Conteúdo LGBTQI+ ainda enfrenta resistência na indústria de quadrinhos brasileira

Diferente do cenário norte-americano, as principais HQs nacionais ainda incorporam lentamente a presença da diversidade

Imagem: Emilie Farris via Pixabay

A representatividade LGBTQI+ ganha cada vez mais espaço entre produtos culturais brasileiros. Porém, particularmente nas histórias em quadrinhos, ainda há resistência por parte do público nacional em consumir esse tipo de conteúdo.

O tema levantou discussões no Brasil desde a Bienal do Livro deste ano, na qual Marcelo Crivella, prefeito do Rio de Janeiro, tentou confiscar uma história em quadrinhos na qual há uma cena de um casal homossexual se beijando. Após vários protestos contra a tentativa de censura, o Supremo Tribunal Federal proibiu a apreensão dos volumes.

Waldomiro Vergueiro, professor responsável pelo grupo de pesquisa Observatório dos Quadrinhos, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, acredita que os quadrinhos têm a função de difundir uma consciência crítica. “As HQs refletem a sociedade. É natural que temas como a representatividade sejam abordadas nessas obras, e quando se trata de algo mainstream, a resistência pode acontecer por conta da maior diversidade do público. É por isso que grandes editoras vão assimilando esses conteúdos aos poucos, para testar como eles são aceitos, enquanto que produções independentes já são lançadas com intenções e temas mais claros”, diz.

No País, o principal quadrinho popular que começou a incorporar a representatividade nos quadrinhos foi a Turma da Mônica, com um personagem secundário da Turma da Tina. Em uma história, fica subentendido que ele teria um relacionamento com um outro homem. Maurício de Sousa se manifestou na época de lançamento da HQ, que teve bastante repercussão, e explicou que a interpretação ficaria a critério do leitor, e que seu público não estaria pronto ainda para um personagem abertamente homossexual.

Trecho do quadrinho da Turma da Tina, na qual fica subentendido que o personagem Caio é membro da comunidade LGBTQI+ (Fonte: Reprodução/Maurício de Sousa Produções)

Essa concepção parece ter mudado, pois o filho e o genro de Maurício anunciaram recentemente que estão investindo em trazer mais diversidade para a Turma da Mônica. Enquanto isso não acontece em larga escala, muitos projetos independentes têm ganhado visibilidade no País tratando do mesmo tema. 

Um exemplo é o Torta de Climão, do quadrinista Kris Barz. Ele explica a inspiração para criar a HQ: “já adulto e já me identificando como gay, fui percebendo que eu não via muitas histórias com personagens LGBTQI+ que refletiam as pessoas que eu via e me relacionava na comunidade. O projeto surgiu dessa carência que identifiquei e, como eu tinha a habilidade e o conhecimento, ao invés de esperar alguém fazer por mim, resolvi criar eu mesmo o projeto que eu gostaria de ver como leitor”.

O formato escolhido foram as tirinhas, pensando em aliar conteúdo informativo com humor. Kris comenta que existem vários projetos brasileiros com as mesmas intenções, e dá exemplo de um evento de quadrinhos que reuniu 73 artistas LGBTQI+ em prol da mesma causa: a Poc Con. A importância disso, segundo o autor, é que “nós, da comunidade LGBTQI+, consumimos muitos quadrinhos não voltados para esse público, sendo que boa parte desse consumo é feito de maneira compulsória, praticamente. O público não-LGBTQI+ precisa começar a consumir o que criamos também”.

Uma das tirinhas do projeto Torta de Climão. Referências à cultura pop e à comunidade LGBTQI+ são muito presentes no projeto. (Fonte: Kris Barz/Torta de Climão)

Apesar da aparente caminhada rumo a maior inclusão e respeito por obras que tratam de temas da diversidade, Barz acredita que ainda há muito a ser feito. Ele acredita que falta investimento por parte das editoras em dar ênfase às produções brasileiras e, para que isso aconteça, é necessário que o público passe a consumir mais esse tipo de conteúdo. Caso contrário, as histórias LGBTQI+ estadunidenses e europeias continuarão sendo mais lidas que as nacionais.

Waldomiro também enfatiza que a mudança depende dos leitores. “Geralmente a indústria começa inserindo personagens estereotipados. Cabe ao público rejeitar as versões que não o agrada, e assim a indústria será obrigada a se readequar”, explica.

Além disso, o docente reforça que um fator decisivo para uma melhor receptividade às obras LGBTQI+ na sociedade é a mudança de concepção de que histórias em quadrinhos são só para crianças. Ele analisa o caso de censura da Bienal como consequência direta desse entendimento, e ressalta que “várias gerações cresceram achando que quadrinhos são restritos ao público infantil, porque essa era a ideia nos anos 1950 a 1970. Essa compreensão vai se modificar ao longo do tempo. Hoje mesmo já temos novos leitores crescendo com outra visão sobre as HQs”.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*