Excesso de burocracia para liberação de recursos intensifica crise da Ancine

Professor da USP argumenta que além do cenário político, falta de integração com mercado também prejudica incentivo à produção audiovisual brasileira

Imagem: Joshua Willson/Pixabay

Além do desgaste causado pelo contexto político, o excesso de burocracia e controle estatal também dificultam a produção de obras audiovisuais brasileiras. Roberto Franco Moreira, cineasta e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, conta que a liberação de recursos pela Agência Nacional de Cinema (Ancine) é uma “grande confusão”, potencializada por controvérsias e intervenções em sua gestão. 

A mais recente polêmica foi causada pelo tema de redação do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, que exigiu que os alunos dissertassem sobre a democratização do acesso ao cinema no Brasil. A palavra “Ancine” se tornou o assunto mais comentado do Twitter, sendo que muitos internautas questionaram o assunto e lembraram os impasses do presidente Jair Bolsonaro com a Agência. Em julho, o governante afirmou em uma de suas redes sociais que tinha intenções de privatizar ou extinguir o órgão caso este não “filtrasse” suas produções. 

O lançamento de editais é feito pela Agência, mas Moreira explica que esse trabalho é complexo e feito simultaneamente a várias outras atividades. “Além de lançar os programas, também são estabelecidas as relações com agentes financeiros, os quais fazem contratos, encaminham os pagamentos e então fazem relatórios para Ancine, que por sua vez fiscaliza a produção… Isso poderia ser muito menos complicado”, diz.

Segundo o especialista, esses trâmites burocráticos são consequência do processo histórico marcado por desvios de dinheiro relacionados ao cinema nacional. Com isso, a Ancine optou por um sistema de controle mais rígido, firmando convênios com as produtoras audiovisuais. A crítica a isso é que além de deixar mais lenta a liberação de recursos, “os filmes geram receita, são empreendimentos comerciais, portanto a Agência é tecnicamente sócia da produtora. Então isso deveria ser considerado um investimento, e não um convênio”.

Outro problema envolvendo a instituição se deu após a publicação de um vídeo de Bolsonaro criticando os documentários Sexo reverso, Transversais, Afronte e Religare queer (todos participantes da fase final de um edital da Ancine que selecionava projetos de vários temas, inclusive o de representatividade LGBTI+). A partir disso, o ministro Osmar Terra elaborou uma portaria de suspensão do concurso, o que foi visto como tentativa de censura.

De acordo com a Constituição Federal, o governo não poderia interferir assim. Por outro lado, Roberto, que já foi membro do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), defende que um edital “não poderia, na proposição, ter uma orientação temática, assim como ele não pode tê-la em sua aprovação e premiação. Isso talvez pudesse ser repensado: ao invés de continuar fazendo editais, uma licitação seria algo mais dirigido e mais prático, então você poderia fazer uma exclusivamente para filmes com temática LGBTI+ ou minorias étnicas de forma mais assegurada”.

A produção audiovisual vindoura no Brasil também pode ser afetada pelas novas configurações da Ancine. No fim de outubro, foram divulgados os novos nomes do FSA, que conta com seis membros vinculados ao Governo e três representantes do setor audiovisual – dentre eles, Hiran Silveira, executivo da Record. Por questões de gestão e também de posicionamentos ideológicos, o professor da USP acredita que o perfil das obras lançadas pode sofrer mudanças, mas que demorará algum tempo até que isso possa ser observado de fato.

Moreira ressalta também que, embora os cineastas não estejam otimistas com o cenário atual, uma possível solução para a crise da Ancine seria a ampliação dos mecanismos automáticos, aqueles baseados na premiação por rendimento de obras passadas, em vez dos editais, a fim de agilizar o processo de liberação de recursos. Ele também indica que a integração do setor ao mercado é necessária, e que esse é um modelo bem-sucedido em países como Argentina, Alemanha, França e Coreia do Sul.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*