Redes de apoio em ocupações de moradia ajudam a prevenir suicídio

Dissertação do Instituto de Estudos Brasileiros estudou a saúde mental de moradores de ocupação em São Paulo

Prédio paulista abrigava 378 famílias em 2015 [Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil]

Praticamente esquecidas pela sociedade e por autoridades públicas, 45.872 famílias vivem de forma irregular em imóveis não habitados, na cidade de São Paulo. Esse dado, de 2018, é do Grupo de Mediação de Conflitos, da Secretaria de Habitação Municipal. Ainda segundo esse órgão, a maior metrópole brasileira abriga 206 ocupações de moradia. 

Grande parte dessas ocupações se concentra na região Central da cidade – cerca de 25,73% do total ou 3300 famílias. Foi ali que, em maio de 2018, a ocupação do edifício Wilton Paes de Almeida veio abaixo, em decorrência de um incêndio. O acidente deixou sete mortos e expôs a gravidade da situação dos moradores de ocupação. Mas, apesar do tom triste das notícias, poucos dias foram suficientes para que esse grupo social voltasse ao esquecimento. 

No Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, a psicóloga Cássia Fellet se propôs a pesquisar a “Saúde mental da população moradora de ocupações de movimentos de moradia na cidade de São Paulo”, em sua dissertação de mestrado. A princípio, a ideia era atuar com refugiados vivendo em ocupações paulistas. O rumo da pesquisa mudou quando Cássia ouviu, em um filme, a líder do Movimento dos Sem-Teto do Centro de São Paulo, Carmen Silva, dizer que “os sem-teto são refugiados na sua própria terra”.  

A situação física 

Com base em sua pesquisa, Cássia aponta que o perfil de morador mais frequente nas ocupações é de mulheres jovens, economicamente ativas e em idade reprodutiva. Além disso, a pesquisadora explica que a maior parte não é analfabeta e possui algum tipo de instrução formal. Há uma parcela que, inclusive, deu início à formação de nível superior. 

A dificuldade de estabelecer vínculos fixos de trabalho é predominante dentre os moradores de ocupação. Isso faz com que o meio de sustento esteja, majoritariamente, ligado ao mercado informal. Vendendo produtos no farol, fazendo entregas ou em atividades pontuais, os famosos “bicos”. Essa é uma das razões pelas quais a região Central da cidade concentra essas ocupações. “O centro ainda tem esses trabalhos. Trabalhando no centro e morando nas ocupações, essas pessoas podem ter condição de sobrevivência. Se for morar fora dessa região, elas teriam que ter custo de transporte”, explica Cássia. 

Quanto à origem, a pesquisa de Cássia aponta para o fato de que a maior parte dos moradores é do próprio estado de São Paulo. Mas, considerando o recorte de migrantes, a região Nordeste é a que se destaca. 

Condição mental 

Em uma pesquisa realizada por cientistas da Unicamp, UFMG e Fiocruz, metade da população do estado de São Paulo afirma ter sintomas de ansiedade ou nervosismo frequentes no período da pandemia. Ao todo, foram 11863 cidadãos que responderam ao questionário virtual entre os dias 24 de abril e 24 de maio de 2020. Ainda é necessário ressaltar que, em tempos não pandêmicos, os níveis de distúrbios psíquicos, como ansiedade e depressão, na cidade já são bastante expressivos. 

Durante seu estudo, Cássia participou na realização de uma Pesquisa Participativa Baseada na Comunidade e obteve respostas de 262 adultos moradores de ocupação. Uma das perguntas propostas era se o participante já havia tido ideação suicida. Com as respostas em mãos, a psicóloga comparou os resultados ao de outra pesquisa, que não teve a sua participação, que investigava o índice de transtornos mentais em pessoas domiciliadas na cidade de São Paulo. Aqui, uma surpresa: os dados indicavam que, naquele recorte e naquele momento, a situação mental de pessoas que possuíam residência fixa era similar à de moradores de ocupação. 

“É um dado muito surpreendente, que, de alguma forma, não confirmou a minha hipótese inicial. Embora a minha pesquisa não tenha sido para confirmar hipóteses, mas para construir uma ação”, diz a mestranda sobre a análise da condição mental dos moradores de ocupação. 

A pesquisa registrou um número relativamente baixo de indivíduos que já havia considerado o suicídio e a análise feita por Cássia ainda consideraria outros fatores. O que ela concluiu é que, apesar das circunstâncias, essas pessoas possuíam uma rede de apoio que lhes possibilita alguma condição de segurança emocional. 

As crianças de ocupação 

Criança brincando na Ocupação Prestes Maia [Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil]
No questionário aplicado por Cássia para a Pesquisa Participativa foram contabilizadas 86 crianças. É pensando nelas que a psicóloga reflete a importância do lar e das reivindicações do Movimento dos Sem-Teto. “O lar possibilita a elas se ancorarem. Ter uma casa é uma coisa estruturante na vida de uma pessoa, porque é possível com isso você criar uma rotina de vida”, explica Cássia.  

Apesar da situação envolver extrema insegurança habitacional, o endereço permite a essas crianças ter acesso à educação e sonhar com um futuro. 

No conjunto total dos moradores, Cássia diz que o sentimento é de admiração. “A gente fica encantado, abismado, surpreendido. Como é que pessoas com tanta dificuldade conseguem, com tanta competência, se auto-organizar?”. Ela conclui pontuando: “é uma luta constante a deles, só que eles conseguem estar juntos. Então eu acho que a gente tem muito a aprender”.

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