relevância do gênero musical

No final da década de 1980, DJ Marlboro consolidou o funk nacionalmente com o lançamento de seu primeiro disco, o Funk Brasil [Imagem: reprodução/pixabay]

Em 2017, uma proposta legislativa popular tinha como objetivo a criminalização do funk. Com mais de 20 mil assinaturas de apoio, o projeto de lei colocava o gênero musical como um “crime de saúde pública”, além de denominá-lo como uma “falsa cultura”. Apesar da proposta ter sido rejeitada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), iniciativas como essa continuam presentes e colocam em xeque a importância sociocultural do estilo

É exatamente sobre o funk e sua importância sociocultural que Meno Del Picchia, músico e antropólogo, fala em sua tese de doutorado A Neblina e o Fluxo: o funk nos corpos elétricos da quebrada. Sua pesquisa faz parte do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)

Picchia conta que sua tese surgiu a partir da vontade de fazer uma etnografia do funk, de pesquisar o mundo do gênero musical em São Paulo pelo viés antropológico. “Conheço muita gente do mundo da música, mas não tinha contato com o universo do funk”, explica o pesquisador. “O primeiro lugar para onde fui foi a Liga do Funk, uma associação com fins socioeducativos que promovia reuniões semanais para jovens interessados em se profissionalizar no mundo do funk”. 

O antropólogo começou, então, a participar das reuniões da Liga, onde conheceu alguns MC’s. A partir disso, Picchia se aproximou dos bailes funk de São Paulo. É dessa experiência de observação e vivência que ele desenvolveu sua pesquisa. O fluxo, no título da tese, se refere aos fluxos de rua “ativados por sistemas de som potentes” e a neblina vem da fala de um amigo do músico que usou a palavra, metaforicamente, para dizer que “quem é de fora da ‘quebrada’ não tem a capacidade de enxergar como as coisas acontecem por lá”. 

O funk se tornou um dos meios mais valiosos de expressão de jovens periféricos que vivem nas favelas de São Paulo ou nos morros do Rio de Janeiro, por exemplo. Picchia conta que quando se pensa no gênero musical, a periferia se torna central. “Quando fala-se em periferia no contexto do funk, fala-se no sentido positivo, como aquela produção que vem de lugares de baixa renda e afastados geograficamente do centro, mas que, por outro lado,  são centrais na produção de uma nova experiência urbana e artística”. 

Origem do funk e seu significado no Brasil

O funk surgiu nos Estados Unidos entre 1950 e 1960 e contou com a influência de ritmos populares, principalmente entre os negros, como o jazz, blues, gospel e soul, gêneros já usados pela população afro-americana como meio de expressão e reforço identitário. No Brasil, chegou por volta do final da década de 60 e se estabeleceu nos morros cariocas. Com o tempo, o estilo musical passou por transformações e cada vez mais jovens passaram a se interessar pelo ritmo, que se popularizou na periferia e fora dela. “Foi nas favelas, ou seja, nos bairros de menor renda, que o funk foi gestado, que foi criado e é onde o funk é consumido nas festas de rua, nos bailes, nos fluxos”, diz Picchia.

O antropólogo conta que definir o funk é difícil, mas explicita a importância sociocultural do gênero. “Ele [funk] não é só música, poesia ou beat, é toda uma cultura que acontece ao redor dele”, explica. “Eu diria que é uma forma expressiva da juventude que vive nos bairros da periferia. É uma música produzida por eles para falar da própria vida e das coisas que observam no dia a dia, sejam aspectos do tráfico de drogas ou da sexualidade”, exemplifica Picchia.

Segundo o pesquisador, além de ser uma mistura musical do Miami Bass norte-americano, o ritmo conta com aspectos das tradições afro-brasileiras oriundas do Candomblé e da capoeira, como, por exemplo, o toque de maculelê. “O funk é tudo isso, mistura musical, poesia que expressa a realidade das pessoas e é também festa, é música feita pra dançar, é corpo, é uma forma de lidar com o corpo e com a sexualidade”, conta. “É uma expressão artística de vanguarda, inovadora, transgressora, que desafia regras, códigos e limites”. 

Picchia destaca o significado do funk e da manifestação urbana do ritmo. Como um indivíduo de fora da periferia, ele conta que o que mais chamou sua atenção foi a importância da diversão, a partir da música, consequente da reunião das pessoas na rua, de maneira aberta e gratuita. Ele compara este momento de lazer e encontro a um ritual festivo necessário à juventude. “É um espaço de ocupação da cidade para jovens que são, na maior parte das vezes, excluídos socioeconomicamente e que encontram na rua e no funk uma forma de se expressar e de ocupar uma cidade que, às vezes, é muito hostil, como a gente vê, por exemplo, com o histórico de repressão policial a essas festas”. 

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