Íntimas do universo infantojuvenil, as histórias em quadrinhos possuem função estritamente lúdica no imaginário da maioria dos leitores. Mas, apesar de o entretenimento ser o principal fim da maioria das HQs, existem obras que ultrapassam a ludicidade e se aventuram no campo das questões sociais — algumas inclusive se tornando marcos de seus respectivos debates.
Autores aclamados provam que há diversas maneiras de abordar temáticas sociais em histórias em quadrinhos. Há séries como X-men, que não abre mão de sua essência — priorizando a adesão das massas — e mesmo assim instiga discussões relevantes; por outro lado, obras como Maus e Notas de Um Tempo Silenciado possuem a crítica enraizada em sua natureza.
Um dos planos de fundo mais utilizados nos quadrinhos, o autoritarismo, pode ser instrumento de análise deste fenômeno. Waldomiro Vergueiro, doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP, discorre acerca da relação entre o HQ mainstream e essa questão:
“Sendo fruto de uma indústria de produção massiva com origem no seio do capitalismo norte-americano, os quadrinhos mainstream tendem naturalmente a explorar temáticas que encontrem guarida entre os leitores, ou seja, aquelas que possam entusiasmar os fãs e fazer com que continuem adquirindo os produtos. No âmbito da indústria cultural, as tramas relacionadas ao autoritarismo terão proeminência”.
No caso de X-men, o principal fim não é a crítica social, mas sim as vendas. Ainda segundo Vergueiro, esse fenômeno se dá porque as proposições temáticas nem sempre nascem completas na indústria dos quadrinhos; mas vão sendo, muitas vezes, construídas ao longo do tempo:
“Assim, é preciso lembrar que, antes de se firmar como uma narrativa que explora questões de intolerância racial, com foque principal na perseguição a um grupo minoritário da sociedade — no caso, os mutantes —, pela maioria da sociedade, ela foi concebida como uma história de super-heróis comum ao modelo desse tipo de histórias que agradava aos leitores daquela época, a de heróis com problemas cotidianos e de relacionamento”.
Vale sempre ressaltar que as histórias dos X-Men ainda são produzidas em consonância com a grande indústria de quadrinhos: mesmo que tratem de temas mais complexos e busquem ir além do herói contra vilão tradicional, continuam sendo produtos massivos, construídos no modelo de linha de produção, preocupados em manter a coerência com o restante da produção desses heróis.
Por outro lado, obras como Notas de um tempo Silenciado e Maus tratam-se de produções autorais. Essas, embora produzidas dentro dos parâmetros da indústria de massa, ou seja, moldadas para o consumo, se destacam por uma visão pessoal do autor no tratamento da temática social (o autoritarismo de Estado), como aponta Waldomiro Vergueiro:
“No caso desses formatos, o papel do autor é muito mais determinante, pois ele está muito menos vulnerável às demandas do mercado e às pressões de um diretor editorial, de um diretor comercial, de um diretor de marketing, etc.”.
Apesar das maneiras distintas de se abordar questões socialmente relevantes, percebemos um aumento geral na produção de obras com esse caráter. Isso se dá, segundo o especialista, porque a evolução do meio social permitiu o aparecimento de novos gêneros quadrinísticos que fogem do simples entretenimento, tomando rumo pelo campo da reflexão e da crítica social.
“As possibilidades oferecidas pela linguagem dos quadrinhos para exploração e aplicação no amplo espectro social, felizmente, são hoje em dia muito mais evidentes e aceitas tanto pelo lado do produtor como do consumidor de quadrinhos”, aponta o pesquisador.
Idealizadores de obras como X-men, Maus e Notas de Um Tempo Silenciado provam que é possível produzir conteúdo crítico sem perder o tal “apelo de mercado”. E o público consumidor dessas séries também possuem papel importante ao indicar que a sociedade do século XXI está pronta para degustar este novo tipo produto.
“Os autores souberam construir uma narrativa que consegue se situar, ao mesmo tempo, tanto dentro como acima das demandas comerciais. E, por outro lado, deve-se ter em mente que essas obras constituem produções que refletem o amadurecimento do público consumidor de quadrinhos”, completa Waldomiro Vergueiro.
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