“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia, tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma”. Todos conhecem o talento literário de Mário de Andrade, autor do conhecido Macunaíma, de onde o trecho anterior é retirado. Mas poucos sabem sobre o seu imenso interesse pela fotografia. A pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) Viviane Vilela decidiu explorar essa faceta do artista em sua dissertação de mestrado, Mário de Andrade fotógrafo: possibilidades de uma câmera moderna.
Os interesses de Mário de Andrade percorriam entre as mais variadas áreas das artes, com produções expressivas na literatura, poesia, música e fotografia. No caso desta última, ele procurava ir na contramão do que era feito na época. Enquanto a grande maioria dos retratos do período em que viveu buscavam ilustrar um Brasil “europeizado e civilizado”, Mário registrava os locais que representavam o verdadeiro país, fotografando pessoas, paisagens e o trabalho comum.
“A maior produção fotográfica dele foi feita nas viagens que fez para o Norte e Nordeste do país. Ele teve a oportunidade de conhecer o Brasil profundo e se encantou. Nessas viagens, Mário produziu um número grande de fotografias, algumas delas com uma inovação estética muito interessante”. Contudo, não foi o famoso escritor que inventou os ângulos e enquadramentos utilizados em suas fotos. Como referência, ele tomou a revista alemã de variedades que assinava, a Der Querschnitt. “Era uma revista de vanguarda, havia muitas fotografias usadas para os mais variados fins, de coberturas sociais, viagem, etnografia e arte”.
Em sua dissertação, Viviane dedica-se a apontar as semelhanças entre as ilustrações da publicação e as de Andrade. Um dos aspectos mais marcantes dos retratos do escritor é a sua preferência pelas “sombras e paisagens refletidas”. Em Que-dê o Poeta?, ele registrou a própria sombra no rio Madeira, que também espelha a paisagem. Como comparação, Vilela mostra a imagem Bambual no Parque Peradeniya, que da mesma forma ilustra o reflexo do horizonte. As imagens cotidianas eram outro cenário encantador para Mário, que, tomando como exemplo Pescadores do Cais, fotografa Mercado de Ver-o-Peso. As suas técnicas de retrato também relembram aquelas ilustradas em Der Querschnitt, devido a comum utilização de enquadramentos em close.
Todo esse trabalho de Mário de Andrade, afinal, revela algo interessante sobre a sua personalidade. “Ele era dono de senso estético apurado, no qual explora a fotografia para além do registro étnico e etnográfico. Ele é um dos primeiros intelectuais a perceber a fotografia como linguagem e não como uma reprodução simplesmente”. Esse seu gosto pelas fotos também aparece em suas obras. Em Macunaíma, por exemplo, o herói interage com a figura de Hércules Florence, considerado o pai da fotografia. “Logo adiante estava outro desconhecido fazendo um gesto tão bobo que Macunaíma parou Sarapantado. Era Hércules Florence. Botara um vidro na boca da furna mirim, tapava e destapava o vidro com uma folha de taioba”. Tal excerto demonstra que o autor já se encontrava inteirado sobre o assunto, de maneira que faz suas brincadeiras confiantemente.
Outro ponto de destaque nas obras de Andrade é o seu modo peculiar de descrever cenários. “Existem textos que são muito fotográficos, que, ao serem lidos, dão a impressão de se estar vendo a cena”, diz Viviane. O artista, portanto, como é possível enxergar no trecho a seguir, era dono de um talento que o capacitava a unir dois de seus maiores interesses em um só. “Cidade é belíssima, e grato o seu convívio. Toda cortada de ruas habilmente estreitas e tomadas por estátuas e lampiões graciosíssimos e de rara escultura; tudo diminuindo com astúcia o espaço de forma tal, que nessas artérias não cabe a população”.
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